O Janela Internacional de Cinema do Recife sempre foi um festival especialmente atento, em sua curadoria, a determinadas pautas políticas que pedem urgência a cada ano. Não só isso. Tem sido atento também na busca por um cinema experimental, fora do eixo, não tão visível. Mas tenho tido um carinho especial por essa sua décima edição, que se encerra no domingo (12/11). Acho que fui conquistado pela vinheta de Matheus e pela estranha sessão de Pink flamingos (dir. John Waters, 1972) na noite de abertura (sexta-feira, 3/11).
Sala esvaziada depois de Zama (dir. Lucrécia Martel, 2017), as pessoas, aos poucos, abandonavam o filme, às vezes com gritos de protesto. De fato, alguns aspectos da obra parecem não ter envelhecido muito bem, como sua cena de estupro, que causou a maior onda de abandono na sessão. Pessoalmente, prefiro as maravilhosas tentativas de Waters de fazer um tipo de cinema queer para a família já a partir dos anos 1980. Mas a exibição do filme, num cinema histórico como o São Luiz, e na noite de abertura do evento, tem a força de um posicionamento curatorial diante de uma perseguição reacionária à arte contemporânea, principalmente quando esta se vincula a uma política LGBT ou queer.
Cine São Luiz na abertura do festival 2017. Foto: Visto Jucá/Divulgação
Olho agora para a belíssima arte de Clara Moreira, imagem oficial desta décima edição, e confirmo a posição de trincheira política assumida pela curadoria do festival. Não digo isso, necessariamente, implicando uma combatividade do Janela em si. Afinal, como já foi dito, o festival está atento às pautas de seu público e, infelizmente, ainda pouco interfere nas bolhas sociais da cidade. A curadoria faz um trabalho interessante, mas confortável. Na sessão de debate L.A. Rebellion: negras, negros e cinema, ontem e hoje, que ocorreu nessa quinta-feira (9/11), questionou-se a ausência de pessoas negras na composição da curadoria e a falta de rotatividade dos curadores.
A trincheira, no fim das contas, revela-se nos próprios filmes selecionados, em uma tomada de posição diante do cinema. E se exige que o festival assuma uma postura à altura da sua seleção, uma atitude mais orgânica de atenção às questões que vêm sendo colocadas pelo cinema brasileiro dentro e fora dos filmes exibidos no próprio Janela.
Certamente, um longo caminho foi percorrido até aqui. Não sinto falta, nesta décima edição, da costumaz exaltação coberta de pompas à produção local, com filmes tão frágeis quanto Animal político (dir. Tião, 2016) e Boa sorte, meu amor (dir. Daniel Aragão, 2012), sendo prestigiados com sessões de abertura, o que dava um tom muito pesado de clube familiar ao festival. Este ano, Açúcar (dir. Renata Pinheiro, 2017) e Em nome da América (dir. Fernando Weller, 2017), duas interessantes produções locais, receberam sua estreia pernambucana com justo destaque no decorrer da semana.
Os encontros vespertinos no primeiro andar do São Luiz também têm sido um caminho para que o Janela se confronte com essas críticas. E termina funcionando também como um espaço comum entre cineastas, críticos, curadores e público, em que uma voz de autoridade não é dada a ninguém – diferentemente, por exemplo, dos debates com diretores após a exibição dos filmes. Nesta sexta-feira (10/11), às 14h, por exemplo, os realizadores Affonso Uchôa (Arábia), Dea Ferraz (Modo de produção) e Helena Ignez (A moça do calendário) estarão presentes para um encontro sobre filmar os trabalhadores, mediado por Mariana Souto. Isso em uma edição que, além dos filmes desses cineastas, também exibiu A fábrica de nada (dir. Pedro Pinho, 2017), A garota negra (dir. Ousmane Sembène, 1966) e o curta-metragem O peixe (dir. Jonathas de Andrade, 2017). São modos absolutamente distintos, e até conflitantes, de se filmar o trabalhador.
Em um dos debates vespertinos do 'Janela' no São Luiz. Foto: Victor Jucá/Divulgação
Debates como esses potencializam a construção de uma variedade de olhares para o cinema, a necessidade de colocar em tensão o lugar-comum. E isso, de fato, também é uma responsabilidade de um festival. Penso no que tem ocorrido nos outros festivais deste ano. No Cine PE, em um gesto talvez demasiadamente ingênuo, cineastas se recusaram a ter seus filmes exibidos junto a O jardim das aflições (dir. Josias Teófilo, 2017), um filme que acredita ser possível pôr bandeiras à parte ao se fazer cinema. E, no Festival de Brasília, a cineasta Daniela Thomas foi confrontada por sua responsabilidade com seus personagens negros em Vazante.
São apenas alguns exemplos. Na organização do ano, o Janela ocupa uma posição privilegiada de observação desses debates não só para construir pontos de enfrentamento político, mas também para perceber oportunidades e modos de rever filmes. O programa de clássicos é um caminho – gosto de algumas intuições da curadoria, como a possibilidade de rever Aliens (dir. James Cameron, 1986) em uma perspectiva pós-golpe —, porém me refiro principalmente à tentativa de trazer um novo olhar para lançamentos controversos ou recebidos com indiferença.
Penso logo no caso de Era uma vez Brasília (dir. Adirley Queirós, 2017), que, apesar de ter recebido do júri oficial de Brasília o prêmio de melhor direção, teve uma recepção relativamente fria em sua estreia nacional. Estamos falando, afinal, de um diretor que reconfigurou as fronteiras do cinema brasileiro recente com o aclamado Branco sai, preto fica (2014). O Janela teve o bom instinto de abrir a sessão do filme, na quarta-feira (8/11), com o fascinante curta-metragem Vacancy (dir. Matthias Muller, 1998), que busca, nos arquivos de inauguração de Brasília, um espaço apocalíptico. O filme, acredito, prepara a sessão para um outro Adirley, de ruínas sem esperança, ficção científica sem utopia, mais um cinema que se dirige às trincheiras. São as barricadas para onde, em sua décima edição, os filmes selecionados conduzem o festival. Para a próxima década de Janela, é preciso enfrentá-las.