Resenha

Vícios do passado e esperanças do futuro

Benjamín Labatut parte das pesquisas de John von Neumann, que pode ser considerado seu protagonista, para compor seu novo romance

TEXTO Kelvin Falcão Klein

09 de Janeiro de 2024

John von Neumann é o personagem central do romance

John von Neumann é o personagem central do romance

Imagem Foto com arte de Jânio Santos

I

O escritor Benjamín Labatut nasceu na Holanda, cresceu em Buenos Aires e chegou em Santiago, no Chile, aos 14 anos, onde vive até hoje. Dois de seus livros já foram publicados no Brasil, ambos traduzidos do espanhol: Quando deixamos de entender o mundo e A pedra da loucura, ambos de 2022. Chegou ao Brasil seu novo livro, o primeiro de Labatut escrito em inglês, MANIAC. O título, embora remeta às ideias de “mania” e “maníaco”, é, antes de tudo, uma referência a uma máquina real, “Mathematical Analyzer, Numerical Integrator and Computer”, computador desenvolvido no Instituto de Estudos Avançados, em Princeton, com base nas pesquisas de John von Neumann, que pode ser considerado o protagonista do romance de Labatut.

“Ele foi o ser humano mais inteligente do século XX”, diz uma das vinhetas do livro sobre von Neumann. “Um alienígena entre nós”. Em seu leito de morte, rodeado por militares com autorizações secretas de segurança, todos esperavam “uma última faísca”, “mais uma ideia do indivíduo que havia dado à luz o computador moderno, estabelecido as bases matemáticas da mecânica quântica, escrito as equações para a implosão da bomba atômica, gerado a Teoria dos Jogos e do Comportamento Econômico, anunciado a chegada da vida digital, das máquinas autorreplicantes, da inteligência artificial e da singularidade tecnológica, e prometido a eles o controle divino sobre o clima da Terra”. A partir dessa cena, apresentada logo no início, Labatut retrocede até a infância de von Neumann, quando ele ainda vivia no Império Austro-Húngaro e se chamava Neumann János Lajos, percorrendo as principais etapas de sua vida: a ascensão acadêmica meteórica, a chegada aos Estados Unidos para escapar do nazismo, o envolvimento com uma série de projetos secretos, entre eles o Projeto Manhattan, que leva à bomba atômica.  

O menino prodígio, contudo, vai aos poucos se transformando em um adulto com posições éticas altamente questionáveis. Nos Estados Unidos, ele se torna “um matemático renegado, uma mente de aluguel, cada vez mais seduzido pelo poder e por aqueles que podiam exercê-lo”, escreve Labatut. Von Neumann cobrava “honorários exorbitantes” para reunir-se com pessoas da IBM, da RCA, com a CIA ou a Corporação RAND, às vezes por não mais do que alguns minutos, e trabalhava em tantos projetos governamentais e privados que parecia “possuir a capacidade de estar em muitos lugares ao mesmo tempo”. O romance de Labatut mostra, sutilmente, que é por conta dessa ubiquidade que podemos reconhecer as impressões digitais de von Neumann em várias inovações tecnológicas que encontramos no noticiário atual: a inteligência artificial, as mudanças climáticas, as novas armas para os conflitos bélicos, as transformações do capitalismo, os algoritmos e assim por diante.  

A dinâmica da narrativa, contudo, faz com que o leitor frequentemente esqueça desse poderoso pano de fundo tecnológico, mesmo que por breves momentos. O relato oscila entre as especificidades científicas e os muitos episódios pitorescos de uma série de personagens secundários – como a noite passada no melhor restaurante de Berlim na década de 1930, o Horcher; ou uma discussão sobre a natureza da deusa Ártemis, virgem perene e caçadora divina; ou mesmo a descrição de um lugar em Nevada onde um homem de barba comprida e jeans entrou em um bar, pedindo um copo de cerveja para ele e um balde cheio da mesma substância para sua mula, que bebeu tudo em poucos segundos. Existe uma dupla função narrativa para esses momentos: mostram que as grandes descobertas científicas acontecem junto com a vida comum de todos os dias; ao mesmo tempo, mostram que as grandes mentes responsáveis por tais descobertas pensam a respeito delas o tempo inteiro. Não há fora do trabalho, não há vida sem trabalho, e vice-versa. 

II

A experiência de leitura do romance de Labatut é, ao mesmo tempo, inspiradora e angustiante, estimulante e assustadora. A narrativa é “inspiradora” porque se ocupa apenas de “gênios”, de grandes personagens do intelecto, figuras que transformaram para sempre o panorama daquilo que é possível em termos científicos, técnicos, existenciais. Por outro lado, é “angustiante” em, ao menos, dois planos simultâneos e complementares: as vidas desses gênios, em geral, são repletas de tragédias, dificuldades e inadequações; suas descobertas e inovações não raro levaram a humanidade em direções tenebrosas – como os estragos causados pela energia nuclear, por exemplo. Apesar de John von Neumann ser o personagem principal, outros prodígios gravitam ao seu redor em MANIAC: Kurt Gödel (o pai do teorema da incompletude), Richard Feynman (pioneiro da eletrodinâmica quântica), Leo Szilard (responsável pelos avanços com a fissão nuclear controlada), Edward Teller (criador da bomba de hidrogênio), Eugene Wigner (Nobel de Física em 1963) e Theodore von Kármán (pioneiro do voo supersônico e da propulsão de foguetes). Esses últimos eram chamados por von Neumann de “Cavaleiros Húngaros do Apocalipse”.

Em paralelo à descrição dos eventos científicos, portanto, existe a construção de John von Neumann como personagem: vaidoso e obsessivo com o trabalho, mulherengo, perdulário e, em algumas facetas de sua vida mental, profundamente ingênuo. “Ele era muito inseguro com relação ao seu legado”, escreve Labatut usando a voz de Klára Dan, esposa do protagonista, que continua: “e eu achava que seus temores de ser esquecido eram não apenas misóginos (ele não tinha fé no que sua filha poderia fazer, mesmo que ela tivesse herdado uma grande parte de sua energia e talento), mas absolutamente ridículos, porque meu marido havia se infiltrado nos mais altos escalões do poder e se acoplou lá como um pequeno carrapato”. Ele carregaria esse registro peculiar de exceção ao longo de toda a vida, como registrou seu amigo próximo e colega de trabalho Eugene Wigner, na reconstrução de Labatut: “Há dois tipos de pessoas neste mundo: Jancsi von Neumann e o resto de nós”.

É fundamental perceber que o projeto narrativo de Labatut não se esgota em uma ode ao progresso ou às inovações tecnológicas do século XX (o Projeto Manhattan, os computadores de Alan Turing) ou mesmo do XXI (a empresa DeepMind de Demis Hassabis, as capacidades quase infinitas de financiamento do Google). Todas as transformações técnicas recentes que Labatut descreve estão cuidadosamente costuradas a referências antiquíssimas, como a poesia mística de Hadewijch de Brabant do século XIII, que aparece na primeira epígrafe, ou mesmo o jogo de go, criado três mil anos atrás na China. Com isso, fica estabelecida uma rede intertextual que dá densidade e sustentação ao projeto de Labatut, mostrando que o que está em jogo não é o fascínio raso pelas descobertas, mas uma investigação do insondável fenômeno da insatisfação permanente do ser humano com suas condições imediatas de existência.


MANIAC, Benjamín Labatut, Editora Todavia, 360 páginas.
Imagem: Reprodução 


Na última seção do livro, que corresponde a pouco menos que um quarto da sua extensão, Labatut dá um salto no tempo em direção ao século XXI e à disputa do campeão de go Lee Sedol contra um computador, o AlphaGo, desenvolvido pela empresa de Hassabis. Aqui surge a primeira conexão luminosa entre as partes do romance: os cientistas do Projeto Manhattan também jogaram go em Los Alamos no período de desenvolvimento da bomba atômica. “Por séculos, o go foi considerado mais uma forma de arte do que um jogo”, escreve Labatut. “Na China, era uma das quatro disciplinas que qualquer nobre deveria dominar”. O jogo, famoso por sua complexidade, consiste no confronto entre dois participantes que posicionam pedras de cores opostas até um deles dominar o tabuleiro. Em março de 2016, em Seul, o 18 vezes campeão mundial de go Lee Sedol senta para enfrentar o supercomputador, que vence o humano por um placar de 4-1. Elaborando a derrota de Sedol, o narrador de Labatut registra: “Foi totalmente diferente de qualquer coisa que um computador já havia feito. Também foi diferente de qualquer coisa que se saiba que um ser humano já tivesse cogitado. Foi algo novo, uma ruptura completa com a tradição, um distanciamento radical de milhares de anos de sabedoria acumulada”.

Outra conexão se estabelece, fazendo a ponte entre Lee Sedol e John von Neumann: no final da seção do livro dedicada a este último, o narrador aponta que, no leito de morte, antes de se calar e se recusar a falar até mesmo com sua família ou amigos, ele foi questionado sobre o que seria necessário para que um computador “começasse a pensar e se comportar como um ser humano”.

Ele levou muito tempo para responder, com uma voz que “não passava de um sussurro”. Disse então que teria que “crescer”, “não ser construída”; “teria que entender linguagem, ler, escrever, falar”; “teria que brincar, como uma criança”. Em nenhum momento o narrador relaciona os dois personagens – John von Neumann está de um lado, Lee Sedol está de outro –, pois esse trabalho é intuitivamente feito pelo leitor, que reconhece as pistas no texto. Talvez o AlphaGo seja essa máquina que brinca como uma criança, mas não há certeza. O que é certo é que o romance de Labatut é uma complexa e bem-vinda reflexão sobre a repercussão dos vícios do passado sobre as esperanças do futuro.


KELVIN FALCÃO KLEIN, professor de Literatura Comparada na Unirio, autor de O olho Sebald (2021)

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