Resenha

Veneza e os filmes sobre quem manda e é mandado hoje e sempre

Paolo Sorrentino, Park Chan-wook e Olivier Assayas abordam os extremos sociais em distintos registros, respectivamente, em La Grazia, No Other Choice e The Wizard of the Kremlin

TEXTO Orlando Margarido

02 de Setembro de 2025

Jude Law (Vladimir Putin) e Paul Dano (Vadim Baranov) em

Jude Law (Vladimir Putin) e Paul Dano (Vadim Baranov) em "The Wizard of Kremlin", de Olivier Assayas, ovacionado por 10 minutos no festival

Foto Divulgação

O poder e sua carga, a ambição e o mundo precarizado. Na primeira metade da 82ª edição do Festival de Veneza, os temas dos filmes concorrentes ao Leão de Ouro discutem velhos dilemas da humanidade e os mais atuais sob diferentes perspectivas e gêneros. Da convenção sóbria do novo Paolo Sorrentino, La Grazia, ao humor ácido do coreano Park Chan-wook com No Other Choice, os longas-metragens vistos até agora entre os 21 selecionados na competição principal apontam para um inevitável embate de valores com os rumos da sociedade. “Se eu aprovo a lei, serei execrado por católicos; se eu não aprovo, serei visto como um conservador autoritário”, diz o presidente da república italiana no filme de Sorrentino quanto à sanção da eutanásia no país. A personagem de Toni Servillo sintetiza muito das dúvidas dos nossos tempos, assim como o desempregado que vai as últimas consequências para obter um emprego na comédia sombria de Chan-wok. Crise de princípios essa que vai ao extremo do cinismo com The Wizard of the Kremlin, do francês Olivier Assayas, produção de nível internacional, em língua inglesa e com estrelas do cinema hollywoodiano.

O mágico, ou mago, do palácio russo se chama Vadim Baranov no livro homônimo de Giuliano da Empoli, escritor de origem ítalo-suíça nascido na França. É a única personagem de nome ficcional entre todas que passam a orbitar o universo de poder capitaneado por Vladimir Putin, entre políticos, oligarcas e outras figuras em ascensão na nova Rússia pós-comunista. Mas a referência tem perfil certo, o homem de teatro, profissional de TV dedicado a reality shows e escritor Vladislav Surkov, para ficar em alguns de seus múltiplos talentos. Foi o magnata dono de canal de TV Boris Berezovsky, seu empregador, quem levou Baranov/Surkov até Putin ainda no escritório deste como oficial da agencia FSB, a antiga KGB. A partir dali, tem inicio o projeto de construção de um mandatário dentro de um conceito politico que o jovem de 35 anos cunhou como democracia soberana. Criador e criatura, à maneira de um doutor Frankenstein, mas que diverso do malogrado resultado visto mais uma vez no filme de Guillermo del Toro, funcionou e mantém o assim chamado Tzar no poder desde 1999.

Se o livro de 2022, lançado no Brasil no mesmo ano pela Editora Vestígio (Grupo Autêntica) como O Mago do Kremlin, oferece um retrato de fôlego na Rússia das ultimas quatro décadas, a adaptação de Assayas paga um preço por tamanha ambição. Síntese não foi por certo a escolha do diretor e seu parceiro e também escritor Emmanuel Carrère no roteiro. Nas duas horas e meia de filme desfilam uma infinidade de personagens e um nó de tramas que desafiam ainda o espectador pela verborragia. Mesmo assim, o painel com a presença de um ótimo Paul Dano como o mago e um digno Jude Law como líder do Kremlin empolga pela representação de um país em transe para uma nova sociedade, seus conflitos internos e externos como as guerras, pelos olhos de uma figura chave da engrenagem.

É nesse escopo que difere do drama intimista proposto por Sorrentino. Em outro palácio, o Quirinale de Roma, o presidente de turno (Servillo) está há seis meses de deixar o cargo e à frente de decisões complexas. Jurista e católico fervoroso, deve decidir a aprovação da eutanásia e se concede ou não o perdão, a graça, a dois condenados em cárcere. A justiça e a Igreja são regidas por leis diversas, se não antagônicas. No microcosmos da sede do governo, ele convive com a filha e conselheira, também jurista, que busca a assinatura do pai para a nova lei e propõe a ele conversar com os detentos. Seu perfil de politico preocupado com os italianos, próximo da gente comum que o elegeu, não pode ser abalado por algum mau passo às vésperas da aposentadoria. Não é um filme de grandes arroubos, de clímax, mas da reflexão, de uma leve melancolia quebrada pelo tom cômico comum aos filmes de Sorrentino. Pertence não à cepa de sucessos como A Grande Beleza mas a de Il Divo, um dos primeiros filmes do diretor, e sobre uma grande personalidade politica real da Itália, Giulio Andreotti. Seu Mariano De Santis é ficcional, garante ele, mas a imprensa local o aproximou de pontos em comum com o atual ocupante do cargo, Sergio Mattarella.

Distante dos círculos do poder, mas dependente dele mais do que os chefes de estado, o protagonista de No Other Choice acredita não ter outra escolha a não ser apelar, literalmente, à violência para sobreviver numa sociedade competitiva brutal. Pai de família classe média, com uma ótima casa ainda em financiamento, ele perde o emprego e entre um bico e outro, cria uma estratégia perigosa para reconquistar o antigo status. Consegue os currículos de seus principais concorrentes com as mesmas chances e habilidades que ele para ocupar uma vaga e decide matá-los. Entre a comédia de erros e acertos, ele ganha até mesmo o apoio da mulher. 

O estilo do diretor Park chank-wook não é marcado exatamente pela delicadeza e a opção pelo explícito vem sempre em companhia do tom de absurdo, numa mescla arriscada de gêneros em que é inevitável reconhecer a criatividade. Não por acaso, o longa foi exibido na mesma manhã do concorrente francês À Pied d’Oeuvre, expressão que significa “no trabalho”, e como no coreano, reflete a precarização. Um fotógrafo e escritor abandona o primeiro ofício para se dedicar integralmente à literatura, mas sem dinheiro para se manter, se aventura nos trabalhos braçais mal pagos. O registro da diretora Valérie Donzellie, aqui sim, é o minimalista, sutil, o que resulta num filme correto mas um tanto sem pulsão. A essa altura da competição, são muitos bons intérpretes para a Copa Volpi de melhor ator e Toni Servillo, Paul Dano, o coreano Lee byung-hun e o francês Bastien Bouillon disputam lado a lado a chegada pelo talento, sem ardis desesperados.

ORLANDO MARGARIDO, jornalista, crítico de cinema e artes plásticas

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