A trajetória do músico Juliano Holanda como artista solo, por ser bissexta, é bem pontuada por marcos que parecem simbolizar sempre uma “virada”. Em seu primeiro álbum, A arte de ser invisível (2013), ele estreava assinando seu nome como frontman, no entanto, como diz o próprio título, por ser “invisível”, ele canta apenas a música que abre o disco, Karma sutra. Todas as outras faixas são interpretadas por convidados. Logo na sequência, em Pra saber ser nuvem de cimento quando o céu for de concreto (2013), ele assume, de fato, os vocais e canta todas as 12 músicas do disco, com uma banda de formação enxuta – baixo, bateria e guitarra (por ele mesmo). Após oito anos de Pra saber ser nuvem... e seis anos do compacto Espaço-tempo (2015), Juliano chega, enfim, ao seu terceiro álbum, Por onde as casas andam em silêncio.
Dessa vez, ele se lança em mais um desafio: um disco inteiramente gravado apenas com baixo e voz. Essa pode até ser a primeira coisa que nos salta sobre o trabalho, mas é preciso ouvi-lo, não só como música, mas em sua completude narrativa, afinal, é uma obra que tem muito a nos dizer neste 2021. Por onde as casas andam em silêncio é um disco urgente, do agora. Foi gravado por Juliano em 10 dias, na sua própria casa, no começo de janeiro deste ano.
Em oito faixas, um retrato instantâneo dos tempos de hoje: pandemia, polarizações, extremismos ideológicos, os sentimentos e as incertezas provocadas por um momento tão adverso, em que a “vida normal” parece estar em suspenso. Das oito músicas no disco, seis foram compostas durante o período de confinamento do músico e narram as inquietudes despertadas pelo atual contexto social. “Quando a gente tá enclausurado, sente uma necessidade de falar, de colocar as ideias pra fora. E eu queria dizer alguma coisa”, diz Juliano, ao contar que fez mais de 200 composições neste período pandêmico. “Eu tentei ser mais proativo, encarar a coisa de maneira mais produtiva. Tentei transformar isso em música.” “Antena da raça” que é, o artista não passou imune aos assuntos que se apresentavam. Por isso, o repertório do disco é, segundo ele, “resultado desse tempo”.
A começar pelo fato de que este não seria o terceiro álbum planejado por Juliano. Ele já vinha em processo de gravação de outro trabalho, Sobre a futilidade das coisas, que, agora, terá de esperar mais um pouco. Com recurso aprovado pela Lei Aldir Blanc e pelo cenário de urgência que o assunto tratado pedia, Por onde as casas andam em silêncio passou à frente. O álbum tem direção artística de Juliano e da sua companheira e produtora, Mery Lemos, que foi quem “cantou a pedra” sobre Juliano gravar um disco apenas com voz e baixo. “Fui experimentando até achar o norte, mas, de cara, eu sabia que a ideia era boa e quis investir nela. E isso foi importante, me devolveu muitas coisas. Foi um trabalho de memória: memória musical, física, uma viagem de volta a uma outra época da minha vida bastante prazerosa”, declara Juliano, que, durante 10 anos de sua vida, teve o baixo (um Fender Jazz Bass) como seu principal companheiro musical, quando fazia parte, entre os anos 1990 e 2000, de bandas como Rabecado e Azabumba.
Para arquitetar o disco musicalmente, Juliano recorreu a possibilidades diversas do uso do instrumento que, necessariamente, fugissem do lugar comum. “Eu não queria que fosse um disco de instrumentista. Tudo o que eu ouvia de baixo e voz caminhava mais para uma linguagem de jazz. E quando eu ia para isso, propositalmente, eu fugia”, conta. “(O disco) Não tem harmonias ou dissonâncias de jazz. Ele tá mais próximo de uma linguagem de baixo de rock’n’roll, de paleta. Eu também uso o slap, que é uma coisa que a galera torce o nariz”, diz Juliano ao explicar que existia uma busca por outros resultados sonoros/estéticos com o baixo, mas também uma preocupação em tecer o disco a partir dos contrapontos entre o instrumento e a palavra, o texto, as letras das canções. “Acabei escolhendo músicas com letras mais longas e músicas que se aproximassem mais da fala. Foi bom porque possibilitava que o baixo se sobressaísse mais. O baixo é mais melódico e a voz é mais falada, mais rítmica. O baixo tece melodias, contrapontos, melodias internas... enquanto a voz é mais reta”.
Por onde as casas andam em silêncio não é um disco feito para ser palatável. Essa quadra histórica nada fácil, esse “desconforto” causado pelos tempos de hoje estão materializados, da primeira à última faixa, na construção estética, sonora e discursiva do trabalho. É um disco meticulosamente construído com arestas, quebras de linearidades. “Tem um geometrismo no disco. Tanto nos arranjos quanto nas letras. Ele é meio quebrado, parece uma coisa de encaixe de melodias e de fraseados. Propositalmente, ele não é redondo, é pontiagudo. Não é um disco pra ser macio, fácil, redondo”, declara. “São tempos de questionamento, de mudança, de revisão de paradigmas. Não queria que fosse um disco de acordes simples e abertos e frequências já conhecidas. Eu queria colocar esses espinhos na garganta mesmo.”
Fotos: Mery Lemos/Divulgação
CONFESSIONAL O ofício primordial de Juliano é a composição. É como compositor que ele se identifica prontamente. Como músico, sempre esteve mais à vontade – e por mais tempo – como side man. Por isso, acostumou-se a ter suas canções em outras vozes e, em palco, a assumir esse papel mais discreto. “Eu sempre fui um cara mais reservado e, no entanto, a minha música é de exposição. E cantar minhas músicas sempre foi muito difícil pra mim (...). Aqui e ali, essa persona Juliano Holanda explode, acontece. Mas, geralmente, acontece quando eu tenho o que dizer. Não tenho aquela obrigação do mercado, não tenho contrato de nada, não acho que devo ficar lançando material, não sou um gerador de conteúdos nesses moldes que hoje estão colocados.”
Portanto, há sempre algo de relevante quando ele lança um álbum com sua assinatura. No caso de Por onde as casas andam em silêncio, o tom confessional do disco é algo mais forte na sua narrativa. “Se você tivesse que me conhecer, acho que esse é o melhor disco. É onde minhas ideias estão mais claras”, confessa. As músicas do álbum são, ipsis litteris, esse desalinho que vivemos como humanidade no meio desse contexto incomum, mas a partir da ótica particular desse eu-lírico de jeito meio torto. “A gente está em um momento de hiper-realismo. E o papel do artista é esse: é ser retrato, é modificar dentro do que é possível, é colocar o dedo e falar as coisas, traduzir. Acho que o artista é, antes de tudo, um tradutor.”
Por onde as casas andam em silêncio e Cair em si são as duas composições que já existiam antes mesmo do período pandêmico, mas que se encaixaram muito bem à temática que permeia o disco. A primeira mostra como – repito: antena da raça que é – o artista, aquele que (dá) cria a belezas e estranhezas, é “contaminado” pelo que está à sua volta, e cada coisa, acontecimento ou provocações do mundo – “o azulejo gasto, a unha suja (...) o árido rumor que vem dos livros, os intestinos longos da saudade” – podem ser estímulo. Cair em si nos traz que o caminho mais tortuoso é o do autoconhecimento, a tomada de consciência de quem se é. “Hoje eu caí em mim/ aprendi que não há queda maior que cair em si.”
Súmula, que abre o álbum, é esse ir e vir entre o eu-lírico e a quem se fala, o eu e “o outro”. Logo nos primeiros acordes e versos de Juliano, tem-se a impressão de que, em breve, os ouvidos sentirão falta de outros elementos, ou de uma banda. Impressão que não se confirma, uma vez que os arranjos feitos para o contrabaixo conseguem “preencher” o todo que a música pede. Daí para frente, essa impressão nunca mais volta a aparecer. Em Prefácio, percebe-se o uso das palavras como artefatos de disrupção rítmica. É o exemplo mais flagrante disso. É nela, como explica Juliano, que aparece “o uso mais radical de um léxico que, a princípio, não é musical, usando palavras mais difíceis de você ver em canção popular”.
Assim como em Haja terapia e As pessoas, a humanidade em crise. O confinamento imposto pela pandemia nos aturde nas diversas dimensões; as solidões, o tempo que se arrasta, a “perda da poesia”. Inventários do que pode nos “desconfigurar” as emoções, o eixo, o equilíbrio. “As pessoas estão tristes (...) As pessoas e seus delírios”, quando tudo é incerto, frágil. Em Daqui da lua nº 2, Juliano recorre a um distanciamento imaginativo, de onde pode se avistar melhor tudo. A metáfora do distanciamento do mundo que vivemos hoje, em um lugar onde estamos seguros... mas, distantes uns dos outros e, certas vezes, até de nós mesmos.
Cuidado, que encerra o álbum, anuncia todo esse estado de coisas mordazes que podem acontecer em meio ao contexto social e político que vivemos, com referências mais explícitas, em versos como “E se vier um vírus/ e colocarem máscaras/ e se queimarem arquivos/ e fabricarem facadas”. Ao final, o conselho dado: “Cuidem-se, cuidem dos seus amigos”.
Por mais que carregue um peso e uma aridez rascante no assunto de que trata, Por onde as casas andam em silêncio é, na verdade, uma obra de apuro musical e poético que, com o manejo sensível de Juliano, nos coloca diante do maior drama contemporâneo da humanidade – e do que se desdobra a partir daí, dentro e fora de nós – mas também nos acende lampejos de esperança e temperança como forma de enfrentamento. É, sim, um pouco do que vivemos hoje. “Não é um disco nem otimista, nem pessimista. É um retrato do tempo de hoje. É uma polaroid”.