Resenha

Uma mulher em busca de sobrevivência

"Mãe Coragem e seus filhos", escrita por Bertolt Brecht, em 1939, ganha montagem protagonizada por Bete Coelho, com direção de Daniela Thomas

TEXTO MATEUS ARAÚJO, DE SÃO PAULO

02 de Julho de 2019

Montagem estreou no Sesc Pompeia

Montagem estreou no Sesc Pompeia

Foto: Ariela Bueno/Divulgação

Natural que os tempos de brutalidade do agora encontrem ecos irretocáveis nas expressões artísticas. Só mesmo tais campos simbólicos, por vezes didáticos, são capazes de dar conta – ou se aproximar em maior medida – da revisão das ambiguidades em que imergimos. É assim hoje, como fora também no passado – razão pela qual pululam com frequência nos palcos contemporâneos remontagens de clássicos do teatro épico, sobretudo aqueles brechtianos.

Nessa baila está Mãe Coragem e seus filhos, escrita por Bertolt Brecht em 1939, no início da Segunda Guerra Mundial, e recém-estreada no Sesc Pompeia (SP), com direção de Daniela Thomas, protagonizada por Bete Coelho.

O texto se atém à figura da vendedora de quinquilharia Anna Ferling, que atravessa os campos de conflitos da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) arrastando uma carroça de mercadorias, na companhia de seus três filhos. Longe, porém, de uma ideia materna romantizada, para sobreviver, Anna faz escolhas eticamente duvidosas, sem se abster de negociações desonestas e conchavos, pondo em xeque, inclusive, a vida da sua família.

Enquanto faz seu comércio, a mulher “deixa” que o filho se aliste ao exército, o perdendo. Em seguida, em vez de negociar a soltura do outro filho, preso pelo regimento, escolhe proteger a carroça e ver o rapaz morrer – fingindo, também, não conhecer o corpo dele. Por fim, perde a filha, assassinada tentando avisar à vizinhança um ataque dos inimigos.

A dialética proposta por Brecht neste texto incide na ambivalência humana, implicada numa mãe, que, embora ame seus filhos, não se abstém de “sacrificá-los” por sua própria sobrevivência. Signo que, aproximado do momento político atual brasileiro, encaixa-se facilmente na ideia de uma nação capaz de empurrar seus cidadãos ao precipício, a fim de salvar ela mesma a pele. Nação esta, religiosa e bélica, disposta a armar os seus rebentos para que lutem uns contra os outros.

CONSTRUÇÃO
Mãe Coragem foi montada por Daniela Thomas salientando o caráter frígido e inóspito em que se insere essa obra brechtiana. São duas horas e meia de espetáculo, executado completamente em um palco-arena, envolto de arquibancadas de ferro. No centro, um enorme tablado coberto por uma espécie de brita e barro reforça o ambiente de devastação. E, embora nos traga elementos grandiosos e catárticos, como uma linda chuva transpassando a cena, a cenografia, assinada pela diretora e Felipe Tassara, prima pelo vazio.

Daniela é fiel ao épico brechtiano, reforçando o distanciamento do elenco e personagens. Para isso, recorre à narração feita por duas atrizes – Carlota Joaquina e Luisa Renaux – em alemão e português, que irrompem o espaço a cada mudança de cena, delimitando as passagens e reafirmando ao espectador a teatralidade; e também se beneficia da musicalidade, com canções originais de Paul Dessau e arranjos de Felipe Antunes, utilizada ora como coro, ora como textualidade das personagens.

Bete Coelho interpreta a protagonista Anna Ferling

FOTO: Jennifer Glass/Divulgação

A grandiosidade do espetáculo, porém, se dá na construção de Bete Coelho à sua personagem, com sinuosidade emotiva e de caráter. Não se trata, como disse, de uma mãe romantizada, mas de uma mulher em busca de sobrevivência. Brecht desenha essa contradição através do sarcasmo, ao que Bete prontamente responde sem se deixar deslizar banalmente em campos dicotômicos. Ela nos aponta é para a humanidade de sua personagem, sublinhando em gestos os sentimentos. E neste sentido, a construção de cenas marcadas pela iluminação (Beto Bruel) – que delimita o espaço, recorta o palco e potencializa o vazio – não obstante nos remete a uma imagem quase cinematográfica escolhida pela diretora.

O espetáculo, aliás, é um espetáculo da força feminina. Além de Bete Coelho, outra interpretação precisa é a de Luiza Curvo, no papel da filha muda. Na impossibilidade da fala, a atriz é eloquente com os gestos, a emoção e o olhar cativante.

Com Mãe Coragem, Daniela Thomas nos leva a olhar os dias de agora à luz de Brecht, assustados pela imprecisão dos tempos e desajustados em meio ao vazio do horizonte. Caminhamos, assim, com Anna Ferling, pelas veredas da barbárie – e não sabemos quem irá sobreviver.

MATEUS ARAÚJO é jornalista, pesquisador, crítico de teatro e mestre em Artes Cênicas pela Unesp.

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