CONSTRUÇÃO
Mãe Coragem foi montada por Daniela Thomas salientando o caráter frígido e inóspito em que se insere essa obra brechtiana. São duas horas e meia de espetáculo, executado completamente em um palco-arena, envolto de arquibancadas de ferro. No centro, um enorme tablado coberto por uma espécie de brita e barro reforça o ambiente de devastação. E, embora nos traga elementos grandiosos e catárticos, como uma linda chuva transpassando a cena, a cenografia, assinada pela diretora e Felipe Tassara, prima pelo vazio.
Daniela é fiel ao épico brechtiano, reforçando o distanciamento do elenco e personagens. Para isso, recorre à narração feita por duas atrizes – Carlota Joaquina e Luisa Renaux – em alemão e português, que irrompem o espaço a cada mudança de cena, delimitando as passagens e reafirmando ao espectador a teatralidade; e também se beneficia da musicalidade, com canções originais de Paul Dessau e arranjos de Felipe Antunes, utilizada ora como coro, ora como textualidade das personagens.
Bete Coelho interpreta a protagonista Anna Ferling
FOTO: Jennifer Glass/Divulgação
A grandiosidade do espetáculo, porém, se dá na construção de Bete Coelho à sua personagem, com sinuosidade emotiva e de caráter. Não se trata, como disse, de uma mãe romantizada, mas de uma mulher em busca de sobrevivência. Brecht desenha essa contradição através do sarcasmo, ao que Bete prontamente responde sem se deixar deslizar banalmente em campos dicotômicos. Ela nos aponta é para a humanidade de sua personagem, sublinhando em gestos os sentimentos. E neste sentido, a construção de cenas marcadas pela iluminação (Beto Bruel) – que delimita o espaço, recorta o palco e potencializa o vazio – não obstante nos remete a uma imagem quase cinematográfica escolhida pela diretora.
O espetáculo, aliás, é um espetáculo da força feminina. Além de Bete Coelho, outra interpretação precisa é a de Luiza Curvo, no papel da filha muda. Na impossibilidade da fala, a atriz é eloquente com os gestos, a emoção e o olhar cativante.
Com Mãe Coragem, Daniela Thomas nos leva a olhar os dias de agora à luz de Brecht, assustados pela imprecisão dos tempos e desajustados em meio ao vazio do horizonte. Caminhamos, assim, com Anna Ferling, pelas veredas da barbárie – e não sabemos quem irá sobreviver.
MATEUS ARAÚJO é jornalista, pesquisador, crítico de teatro e mestre em Artes Cênicas pela Unesp.