Resenha

Um olhar abusivo sobre Marilyn Monroe

Ficção biográfica baseada em livro e estrelada pela cubana Ana de Armas, ‘Blonde’ (2022) chega à Netflix gerando, no público, revolta e polêmica em torno da representação do ícone hollywoodiano

TEXTO Danilo Lima

05 de Outubro de 2022

Cena do longa de ficção 'Blonde' (2022)

Cena do longa de ficção 'Blonde' (2022)

Imagem Divulgação

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Talvez poucos tenham ouvido falar de uma moça chamada Norma Jeane, porém, se eu descrever uma mulher loira, batom vermelho, pinta no rosto e um vestido branco esvoaçante, com certeza conhecerão essa imagem. A cena, do clássico O pecado mora ao lado (1955), é o exemplo máximo do poder iconográfico e sensual da atriz Marilyn Monroe, ao mesmo tempo em que resume o voyeurismo com que foi tratada ao longo de sua breve vida. Tanto na estreia no Festival de Veneza quanto no lançamento da Netflix na última quarta (28), o filme Blonde, que traz a cubana Ana de Armas no papel da protagonista e o neozelandês Andrew Dominik na direção, tem gerado bastante revolta e polêmica no público. Entre temas pesados, deturpações sensacionalistas e comentários ríspidos do realizador, o filme integra a já extensa galeria de obras que exploram o grande símbolo da Old Hollywood

É essencial ressaltar primeiro que Blonde não é uma biografia real, mas sim uma adaptação livre de uma ficção biográfica homônima de Joyce Carol Oates. Assim como no livro, o longa exagera, distorce e inventa acontecimentos a partir de momentos reais da vida de Marilyn. Na verdade, o interesse está totalmente em acompanhar (ou invadir) a privacidade de Norma Jeane, e pouco se vê da Marilyn Monroe incorporada – tratada aqui justamente como uma possessão ou alter ego. Apesar da duração de 2h47min, muito foi cortado do livro e o que sobrou foi uma questionável seleção de episódios que focam nos relacionamentos amorosos – especialmente com o atleta Joe DiMaggio (Bobby Cannavale) e o dramaturgo Arthur Miller (Adrien Brody) – e nas conturbadas gestações devido à endometriose, que acarretou em vários abortos espontâneos. 

Recentemente, as redes sociais foram palco de debates sobre a necessidade de cenas de sexo em produções audiovisuais, pendendo entre um neoconservadorismo dessa geração e uma real preocupação com as representações abusivas da mídia. No meio dessa discussão, Blonde parece ser a transgressão perfeita para dividir o puritanismo do bom senso. O filme recebeu a classificação indicativa mais alta da Motion Picture Association, NC-17, e é o primeiro dessa categoria a ser lançado na Netflix (ou qualquer outro grande streaming), o que já antecipa o conteúdo sexual gráfico e os temas sensíveis presentes na obra. Contudo, a classificação e o burburinho causados em cima do longa parecem estar menos ligados à quantidade de nudez do que propriamente a quem ela se direciona e à insensibilidade da abordagem. 

Frequentemente enquadrada sob uma luz dura que parte do observador, a figura da Marilyn é destacada de um fundo obscuro através de um alto contraste, o que contribui para construir uma espécie de estética do flagrante. Somos levados à condição de paparazzi da estrela, com uma câmera na mão que se esgueira por debaixo de um vestido ou para dentro de um quarto, na ânsia pelo flagrante de alguma intimidade sexual ou emocional. Nesse ponto, é possível sentir o poder opressivo e invasivo que uma câmera é capaz de produzir, mas a proposta falha ao replicar outras escolhas estéticas e morais.


Imagem: Divulgação

“Qualquer cena pode ser encenada”', pensa Marilyn em um monólogo interno enquanto faz, contra a sua vontade, sexo oral no então presidente John F. Kennedy. Em um artifício metalinguístico, a própria cena do filme passa a ser exibida em um cinema para uma multidão, revelando uma autoconsciência da sexualização e antecipando a polêmica que o momento geraria. Porém, ao retratar tais cenas, o filme opta pelo mesmo ponto de vista fetichizante – com ângulos até pornográficos – que coloca a atriz como foco dos nossos olhares e relega os abusadores a figuras sem rosto, impunes do julgamento da câmera.

Ainda que o discurso da obra seja contra esses abusos, ela sofre inevitavelmente do olhar de um diretor atraído, de forma visível, pelo corpo de sua protagonista. Sobre a abordagem, a atriz afirmou ao Entertainment Weekly: “É mais difícil as pessoas assistirem do que foi, para mim, fazê-las (...). Não me senti explorada, porque eu estava no controle. Fiz essa decisão. Sabia o filme que estava fazendo. Confiei no meu diretor e me senti em um ambiente seguro”. No final, cabe a cada um tirar suas próprias conclusões. 

Ainda assim, a problemática central não parece residir apenas na sexualização, mas sim no evidente sadismo do filme. Em entrevistas, o diretor comentou que não se interessava pelos momentos de força ou empoderamento de Marilyn, mas pela sua intimidade emocional. O resultado são quase três horas de abusos e violências, dos diversos tipos: físicas, sexuais, verbais, psicológicas e até cirúrgicas. Se já foi um filme indigesto para mim enquanto homem, ele se torna ainda mais violento para o público feminino. As frequentes crises de ansiedade e depressão de Marilyn ocupam quase toda a duração do longa, e é nesses instantes que se destacam as duas principais forças que disputam o foco do filme: a direção vaidosa e a protagonista icônica. 

Sempre que possível, a direção de Dominik insere algum artifício que chama atenção para si. É uma obra que tenta ao máximo se enquadrar na duvidosa categoria de “cinema de arte”, no bom e no mau sentido, do experimental ao autoindulgente. Se por um lado as trocas de lentes, proporções de tela e cores parecem arbitrárias, elas potencializam a plasticidade de cada cena, que é acompanhada pela brilhante e transcendental trilha sonora composta e interpretada por Nick Cave e Warren Ellis. Essa profusão de imagens, efeitos e sons concebe ao filme um tenebroso ar onírico que remete diretamente às obras de David Lynch como Os últimos dias de Laura Palmer (1992) e Império dos sonhos (2006) – ambos também marcados pelo sofrimento da protagonista, mas sem a fetichização de Blonde.

Já quando a verdadeira protagonista da história recebe espaço, Ana de Armas consegue entregar uma performance digna do peso do papel. Para além de uma caracterização impecável do visual, trejeitos e entonação de fala, a atriz se dedica a compreender sentimentos de dor da Marilyn que poucas vezes foram expostos em público. Com o destaque da atuação, que se diferencia dos papéis secundários em filmes de ação e espionagem em que normalmente aparecia, a atriz pode ter sua chance de reconhecimento se a Netflix decidir disputar com o filme nas premiações – a despeito das polêmicas. 

A tranquilidade com que grandes distorções são feitas na história me fizeram questionar: afinal, por que usar Marilyn e não apenas fazer uma personagem ficcional? Acontece que Marilyn Monroe ainda é um dos maiores ícones da cultura popular norte-americana e sua imagem sempre foi usada de fantoche para qualquer ideia ou problemática proposta por um autor. Nessa realidade, ela é somente uma boneca sem iniciativas, à mercê das consequências da indústria e das pessoas, enquanto busca suprir tipos específicos de amor. Ao mostrar uma ausência paterna na infância e colocar a atriz chamando recorrentemente seus namorados de “daddy”, o argumento escolhido dessa vez parece ser o de que todos os problemas dela estavam ligados a um profundo Complexo de Electra, ainda que isso retire os outros núcleos de socialização da atriz, como amigas e colegas, e a transforme numa caricatura de si. 

Da famosa serigrafia de Andy Warhol até dezenas de sósias, a figura da atriz continua vivíssima no imaginário mundial, até mais do que seus filmes. Sabendo disso, Blonde propõe uma desconstrução completa da divindade intocável, mas termina por substituí-la por um outro símbolo: o da exploração, da histeria e do sofrimento feminino. Enquanto experimentação formal, o filme é estonteante, mas como narrativa é a exploração da exploração sofrida por Marilyn, o que no fim não é muito diferente das violências iniciais contra a atriz, que sempre esteve sob a vigilância dos holofotes e flashes insaciáveis.

DANILO LIMA é jornalista em formação pela UFPE.

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