Ainda assim, a problemática central não parece residir apenas na sexualização, mas sim no evidente sadismo do filme. Em entrevistas, o diretor comentou que não se interessava pelos momentos de força ou empoderamento de Marilyn, mas pela sua intimidade emocional. O resultado são quase três horas de abusos e violências, dos diversos tipos: físicas, sexuais, verbais, psicológicas e até cirúrgicas. Se já foi um filme indigesto para mim enquanto homem, ele se torna ainda mais violento para o público feminino. As frequentes crises de ansiedade e depressão de Marilyn ocupam quase toda a duração do longa, e é nesses instantes que se destacam as duas principais forças que disputam o foco do filme: a direção vaidosa e a protagonista icônica.
Sempre que possível, a direção de Dominik insere algum artifício que chama atenção para si. É uma obra que tenta ao máximo se enquadrar na duvidosa categoria de “cinema de arte”, no bom e no mau sentido, do experimental ao autoindulgente. Se por um lado as trocas de lentes, proporções de tela e cores parecem arbitrárias, elas potencializam a plasticidade de cada cena, que é acompanhada pela brilhante e transcendental trilha sonora composta e interpretada por Nick Cave e Warren Ellis. Essa profusão de imagens, efeitos e sons concebe ao filme um tenebroso ar onírico que remete diretamente às obras de David Lynch como Os últimos dias de Laura Palmer (1992) e Império dos sonhos (2006) – ambos também marcados pelo sofrimento da protagonista, mas sem a fetichização de Blonde.
Já quando a verdadeira protagonista da história recebe espaço, Ana de Armas consegue entregar uma performance digna do peso do papel. Para além de uma caracterização impecável do visual, trejeitos e entonação de fala, a atriz se dedica a compreender sentimentos de dor da Marilyn que poucas vezes foram expostos em público. Com o destaque da atuação, que se diferencia dos papéis secundários em filmes de ação e espionagem em que normalmente aparecia, a atriz pode ter sua chance de reconhecimento se a Netflix decidir disputar com o filme nas premiações – a despeito das polêmicas.
A tranquilidade com que grandes distorções são feitas na história me fizeram questionar: afinal, por que usar Marilyn e não apenas fazer uma personagem ficcional? Acontece que Marilyn Monroe ainda é um dos maiores ícones da cultura popular norte-americana e sua imagem sempre foi usada de fantoche para qualquer ideia ou problemática proposta por um autor. Nessa realidade, ela é somente uma boneca sem iniciativas, à mercê das consequências da indústria e das pessoas, enquanto busca suprir tipos específicos de amor. Ao mostrar uma ausência paterna na infância e colocar a atriz chamando recorrentemente seus namorados de “daddy”, o argumento escolhido dessa vez parece ser o de que todos os problemas dela estavam ligados a um profundo Complexo de Electra, ainda que isso retire os outros núcleos de socialização da atriz, como amigas e colegas, e a transforme numa caricatura de si.
Da famosa serigrafia de Andy Warhol até dezenas de sósias, a figura da atriz continua vivíssima no imaginário mundial, até mais do que seus filmes. Sabendo disso, Blonde propõe uma desconstrução completa da divindade intocável, mas termina por substituí-la por um outro símbolo: o da exploração, da histeria e do sofrimento feminino. Enquanto experimentação formal, o filme é estonteante, mas como narrativa é a exploração da exploração sofrida por Marilyn, o que no fim não é muito diferente das violências iniciais contra a atriz, que sempre esteve sob a vigilância dos holofotes e flashes insaciáveis.
DANILO LIMA é jornalista em formação pela UFPE.