“A gente faz documentário pela necessidade de registrar nosso tempo. E o Brasil tem tido atenção com seu passado musical, tem conseguido registrar essa memória. O país tem consciência de que precisamos resistir”, pontuou Paulo Mendonça na abertura do painel, reafirmando a qualidade da produção brasileira contemporânea no segmento, contrapondo-a à forma como a cultura vem sendo tratada (e especialmente o cinema nacional) pelo atual governo federal.
No debate, as questões centrais do documentário musical brasileiro surgiram naturalmente quando foram abordados os processos individuais de cada filme ali representado – cada aldeia guardando o universo, enfim. Semente da música brasileira reflete não apenas a alma do lugar, mas reproduz as desventuras de se trabalhar com cultura no Brasil. Seja produzir um documentário, seja manter viva uma casa de shows com artistas de qualidade elevadíssima, mas que vão na contramão do apelo popular mais óbvio – tudo isso na Lapa, uma área da cidade maltratada pelo poder público, a despeito de ser um de seus cartões-postais.
“O filme foi mais uma loucura do Semente”, resumiu Aline, brincando a sério. “Tem toda uma história ali de revitalização da Lapa, uma situação de pertencimento do carioca. O Semente abriu em 1998, eu era frequentadora, fui acompanhando, me envolvendo. Mas ele ficava num lado mais complicado do bairro, acabou fechando. Ficamos órfãos. Até que, em 2003, teve um aniversário de um músico lá dentro, uma festa fechada. Ali soube que o imóvel não tinha sido entregue. Propus reabrir e fizemos a Comuna do Semente, com a ajuda dos músicos, amigos. Agora ele fechou de novo, mas só a estrutura. A marca Semente segue muito viva. Tem muita ‘Noite Semente’ por aí.”
O filme conta a história desse lugar e analisa as marcas que ele deixou, por meio de depoimentos – e da música – de artistas que fizeram daquele palco sua casa. O doc levanta uma ponderação sobre uma das dificuldades fundamentais de quem se interessa por documentar algum aspecto ou personagem do cenário musical brasileiro: os valores cobrados pelos direitos das obras usadas nos filmes.
“O grande desafio do documentário musical é a música”, explicou Marcus Fernando, que prepara, com Hugo Sukman, um filme sobre Aldir Blanc. "Muitas vezes, os detentores dos direitos cobram de uma produção documental o que se pede para utilizar a música numa publicidade. São objetivos completamente diferentes. No caso do filme de Torquato, a música mais cara foi uma de Ary Barroso, Aquarela do Brasil, com arranjo de Rogério Duprat. Eram segundos, sem letra. ‘Ah, menos de 15 mil não dá’. Acabamos encontrando outra solução."
Chico Buarque em uma de suas passagens pela casa de shows Semente. Imagem: Reprodução
O diretor apontou que arrumar soluções para dificuldades como essa é parte do ofício do documentarista de música no Brasil: "O Semente resolveu essa questão com os artistas tocando músicas próprias, o que está totalmente dentro do espírito da casa. A dificuldade virou conceito. Mas nem sempre dá. No documentário sobre Nereu, do Trio Mocotó (No gargalo do samba), fica claro que nenhuma das músicas mais marcantes pôde ser utilizada. Isso empobreceu o filme".
Aline completou: “No caso do Semente da música brasileira, queríamos esse caráter autoral, falamos disso, mas queríamos também usar a música de Chico Buarque (frequentador da casa, onde deu famosas canjas). Ele cobrou um preço irrisório. Não fosse nosso relacionamento com ele, com os músicos, o filme seria inviável. O que se vê ali é fruto de uma sociologia do carioca”.
Torquato Neto – Todas as horas do fim também é um exemplo bem-acabado de “dificuldade virando conceito”. O uso de registros caseiros em super-8, cenas de filmes do Cinema Novo e cartas do poeta lidas em off definiram a linguagem do filme, ao mesmo tempo em que solucionavam um problema que está em sua raiz: a escassez de material audiovisual de Torquato. “Não há imagens em vídeo de Torquato com som. Não havia notícia de registro da voz dele quando começamos a fazer o filme. Durante a produção, foi encontrada uma gravação de uma entrevista em áudio feita com ele, que acabamos usando.”
MEMÓRIA MUSICAL
A forma como tradicionalmente o Brasil lida com sua memória – nossa história é pontuada por apagamentos do passado, por desinteresse ou por negligência, o que já fez arquivos importantes serem perdidos por incêndios ou inundações – também marca o universo do documentário musical. No painel, isso foi lembrado. Mendonça, que foi um dos responsáveis pela existência de Loki – Arnaldo Baptista (o filme foi produzido pelo Canal Brasil), disse que ali teve convicção de que “o país não tinha memória” – memória que vem construindo com afinco nos últimos anos.
Arnaldo Baptista em Loki. Imagem: Divulgação
“O Canal Brasil precisava descobrir caminhos de intersecção da música com o cinema”, ressaltou o mediador. “Eu tinha consciência de que o canal estava ancorado na memória afetiva.” Fontenelle, diretor do filme sobre Arnaldo Baptista, lembrou que o fim da década passada (Loki foi lançado em 2009) foi um marco para a produção de documentários musicais no Brasil: "Tivemos Palavra (en)cantada (de Helena Solberg e Marcio Debellian), Jards Macalé: um morcego na porta principal (de Marco Abujamra e João Pimentel), Simonal – Ninguém sabe o duro que dei (de Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal)… Até ali, havia um preconceito com documentários, apesar de aparecer eventualmente um sucesso como Vinicius (de Miguel Faria Jr., lançado em 2005), que tocava as pessoas. Mas essa safra de 2008 e 2009 ajudou a mudar a relação das pessoas com o documentário musical. Muita gente que não fazia começou a fazer".
Uma olhada no panorama apresentado no In-Edit, em junho deste ano, confirma que a produção é robusta. Foram exibidos cerca de 30 filmes nacionais, entre curtas e longas. Além dos já citados O barato de Iacanga e Dorival Caymmi: um homem de afetos, a vastidão do apanhado incluía obras que iam de um mestre de bumba-meu-boi (Guriatã) à história da música eletrônica no Brasil (Eletrônica: mentes); de Clementina de Jesus (Clementina) a Arrigo Barnabé (Amigo Arrigo); de bandas marciais tradicionais de Alagoas (Faz sol lá sim) à cena indie nacional que emergiu cantando em inglês no início dos anos 1990 (Guitar days – An unlikely story of brazilian music).
No painel, Jom Tob Azulay concluiu o debate lançando uma pergunta à plateia (formada majoritariamente por representantes do mercado da música), enquanto chamava a atenção para o fato de toda essa pujança contrastar com o gargalo da distribuição precária: “O documentário musical brasileiro é um fenômeno. Mas há barreiras incompreensíveis que impedem sua plena circulação. Não consigo entender por que ele não consegue ter uma visibilidade grande, apesar de tratar da manifestação cultural brasileira de maior projeção internacional. Fiz Os Doces Bárbaros há 43 anos, e só agora ele foi exibido em Portugal pela primeira vez. Portugal é o mercado estrangeiro mais óbvio para o nosso cinema. Não consigo entender isso. Alguém consegue me explicar?”.
Registro que integra o documentário Torquato Neto – todas as horas do fim.
Imagem: Divulgação
Ante o silêncio, ele prosseguiu, com o mesmo idealismo que levou sua geração a produzir obras como Os Doces Bárbaros: “Não há nada mais importante neste momento de resistência do que exportar nossas manifestações culturais, para nos tirar do lugar de meros exportadores de soja e minério de ferro”.
LEONARDO LICHOTE é repórter e crítico musical. Assina o texto final do livro Minha fama de mau, com memórias de Erasmo Carlos. É autor dos textos críticos que acompanham a caixa de Chico Buarque De todas as maneiras. Desde 2018, apresenta a série Cria, no Manouche, de encontros com compositores. Integra o júri do Prêmio da Música Brasileira e o Super Júri do Prêmio Multishow.