Resenha

Sem Coração chega aos cinemas

Dirigido por Nara Normande e Tião, o filme pernambucano, que estreia nesta quinta-feira (18), aborda a complexidade da adolescência durante um verão em Alagoas

TEXTO Paula Passos

18 de Abril de 2024

FOTO Cinemascópio / Divulgação

Depois de estrear mundialmente no Festival de Veneza em 2023 e passar por eventos nacionais e internacionais, o longa-metragem Sem Coração chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (18). O filme dirigido pela alagoana Nara Normande e pelo pernambucano Tião mostra as descobertas da adolescência de Tamara (Maya de Vicq) e sua turma durante o verão de 1996 no litoral de Alagoas. Tamara aproveita seus últimos momentos no lugar onde se criou, antes de se mudar para Brasília, para fazer cursinho para o vestibular. 

O roteiro, elaborado entre 2016 e 2021, é consistente e consegue conectar bem os diferentes núcleos da trama: a família de Tamara, o grupo de amigos e amigas, uma família vizinha, italianos que marcam presença em Alagoas, e a personagem Sem Coração (Eduarda Samara), que mora com seu pai pescador (Eules Assis). A garota recebe esse apelido de alguns amigos de Tamara, porque ainda criança teve um marcapasso implantado no seu coração e carrega consigo uma cicatriz no peito. Essa história, que deu origem à obra, foi ouvida por Normande há alguns anos. 

O longa-metragem é homônimo de um curta, lançado em 2014, onde a dupla de roteiristas e diretores aborda a experiência de um adolescente de classe média urbana, morador de prédio, que vai para a casa de um primo, numa vila costeira, durante as férias. No curta-metragem, além de sentir a diferença entre esses dois mundos, ele se apaixona por uma menina chamada Sem Coração

“A gente já estava muito satisfeito com o que era o curta, só que também fomos muito impactados pelas pessoas que conhecemos durante o processo. A personalidade de Duda [Eduarda Samara], por exemplo, influenciou para que a gente pensasse em fazer um longa com a personagem Sem Coração. Queríamos mostrar a relação dela com o pai, que é a mesma pessoa no filme e na vida real. Ela também era boa na improvisação. Vimos isso durante uma cena em que ela não sabia que estava sendo gravada no curta. Tinha uma personalidade afiada, fazia piada com os meninos… Então, a gente chamou Duda para fazer colaboração no roteiro, para descobrirmos um pouco mais do universo da Sem Coração”, conta o diretor Tião. Com a participação de Eduarda Samara (Bacurau), os roteiristas puderam compreender melhor aspectos de sua realidade e de sua experiência enquanto adolescente.  

Sem Coração foi rodado em Alagoas, entre setembro e outubro de 2022. Uma das locações foi a praia de Porto de Pedras, onde a atriz morou durante a maior parte da vida. Inclusive, no longa, há uma sequência em que ela e o pai vão pescar usando um barco que, na vida real, pertence a Eules. Seus personagens também levam seus nomes.

Nara Normande e Tião durante as filmagens do longa-metragem
Foto: Divulgação

Enquanto o curta-metragem (2014) foi filmado em película, uma década depois, o longa chega ao público em formato digital. “A gente conversou com a fotógrafa [Evgenia Alexandrova] e dissemos que queríamos contrastes fortes, o preto o mais preto possível. Falamos sobre os tons de verde que gostaríamos para a vegetação e das sombras mais pronunciadas. Queríamos um filme colorido, com cores vibrantes, que fossem mais quentes e fortes, mas ao mesmo tempo algo natural, que tivesse a ver com a realidade de quem grava com aquele sol todo e com essa exuberância da natureza”, explicam Tião e Nara. 

Outro destaque de Sem Coração é a fotografia colorida, solar, com presença de planos abertos, que representam trechos do litoral alagoano em 1996, quando ainda era pouco ocupado por empreendimentos imobiliários e hoteleiros. Algumas cenas foram gravadas em Maceió e outras no litoral norte do estado. Quem assina a direção de fotografia é a russa Evgenia Alexandrova, que mora na França, e chegou à equipe, através de uma coprodução com o país.

Sem Coração venceu o Redentor de Melhor Fotografia durante sua primeira exibição nacional no Festival do Rio, onde também recebeu o Prêmio Félix de Melhor Filme. Na Mostra Nordestina do Fest Aruanda, uma das muitas premiações que recebeu foi Melhor Fotografia. Além dela, outros reconhecimentos: Melhor Direção, Trilha Sonora, Som, Figurino e Direção de Arte. Antes de estrear em circuito nacional, Sem Coração venceu o Prêmio ABRACCINE de Melhor Longa na Mostra de São Paulo; o Prêmio do Júri, no Festival International du Film d’Amiens; e Melhor Contribuição Artística no Festival de Havana.   

Para a diretora Nara Normande, que já retratou sua relação afetiva com sua terra no curta-metragem Guaxuma (2018), lidar com os elementos naturais, tão estruturantes deste filme, foi um grande desafio para a produção: “Tudo tinha que ser muito certinho, programado, porque a lua tinha que ser aquela específica para a imagem que queríamos fazer, assim como a maré seca. A data de gravação do filme foi baseada nisso. Esse planejamento foi da primeira assistente de direção Laura Mansur”, explica.

Durante a história, um dos elementos que conecta Tamara e Sem Coração é a presença de animais fantásticos, como uma baleia de 14 metros de comprimento, presente nos sonhos das personagens e no cartaz de divulgação da obra. Cada uma interpreta aquele animal de uma forma. Além da baleia, construída durante três semanas pela equipe de direção de arte de Thales Junqueira, com materiais como ferro, espuma PAC, isopor, poliuretano expandido, malha e látex; há a presença de arraias, em 3D, que estão diretamente ligadas às emoções de Sem Coração.

 

Em um dos primeiros planos do filme, a adolescente fica de frente a uma delas durante um mergulho, numa espécie de confronto, mas também de admiração. Adiante, enquanto interage com o grupo de Tamara dentro do mar, outros animais da mesma espécie aparecem. Quando vai pescar com seu pai e se utiliza da bioluminescência para atrair peixes, novamente uma arraia surge próximo ao barco, durante uma conversa conduzida por lembranças.

“Usamos esses animais como uma forma de traduzir a subjetividade deles. Uma baleia que aparece encalhada, como a gente poderia se relacionar com o que a personagem estava sentindo? É um grande mistério. Você sente algo, mas não sabe direito a dimensão daquilo. A gente brinca com esses elementos naturais de uma forma racional, mas também permite que não seja tão racional assim”, explica Tião. 

Outro cuidado que Normande e Tião tiveram durante a escrita do roteiro foi o de delinear a história através da perspectiva de adolescentes: “Como não colocar a nossa cabeça, a nossa moral dentro da cabeça deles? Isso foi um desafio. Tentamos ser o mais honestos possível a partir da perspectiva deles. Como mostrar as coisas sem julgar? Como não direcionar demais, pra não ficar chato, né? Como fazer uma condução natural aos personagens?”, compartilham suas indagações durante o processo.

No elenco, Maeve Jinkings (Pedágio; Aquarius; O Som ao Redor) interpreta a mãe amorosa de Tamara, que acolhe as angústias e os medos da filha durante essa transição de cidade; e Erom Cordeiro (A Divisão; DNA do Crime) como o pai da jovem. O filme conta ainda com a estreia no cinema do baiano e influencer Kaique Brito, que faz o papel de Binho, um adolescente que inicia um passeio por suas primeiras experiências sexuais.

Sem Coração teve um orçamento de R$ 5,5 milhões e contou com financiamentos da França, Itália e do Brasil. A parceria internacional foi indispensável para sua existência, porque, à época, os governos Temer e Bolsonaro não favoreciam a captação de recursos para o audiovisual brasileiro. A produção executiva é feita por Emilie Lesclaux, Kleber Mendonça Filho, Justin Pechberty, Damien Megherbi, Nadia Trevisan e Alberto Fasulo. A coprodução e a distribuição são da Vitrine Filmes.



 

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