Resenha

Refinado, em som e imagem

'Armoriando', segundo álbum gravado em duo por Ana de Oliveira e Sérgio Raz, sintetiza o universo armorial em um mergulho musical profundo

TEXTO Carlos Eduardo Amaral

24 de Novembro de 2023

Violinista paulistana Ana de Oliveira e o multi-instrumentista recifense Sérgio Raz

Violinista paulistana Ana de Oliveira e o multi-instrumentista recifense Sérgio Raz

FOTO Re Duarte e Santiago Harte/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

A violinista paulistana Ana de Oliveira e o multi-instrumentista recifense Sérgio Raz (que antes assinava Sérgio Ferraz) atuaram artisticamente pela primeira vez na edição 2019 do Mimo Amarante, em Portugal. Daí nasceu uma parceria profissional que fez Sérgio trocar o Recife pelo Rio de Janeiro, onde Ana já estava radicada. Ambos estrearam como um duo naquele mesmo ano e logo lançaram o primeiro álbum juntos: Carta de amor e outras histórias (independente), com obras de Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, John McLaughlin, Al Di Meola, Paganini, Tom Jobim, Villa-Lobos e do próprio Sérgio Ferraz.

Ana possui uma vasta carreira na música de concerto como spalla, camerista e solista, e transita com naturalidade, e apuro técnico, do barroco às várias estéticas contemporâneas. Igualmente violinista, Sérgio também é compositor, arranjador e intérprete versado em diversos modelos de instrumentos de violão, viola e guitarra, além de dominar idiomaticamente qualquer gênero que encare: jazz, flamenco, rock, metal, música clássica indiana, música acusmática...

Ao atuar em duo com Ana, foi natural que Sérgio assumisse a execução das cordas dedilhadas: primeiro, com os violões de oito e doze cordas, em Carta de amor; agora, com a viola sertaneja de doze cordas, em Armoriando (Selo Sesc), um mergulho mais a fundo, e exclusivo, em um dos universos musicais visitados no primeiro disco — e de especial envolvimento da parte de Sérgio, que já trabalhou com Ariano Suassuna e Antônio José “Zoca” Madureira, sem falarmos de sua atuação como violinista no duo Sonoris Fábrica, ao lado do violonista Leonardo Melo.

Além disso, Sérgio escreveu as adaptações das faixas de Armoriando, incluindo percussão (Marcos Suzano) em algumas delas e um trio adicional de cordas nos três movimentos da Suíte "A Pedra do Reino", de Jarbas Maciel: Mariana Salles (violino), Dhyan Toffolo (viola) e Hugo Pilger (violoncelo). As outras composições são de Zoca Madureira (Lancinante, Repente e Improviso), Clóvis Pereira (Cantiga), César Guerra-Peixe (Dueto característico, em três movimentos, e Galope) e do próprio Sérgio Raz (a faixa-título e Cortejo).

Com certeza, caberiam outros compositores nesse seleto panteão armorial: Cussy de Almeida, Benny Wolkoff, Antonio Nóbrega, Capiba, José Tavares de Amorim... Porém, o recorte musical de Armoriando primou pela duração certa; pelo conceito, em vez da enumeração; e, sobretudo, proporcionou a Ana e a Sérgio desempenharem o igual protagonismo que, simbolicamente, a rabeca e a viola possuíam no universo imagético que definiu a formação instrumental da Orquestra Armorial de Câmara e do Quinteto Armorial, os dois grupos mais representativos do Movimento Armorial, nos anos 1970 (para um futuro projeto dentro dessa estética, fica o vislumbre de vermos agregada uma flauta, simbolizando o pífano).

Armoriando também buscou exprimir beleza nos aspectos físicos. Em vez de um CD acomodado em caixinha de acrílico, com encarte de papel couché atochado por trás de uma tampa transparente, manuseamos um álbum propriamente dito: com capa confeccionada em papel supremo, encarte bem colado na parte interna da lombada, rico na dissertação sobre a concepção artística (redigida por uma musicóloga e crítica musical de destaque nacional, Camila Fresca) e sobre os músicos principais, detalhista na ficha técnica, competente na diagramação e consciente sob o ponto de vista tipográfico.

Todos esses elementos eram algo trivial nas duas décadas anteriores, em produções de artistas de alto gabarito, mas hoje fazem falta e merecem ser citados e celebrados. Mais do que isso, os quadros e ilustrações de Manuel Dantas Suassuna que adornam Armoriando exercem um efeito sinestésico exímio, evidenciado pelo projeto gráfico de Ricardo Gouveia de Melo: ostentam um vermelho abrasado na capa, o complementam com um amarelo vívido e sólido na contracapa e ocultam a persuasão do âmbar e a sobriedade do branco-gelo, presentes aqui e acolá no encarte.

Esse vermelho, predominante nas páginas internas do encarte, evoca o tom do verniz do violino de Ana e de um personalíssimo detalhe do tampo da viola de Sérgio; ele carrega matizes que não só unem metaforicamente ambos os músicos, como colorem o fogo e o coração, signos centrais de algumas das pinturas de Dantas Suassuna destacadas no projeto gráfico. O âmbar e o amarelo, respectivamente, remetem à bile que carrega a paixão pelo corpo e à pele sob a qual essa paixão se move. O branco-gelo, por fim, transmite o discernimento, sem a ingenuidade que o branco puro traduz.

Tanto quanto as adaptações de Sérgio Raz às partituras selecionadas, os traços expressionistas de Dantas Suassuna atualizam a visão daquilo que concebemos como armorial, abandonando pinceladas fauvistas e fundos chapados, contudo preservando figuras humanas e animais, bem como o mais essencial dos elementos heráldicos: o já dito coração, o qual vemos ora encimado por uma cruz, ora transpassado por uma espada, promovendo a junção do sagrado e do humano que era tão comum nas artes plásticas armoriais.

CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista, crítico musical, escritor e pesquisador.

 

Tags

veja também

A história da Mundo Livre S/A em livro

Motel Destino: desejo e a luta pela liberdade

Hermeto: Inspiração que vem como o vento