Itamar não se aventurou por estas plagas. Permaneceu bem-sucedido no seu nicho de fidedignos admiradores. “É melhor ser cult do que fazer sucesso”, ponderou numa entrevista o irlandês Van Morrison, acrescentando; “Cult é para sempre”. Foi assim com O Nego Dito, como era também chamado, por conta de um personagem de uma música sua: “Benedito dos Santos Silva Beleléu/vulgo Nego Dito”. Com esta visita, Arrigo Barnabé e o Trisca contribuem para trazer Itamar/Nego Dito para a vitrine.
(RE)VISITA
Arrigo na verdade revisita Itamar. Desde quando dividiam apartamento no Bexiga, ele cantava as músicas que o amigo compunha: “Lembro quando o Itamar fez esta música, a gente morava na Rua Conselheiro Carrão, no Bexiga, com o Guará e o Paulo (Barnabé). Quando tocou, senti uma empatia imediata com a música, sempre eu ficava tentando cantar”, comenta Arrigo Barnabé, no show, comentando sobre Fico Louco (do LP de estreia, Beleléu, Leléu, Eu).
“Em 2009, voltei a trabalhar mais com música popular, como intérprete. Fiz um trabalho com Lupicínio Rodrigues, que já tem uma certa ligação com Itamar, porque quando ele fez o Ataulfo Alves, me lembro que nós conversamos. Ele perguntou quem eu faria. Disse que faria o Lupicínio. Daí ouvi o trabalho que ele fez do Ataulfo, achei muito legal. Tinha várias músicas do Itamar que eu cantava. Tinha gravado Já deu pra sentir, em 1988, no disco Suspeita, e Mal menor, em 91, em Façanhas. Volta e meia cantava uma música dele em show”, conta Arrigo Barnabé, em entrevista, por telefone, para a revista Continente.
Faltava o acaso interferir no processo. O que aconteceu quando Paulo Lepetit, produtor, arranjador e baixista do Isca de Polícia convidou Arrigo Barnabé para uma participação no show da banda, o que ele fazia, de vez em quando: “Então estava sempre pensando em fazer alguma coisa do Itamar. O pessoal do Isca de Polícia sempre me chamava para participar de shows, e esta coisa foi gestando. Quando a pandemia estava acabando, num dos primeiros shows com público, o Paulinho me chamou pra fazer com a Isca. A gente no camarim, aquele ambiente, finalmente, eu digo: ‘Porra, eu gosto tanto de tocar com grupo básico, feito vocês, baixo, guitarra bateria. Queria fazer um trabalho cantando todas as músicas, não só uma participação. Paulinho falou: ‘Que legal, eu vou montar então’. Eu falei que podia me botar que eu tava nessa. Foi assim que rolou”, continua Arrigo.
LEPETIT
O paulista Paulo Lepetit é um dos mais importantes produtores da MPB (não o mais badalado). Produziu boa parte dos títulos da discografia de Itamar Assumpção (incluindo o Isso vai dar repercussão, com Naná Vasconcelos). A lista dos artistas com discos que têm sua chancela (ou tocando ou produzindo) é extensa: Tom Zé, Cássia Eller, Ney Matogrosso, Chico César, Vange Milliet. Lepetit faz um resumo de sua experiência na produção: “Tive estúdio por mais de 30 anos, e minha forma de produzir e fazer arranjos passou a ser uma atividade mais solitária, usando os recursos que tinha à minha disposição, como samplers, fontes sonoras, instrumentos virtuais etc. Há mais ou menos três anos, vendi meu estúdio e recuperei uma forma mais orgânica de arranjar e produzir.”
"Com Itamar, no início dos anos 1980, ensaiávamos de segunda à sexta-feira, mesmo sem ter shows à vista. Repetíamos várias vezes as músicas até chegarmos ao resultado final (que nunca era final, pois os arranjos continuavam evoluindo a cada show). Neste projeto com Arrigo, recuperamos este espírito hippie para nos aprofundarmos nas composições", conta Lepetit. "Ensaiamos vários dias seguidos na minha casa no interior de SP, onde posso hospedar a banda. Afinal somos só quatro pessoas envolvidas diretamente no show. Desenvolvi as ideias dos arranjos anteriormente, mas trabalhamos coletivamente na conclusão. Sem hora marcada e convivendo o tempo todo, o que proporciona uma intimidade e interação muito maior", complementa.
Arrigo Barnabé confirma a admiração pelo amigo arranjador: “Os arranjos são todos do Paulinho. Eu até colaborei, falando, vamos repetir esta frases, e tal. Mas são coisas do Paulinho, só as partes do piano são todas minhas. Às vezes provocava um pouco ele. Em Na cadência do samba (Ataulfo Alves/Paulo Gesta), ele estava conservando o mesmo arranjo que tinha feito pro Itamar. Falei que ficaria legal escrever outra coisa. A princípio, ele ficou bravo, mas depois me agradeceu, e achou que fez uma coisa mais legal. Acho o trabalho do Paulinho como arranjador muito bom. Ele resolveu a coisa com baixo e bateria, com o piano, virou um power trio”.
CONCEITO
O concerto começa com pouca iluminação. Arrigo, numa máquina muito antiga, datilografa uma carta para Itamar, e lê trechos durante o show. Pergunta o que Beleléu tem na cabeça (citando a polêmica Cabeça, composição do vanguardista Walter Franco, apresentada no Festival Internacional da Canção, de 1972). A figura carismática de Arrigo, cabelos brancos revoltos, lembrando um Beethoven com inflexão vocal de Gil Gomes (apresentador, nos anos 1990, do badalado programa policial Aqui e Agora), canta Quando eu me chamar saudade (Nelson Cavaquinho).
Morte e dor são leitmotiv do roteiro. Arrigo Barnabé afasta a hipótese de que possa ter a ver com os últimos anos de vida de Itamar Assumpção, atormentado pelas dores que a doença causava: “Não é por causa da doença, imagina se eu ia fazer isso. Vem de uma opção estética dele pela marginália. A nossa geração ficou muito aquela coisa do Hélio Oiticica, seja marginal seja herói. Itamar não tinha uma vida fácil. Tive outro dia com Rappin Hood, ele me disse que Itamar era muito austero. Falei pra ele, ‘exato’. A palavra é esta mesma. Tem a ver com a obra dele, como a de Nelson Cavaquinho, mais voltada para este outro lado, a temática dele fuça mais para o lado sombrio”.
SHOW
O piano de Arrigo, o baixo de Paulo Lepetit, a guitarra de Jean Trad, a bateria de Marcos da Costa é uma usina sonora em moto contínuo. O repertório não poderia ser mais bem amarrado, tendo a missiva como fio condutor: “A carta foi inventada. Uma coisa pra conduzir o show, pra dar uma ligação”, confirma Arrigo. A surpresa acaba sendo a inclusão de um sucesso de Marisa Monte (com letra de Arnaldo Antunes), De mais ninguém, que Arrigo conhecera em 1994, quando o samba foi lançado. A canção, na qual “dor” é palavra recorrente, não poderia estar mais bem aninhada do que neste roteiro, que o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, de As Dores do Mundo, aprovaria.
Até chegar a este álbum vídeo, foram dois anos. O resultado final foi decantado, depurado, e é inovador, mesmo empregando conceitos do século 20, um disco com começo, meio e fim. Reinventam-se os sambas da velha guarda, de Ataulfo Alves e Nelson Cavaquinho (dois de cada um), músicas de Itamar, do próprio Arrigo, e fecha numa inusitada junção de Nego Dito com Clara Crocodilo.
JOSÉ TELES, crítico de música e escritor