Resenha

‘Cabeça coração’ e a dor do desenlace

Em seu segundo álbum, o pernambucano Igor de Carvalho canta os conflitos emocionais que envolvem amor, ego e desapego, com participações de Zélia Duncan e Johnny Hooker

TEXTO Leonardo Vila Nova

28 de Janeiro de 2019

Igor de Carvalho

Igor de Carvalho

Foto Flora Negri/Divulgação

Luto. Palavra que, de imediato, remete à dor da perda, do desenlace – via de regra – involuntário. É, também, o tempo que leva o embate interno entre o que sente o coração e o que compreende a mente, a partir dessa perda. A experiência do luto está presente em várias dimensões da vida, inclusive no amor. A dor de quem se separa da pessoa amada lateja, desvia da razão, faz perder o prumo, revolta e causa profundo peso na alma. É esse luto – em todas as suas fases – que norteia a narrativa de Cabeça coração, segundo álbum do cantor e compositor pernambucano Igor de Carvalho, lançado este mês nas plataformas digitais (ouça aqui) e com show de lançamento marcado para quarta (30/1), no Teatro de Santa Isabel, no Recife. A apresentação integra o Janeiro de Grandes Espetáculos, com ingressos sendo vendidos online.

Assim como A TV, a lâmpada e o Opaxorô, seu primeiro rebento, em Cabeça coração Igor conta com a produção do músico Rogério Samico. No disco, alguns nomes da música contemporânea marcam presença, como Zélia Duncan, Johnny Hooker e o português Manel Cruz. Da nova safra pernambucana, vieram as colaborações de Flaira Ferro, Martins, Jr. Black, Marcello Rangel e Vinicius Barros, fazendo backing vocals em algumas faixas. Outro conterrâneo, o produtor e músico Yuri Queiroga, também participa do álbum.

Junto à banda que acompanha Igor no disco (Rogério Samico – guitarras, teclados, sintetizadores; Ricardo Fraga – bateria; e Rogê Victor – contrabaixo), está um time de sopros e metais (violinos, cello, viola, trompa, trombone e trompete), em arranjos conduzidos pelo jovem e incensado instrumentista Henrique Albino. Assim sendo, Cabeça coração caminha por um clima acinzentado, uma atmosfera dolente, que passeia por timbres e nuances soturnas. Ao longo do álbum, as músicas vão do minimalismo a explosões sonoras, que remetem aos altos e baixos desse exaustivo embate entre razão e emoção, na tentativa de se equilibrar no desassossego do luto.


Foto: Flora Negri/Divulgação

UM DELICADO PESO
“Ouça bem/ acabou”. É com esse ultimato que Igor de Carvalho abre Cabeça coração. Direta, a música Ouça bem trata, sem arrodeios, do que está, inevitavelmente, posto: o fim da relação (e do amor?) entre duas pessoas. A partir daí, segue o disco, trazendo à tona o enredo particular e universal de qualquer ser humano comum, às voltas com o desapego do amor perdido. E é num aparente paradoxo que flui Cabeça coração: com sua voz naturalmente doce, singela e delicada, Igor vai mastigando, verso a verso, canções carregadas de peso emocional.

“Quando eu parei para compor as canções do disco, a ideia principal era falar sobre o amor, mas eu não sabia ainda qual a vertente, qual o caminho, muito menos o destino das músicas ao falar disso. E o que acabou surgindo foi essa relação do desamor, do desenlace, do mau amor”, fala Igor sobre o mote que sustenta o disco, em um conceito que foi surgindo à medida que as canções foram sendo feitas, ao longo dos últimos dois anos e meio.

Nessa narrativa que vai se construindo ao longo de Cabeça coração, o músico retrata situações que já tomaram os pensamentos e as emoções de qualquer pessoa. E que não se restringem a uma dor de cotovelo, uma fossa ou uma “sofrência” qualquer, mas versam sobre todo o modus operandi do ser humano ao se confrontar com o fim de um amor, passando pela negação, raiva, negociação, depressão e aceitação, as fases que – segundo conceitos de Sigmund Freud e de Melanie Klein – compõem o luto. São esses sentimentos que, sutilmente ou mais escancarados, estão presentes nas canções de Cabeça coração.

Todas as músicas são inéditas – com exceção de Só resta o amor, que encerra o disco – e foram compostas por Igor. Três delas, em parceria: Ouça bem (com Martins), Eu não quero mais e Não tinha amor ali (ambas, com Juliano Holanda). A inspiração para as canções não partem, necessariamente, de situações ou sentimentos vividos por Igor (algumas, até sim), mas ganham autoralidade a partir do mergulho do compositor ao destrinchar esse universo do desenlace em canções suas. “Tem muito do que eu vivi, mas muito do que eu já observei. E o fato de ter me inspirado por algum acontecimento com algum amigo, por exemplo, não significa que não seja algo meu. Eu acabo adaptando a algumas situações que eu já vivi em relacionamentos, para transformar na mais verdadeira canção possível, diante da coerência do que eu vou falar, com um discurso próprio”, conta ele. Não há como não se reconhecer, em alguma situação, nos versos do disco. Com certeza, pelo menos uma vez na vida, você ou eu já dissemos para alguém frases como “me esqueça”, “eu não quero ser seu amigo”, “desapareça”, “não volte”, entre outras tantas.

Apesar do refinamento textual e sofisticação dos arranjos do disco, a verve pop de Igor não se ausenta em Cabeça coração. Algumas canções ganham musicalidade mais despojada e versos que, ouvidos em algumas leves doses, já grudam na mente. É o caso de Não tinha amor ali, com participação de Zélia Duncan, o reggae Laço e o rock Absurdo ser normal, o single/lyric vídeo lançado por Igor no fim de 2018. Me esqueça é, também, uma das faixas que traz uma potencialidade bem particular, enriquecida com a certeira participação de Johnny Hooker. Já o sentimento de mea culpa, por exemplo, está presente nos belos versos de Desculpa: “Desculpa/ meus olhos verdes querem amadurecer/ meus olhos claros não conseguem compreender/ a culpa...”.

Cabeça coração é um disco que, se ouvido atenciosamente, consegue nos dar a importância da sua existência como obra: um álbum que trata do amor ao largo dos característicos clichês, e que, suavemente, nos defronta com o que desejamos, a cada movimento de sobrevivência, superar: as intempéries emocionais que ele – o amor – pode nos causar quando se ausenta, se distancia. E no fim de todo esse trajeto, ainda que abatido, surrado, assim como encerra Cabeça coração, ainda há a esperança de que “Só resta o amor”.



LEONARDO VILA NOVA, jornalista e músico.

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