Resenha

Para ecoar o legado de Janete Costa

Tema de livro lançado pela Cepe, a arquiteta, curadora e designer pernambucana, que este mês faria 89 anos, deixou inúmeras lições, entre elas, um olhar de apreço para a arte popular

TEXTO Bruno Albertim

04 de Junho de 2021

Janete Costa na Bienal de Valência

Janete Costa na Bienal de Valência

Foto Divulgação

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Ainda no século XVI, o escritor baiano Gregório de Mattos ganhou a alcunha de Boca do Inferno. Dentre outros “elogios” distribuídos, por cunhar uma certa “síndrome de mazombo” como traço permanente das elites brasileiras a lamentar não terem nascido na Europa. Filha de colonos estrangeiros, não sendo nem propriamente portuguesa nem exatamente brasileira, essa elite seria uma “desterrada” em sua própria terra, sem se reconhecer no que fosse originalmente brasileiro. Grande designer de interiores – e muito, muitíssimo mais do que isso –, a arquiteta pernambucana Janete Costa (1932-2008) ajudou, conscientemente, a corroer esse tal “mazombismo” cultivado nesta margem do Atlântico.

Do enorme legado que deixou a arquiteta, curadora, designer e, sim, ideóloga, talvez a contribuição mais notória tenha sido a de fragilizar essa tão antiga quanto cafona fronteira de expressão estética. Depois de Janete Costa, seria possível perceber o belo para além do padrão eurocêntrico gerador de velhos preconceitos de classe. “Janete não hierarquiza e nem distancia o erudito e o popular. Isso estava refletido no próprio desenho dos ambientes e, também, no gesto de realizar exposições em museus, onde a criação periférica passa a ocupar um patamar de legitimação artística institucional oficial e recebe uma chancela”, observa o crítico pernambucano Julio Cavani, um dos quatro ensaístas elencados para escrever Janete Costa – arquitetura, design e arte popular.

Em formato de livro de arte, o volume de cerca de 160 páginas, recém-lançado pela Companhia Editora de Pernambuco – Cepe, cumpre o papel de desenhar a mulher que jamais coube numa só moldura. Janete provou: o popular não apenas pode, mas deve conviver com o erudito, influenciando gerações não apenas de arquitetos, mas de artistas, curadores, críticos, artesãos e o próprio mercado. Uma trajetória ainda carente do devido reconhecimento: “Talvez por ser mulher e nordestina, uma combinação ainda muito subestimada no meio arquitetônico nacional”, acredita Cavani.



Para dar conta da trajetória profissional com a contribuição estética e técnica documentada em extensa pesquisa fotográfica, o livro conta também com textos críticos do curador Marcus Lontra, do designer Marcelo Rosenbaum e da também crítica e curadora Adélia Borges. Todos, de alguma forma, impactados pelo pensamento de Janete Costa.  

Historiadora de design, Adélia Borges escreve que, para Janete, ter nascido uma brasileira da cidade de Garanhuns foi decisivo em sua trajetória. “Daí decorreu uma ação determinante em valorizar a criação popular do Brasil, e a procura contínua por induzir a inclusão social através de seus projetos”, discorre Adélia. Um caminho de desbravamentos: “A criação popular era associada, em princípio, à pobreza, algo que se quer apagar, esquecer, superar”, continua.

Marcelo Rosenbaum havia conhecido Janete na Feira Nacional de Negócios do Artesanato, a Fenearte onde ela criara, em 2002, o Espaço Interferência. Hoje rebatizado com o nome da arquiteta, segue com a proposta de inserir elementos do artesanato e da arte popular em ambientes urbanos e cosmopolitas, dando provas de suas versatilidades. “Das coisas mais lindas que já ouvi de Janete Costa foi quando contou que seus brinquedos de infância eram a boneca de pano, o pote de barro, objetos cotidianos. Eu a vejo como a fusão do simples com o sofisticado”, diz ele.  

Janete Costa insistia: o ponto de partida de industriais e designers no Brasil para a criação de peças com identidade deveria ser o artesanato. Dizia ser o Nordeste muito mais rico em mestres e artesãos por influência dos contrastes sociais. “O contraste não é só na cor, na proposta; é também no comportamento, no sentimento. Uma parte feita à mão humaniza o espaço. Porque você terá dentro desse espaço o elemento técnico, o elemento industrial, e também o elemento emocional”, disse a própria Janete, em entrevista a Adélia, para uma revista italiana. 


Detalhe interno da casa de Janete e Borsoi em São Conrado (RJ).
Foto: Divulgação


Além dos primeiros contatos intensos com o artesanato e a arte popular, foi já na infância e na adolescência que a pernambucana solidificou alguns traços de seu trabalho. Herdou muito da disciplina com o pai, o empresário Francisco Ferreira da Costa. Com o avô, tinha adquirido intimidade com o comércio: João Ferreira da Costa havia fundado, em Garanhuns, a Ferreira Costa, primeira loja de uma rede especializada em materiais de construção e design acessível para o dia a dia. Como vários pernambucanos de sua época, em sua infância brincava com os bonecos de Mestre Vitalino, vendidos, sem quaisquer pretensões autorais ou artísticas, na feira da “vizinha” Caruaru.

Além de mestres e parceiros como Roberto Burle Marx, Oscar Niemeyer, Sérgio Rodrigues e Lina Bo Bardi, e o marido e sócio de vida pessoal e profissional Acácio Gil Borsoi, Janete sempre citou a infância no agreste pernambucano como coluna estrutural da visão estético-profissional que nortearia seu trabalho como a arquiteta de interiores que fez do modernismo no Brasil uma realidade cotidiana, visível e vivencial. Com Janete, o modernismo ia além de um ideário. Concretizava-se com o popular.

Sem vaidades ou presunções, foi uma escafandrista de brasilidades ao trazer para os ambientes eruditos e mercadológicos futuros nomes da arte popular autoral nordestina. Com ela, vários passaram a ter reconhecida a condição de mestres. Com o mantra de "interferir sem ferir", procurava estimular nos artistas o que possuíam de peculiar. Tanto estimulava os artesões na reprodução de objetos lúdica e utilitariamente envolvidos com o cotidiano, como os artistas populares em seus universos poéticos-narrativos.  Acompanhava a criação de alguns desses artistas até que os considerassem suficientemente potentes para enfrentar humores de crítica e mercado. Antes apócrifos, os leões moldados em barro por Nuca de Tracunhahém, por exemplo, só passariam a ter assinatura depois da sugestão de Janete. Em 1972, ela convenceu o artesão da importância de assinalar a autoria das próprias peças.

Hierarquias não faziam parte de seu vocabulário. Foi assim nas dezenas de projetos que realizou. Utilizando tons terrosos, numa referência a materiais naturais, seus ambientes traziam o conforto visual para o espírito na mesma importância da funcionalidade. Para ela, a síntese da casa brasileira estaria na harmonização das historicidades ao redor – sem distinção de classes. Foi cosmopolita sem ser subserviente aos discursos hegemônicos de elegância. Compreendia e reorganizava, em sua escala de influência, as regras do mercado. Sem patriotadas, incorporava o discurso regionalista do modernismo de acento nordestino. Sua brasilidade era complexa.


Escultura de João da Lagoa, artista de Lagoa da Canoa,
em Alagoas. Foto: Divulgação

Como curadora e cenógrafa, realizou mais de 50 exposições, quase sempre em torno do universo popular da arte. Ainda em 1965, havia organizado o Salão Brasileiro de Arte Popular, em Natal (RN).  Durante a Conferência das Nações Unidas para o Clima, a ECO-92, realizada no Rio de Janeiro, foi curadora da mostra Viva o povo brasileiro, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ). A continuidade de um artesanato brasileiro, subscrevia, depende da saúde dos ecossistemas.

Ali, conheceu Marcus Lontra como seu assistente. “Poucas vezes na minha vida aprendi tanto e em tão pouco tempo com alguém. As obras chegavam de diversas partes do Brasil e encantavam pela sua força e criatividade”, diz Lontra. Seus ambientes, recorda o carioca, tinham a densidade narrativa de obras de arte. “São lugares de convívio, de troca, de festa, mas são também lugares de recolhimento, de silêncio e contemplação”, segue o curador. Ou como, mais uma vez, sintetiza cirurgicamente Julio Cavani: “Ao destruir preconceitos, ela transformava visões de mundo com sua postura quase revolucionária, que realmente tornou-se um marco histórico”.

BRUNO ALBERTIM é jornalista e antropólogo. Autor de, entre outros, Tereza Costa Rêgo – uma mulher em três tempos (Cepe Editora, 2019) e Nordeste – identidade comestível (Massangana/Fundaj, 2020). Também ganhador de um Prêmio Esso de Jornalismo.

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