Resenha

Olhares negros

O artista Jeff Alan leva para a Caixa Cultural a exposição 'Comigo ninguém pode', colocando as pessoas negras em protagonismo não só nas pinturas, mas também na ocupação do equipamento cultural

TEXTO Erika Muniz

13 de Novembro de 2023

O caminho a seguir

O caminho a seguir

Imagem Arnaldo Sete/Fervo/ Divulgação

De frente para o Marco Zero, um prédio amarelo datado de 1912 integra a paisagem de um dos principais cenários turísticos da cidade. Lá, desde 2012, funciona a Caixa Cultural Recife, que abriga dois pavimentos dedicados às artes visuais. Ao entrar na instituição agora, o público é recebido pela exposição Comigo ninguém pode – A pintura de Jeff Alan, individual do artista pernambucano, com curadoria assinada pelo jornalista, escritor e pesquisador Bruno Albertim.

A dupla já havia trabalhado junto, na primeira versão da mostra, sediada na Casa Estação da Luz, em Olinda, em 2022. Desta vez, a exposição conta com 19 trabalhos inéditos, entre as 57 obras, que apresentam diferentes dimensões e paletas de cores intensas. Mas, desde a noite de abertura, no dia sete deste mês, as pinturas do pernambucano demostram alcançar também dimensões outras, muito além das fronteiras que as paredes centenárias do prédio da Caixa Cultural ou mesmo de outras instituições artísticas costumam delimitar.


Jeff Alan apresenta 19 trabalhos inéditos na mostra.
Foto: Shilton Araújo/Divulgação

Com apresentação da DJ Boneka e recorde de público, o evento de lançamento levou, só nesse primeiro dia, mais de mil pessoas ao salão principal da Caixa Cultural, contando com a presença de vizinhos, familiares e amigos do artista. Muitos deles moradores do Barro, bairro da Zona Oeste do Recife, onde Jeff Alan nasceu, se criou e atualmente reside. No primeiro andar, está acontecendo a mostra Lágrimas de São Pedro, de Vinícius S.A.

No centro da galeria localizada no térreo, um vaso abriga a planta que dá título à mostra. Com suas folhas imponentes e estampadas, a comigo-ninguém-pode resguarda o ambiente onde estão distribuídos retratos pintados pelo artista, evidenciando o potencial duplo que ela tem de ser capaz de embelezar qualquer lugar, mas também de ser um elemento simbólico de religiosidade e proteção, com potencial de afastar as más energias para bem longe.

Na exposição, existe um ponto estratégico em que é possível ao visitante observar as obras, de modo que um grande número das pessoas negras representadas nas pinturas dirijam seus olhares em direção a quem as observa. “É assim que pessoas brancas que não querem o nosso povo nesses equipamentos de cultura, nos olham. Lembro de exposições que fui visitar e tinha gente me seguindo, porque eu estava sujo de tinta. Aqueles olhares”, relata o artista, em entrevista à Continente. Em Comigo ninguém pode, além dos visitantes da mostra terem a agência de olharem as obras, as próprias pinturas também são capazes de devolver o (ato, a ação de) olhar a quem as observa. É como se houvesse uma espécie de inversão, que desse agência às obras e àqueles protagonistas representados nelas.


 Eu não ando só (obra em andamento).
Imagem: Arnaldo Sete/Fervo/ Divulgação

Espaços como galerias, museus ou exposições em instituições culturais precisam ser mais acessados por pessoas nas suas diferentes vivências, considerando questões étnico-raciais, de classes sociais, gêneros e territorialidades. Concebidos como espaços de legitimação e fruição artística, lugares como esses que citei, no entanto, acabam muitas vezes reproduzindo – tanto no campo simbólico quanto no campo material, e essas instâncias operam juntas – práticas e discursos colonialistas, sendo usufruídos quase que exclusivamente por uma minoria formada por determinados grupos sociais “elitizados”. Essas ausências, no entanto, precisam – e com urgência – ser convertidas em presenças. Porém, de que modo? Se, em muitos ambientes das artes – e, aqui, ratifico os referentes às ditas artes visuais, onde existe forte circulação de capital financeiro e “intelectual” costuma-se reiterar práticas colonialistas, afastando (ou colocando em situações de subalternidade) pessoas negras, indígenas, LGBTQIAPN+ desses lugares.

Dito isso, a mostra individual Comigo ninguém pode – A pintura de Jeff Alan traz, além do protagonismo de um artista preto, periférico do Recife, retratando pessoas pretas de seu convívio ou que já cruzaram seu cotidiano em suas potencialidades e histórias diversas, essas pessoas também foram usufruir da galeria onde seus retratos estão, evidenciando que aquele lugar – como outros também – são espaços em que seus corpos e narrativas também são relevantes. Mas relevantes não somente “para inglês ver”, citando o título de outra mostra de Jeff Alan, mas para elas e eles mesmos verem com seus próprios olhos e em suas inteirezas.


A noite de abertura da exposição bateu record de público reunindo muita gente no salão principal da Caixa Cultural. Foto: Marlon Diego/Divulgação

Na noite de abertura, acredito que tenha sido a primeira vez, em toda a minha jovem experiência como jornalista cultural – mas, sobretudo, enquanto uma pessoa branca que circula em muitas vernissages –, que pessoas brancas, como eu, não éramos a regra, isto é, a maioria, mas éramos a exceção naquele espaço do salão da Caixa Cultural. E isso ganha ainda mais beleza e importância quando se sabe que a equipe responsável pela exposição – e por esse momento – é protagonizada por pessoas negras.

Sempre acreditei que o encontro com a arte, em nossas vidas, é transformador para a sociedade de maneira bem literal mesmo. Mas também sei que não é tarefa fácil fazer com que esses encontros se alarguem para mais e mais pessoas. Se um momento como o do dia sete de novembro, na cultura pernambucana – nordestina e, portanto, brasileira – não for considerado na história da arte, talvez esteja na hora de revermos, coletivamente enquanto sociedade, o que anda balizando a tal História, essa antiga ciência moderna.

Pelos elementos que traz às telas, pelo jogo de cores intensas e apuro técnico que apresenta, a arte de Jeff Alan emociona, faz crianças sorrirem – eu vi isso muitas vezes por lá –, mas também provoca reflexões críticas e desperta o interesse de pessoas, em suas múltiplas realidades, de estarem presentes em equipamentos dedicados à arte como a Caixa Cultural.

São momentos como esse que ela, a arte, puxa uma cadeira e nos convida a pensar sobre o que, para além dali, poderíamos apreender diante de tal experiência; ou mesmo, o que do processo de atravessamento diante das criações de um grande artista, que é capaz de sintetizar histórias, vivências, alegrias, dores, situações cotidianas para transformá-las em potências emolduradas, capazes de despertar o sensível e acionar questionamentos críticos a quem se vê diante delas?

Aurora. Imagem: Arnaldo Sete/Fervo/ Divulgação

Estar diante das obras de Comigo ninguém pode – A pintura de Jeff Alan me fez lembrar do que a pensadora e feminista negra bell hooks, certa vez, escrevera: “O ‘olhar’ sempre foi político em minha vida. (…) Existe poder no olhar.” E, a partir desses dizeres, – e do dia de lançamento da exposição individual de Jeff Alan – é impossível não refletir: a quem essas possibilidades de olhar, de transitar em determinados ambientes, de agenciar construções narrativas sempre foram permitidos durante séculos em nossa sociedade?

No térreo da Caixa Cultural, os trabalhos evidenciam as subjetividades de cada vida negra representada nas pinturas, seja em telas ou mesmo numa das paredes da galeria, que conta com uma obra desenvolvida especialmente para a exposição. Ela permanecerá durante o período que a mostra estará aberta à visitação. E essa temporalidade efêmera, inclusive, demonstra um direcionamento, da curadoria, para uma parte importante da obra do pernambucano. Isto é, a sua vivência enquanto artista urbano, já que ele afirma, inclusive, ser a rua sua “primeira vitrine” e sua “primeira galeria.”

Entre os retratos que compõem a Comigo ninguém pode, uma sensibilidade alinhava uma parte considerável deles: a maioria traz olhares expressivos, demonstrando acreditar em sonhos vivos e tornando evidente que há histórias ali que precisam ser contadas, reconhecidas, narradas e, desta vez, pintadas. Desse modo, as histórias de Kátia, Luzinete Mendes, Ednaldo, Clementina, Ayana, Demba, Ualison Paulo, Eloá, Zezé Maria são algumas das que ganham cores vivas, a partir das obras construídas em linguagem figurativa, que compõem a exposição.

Sobre o título da mostra, o artista, filho de Lucilene Mendes, revela, em entrevista à Continente, que “vem da planta, mas também é uma forma de homenagear meu tio Beco e reafirmar a força e o poder dos fazeres do povo preto.”

Contigo, ninguém pode. Imagem: Arnaldo Sete/Fervo/ Divulgação

Sua relação com as comigo-ninguém-pode não começa hoje, pois vem desde a infância, já que no bairro onde vive existem muitas delas adornando as casas de moradores. Esse é, na verdade, um hábito de muitas moradias localizadas nas periferias recifenses. A planta também está no Caldinho do Beco, bar homônimo de seu tio, que faleceu em 2022. Lá, Jeff Alan costuma realizar algumas de suas pesquisas, por conta do grande fluxo de pessoas. Há sempre mães levando crianças nas escolas, pessoas a caminho do metrô ou do mercado, entre outras situações cotidianas. E desses acontecimentos e vidas, ele encontra algumas de suas referências. “Muitas dessas obras nascem desse olhar de dentro do bar para a rua. Desde que esse meu tio faleceu, senti a presença dele muito forte no meu trabalho e quis trazê-lo”, conta, sobre a homenagem.

“Minhas principais referências são as pessoas do meu convívio. Confesso que não estudo pintura, nunca estudei os grandes mestres. Se for para falar dos artistas que tenho como referência, são os vivos que caminham comigo. Acho que me inspira mais conhecer a pessoa, olhar, ter uma troca, do que só ver o trabalho da pessoa. Costumo dizer que a pintura final representa 50% da obra como um todo, o processo criativo é a maior riqueza da obra. O que me inspira é ter essas trocas. Entrar no bar do meu tio, sentar no Campo do Floresta, ir a uma feira livre, a uma praça. Eu pinto o que vejo, o que sinto, o que vivo”, conta Jeff, acerca do que lhe motiva a criar.


Ayana da Silva (obra em andamento).
Imagem: Arnaldo Sete/Fervo/ Divulgação

Grande parte da sensibilidade e conexão do curador Bruno Albertim com a obra de Jeff Alan, acontece porque: “ele fala do ir e voltar da escola, do abraço de um amigo, de um sorriso, da contemplação do sol, do estar na laje, como aquele momento de lazer ou de hedonismo, que muitas vezes, as pessoas da periferia têm. Essas coisas todas que são do mundo cotidiano e ordinário, ele traz de uma maneira arquetípica. Fico muito emocionado quando vejo essas pessoas (retratadas na obra de Jeff Alan), que não são valorizadas porque não são os ‘grandes intelectuais’ que nós lemos, não são ‘os grandes médicos’ que nos tratam, que não são esses ‘super-heróis’ nessa sociedade meritocrática da branquitude, mas que são fundamentais para o desenvolvimento da nossa afetividade, da nossa segurança emocional que vai ser trama para que a gente possa desenvolver também uma competência intelectual e futuramente profissional.”               

Aberta para visitação do público até o dia 28 de janeiro de 2024, Comigo ninguém pode tem entrada gratuita. O projeto traz, ainda, atividades culturais em outras expressões artísticas da afro-diaspórica. Apresentações da poeta e cantora Bione, do Grupo Legado Capoeira, do Barro, Balé da Cultura Negra do Recife e do núcleo de pesquisa teatral O Postinho integram a programação. As datas e horários estão disponíveis no site da Caixa Cultural.

Jeff Alan faz um convite ao público: “é importante que essas obras alcancem pessoas que não têm o hábito de frequentar esses lugares. Tem muita gente que passa na frente da Caixa Cultural e não entra. Muitas vezes porque acha que aquele lugar não é para ela, para ele. Essas pessoas precisam estar lá, não por ser gratuito, mas para entender a importância de consumir arte. E arte periférica, que fala de nós, que mostra a nossa realidade, que mostra a nossa cara. Com esses trabalhos, vou contar histórias dessa galera. Falando sobre sonhos, sobre luta, sobre dores também, sobre silenciamento, sobre invisibilidade e sobre uma vontade também grande de viver, de permanecer vivo e viver os nossos sonhos.”

 

Comigo Ninguém Pode – A pintura de Jeff Alan

CAIXA Cultural Recife (Av. Alfredo Lisboa, nº 505, Bairro do Recife)

Até 28 de janeiro de 2024

Entrada gratuita

Visitação: terça a sábado, das 10h às 20h; domingos e feriados, das 10h às 18h

A exposição conta com legendas em braile e QR code com a audiodescrição das peças.

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