Resenha

O velho combate entre política e bom jornalismo

Novo filme de Steven Spielberg, 'The Post – A guerra secreta', ensaia uma crítica atual, mas cai em antigos clichês do gênero, requentando clássicos como 'Todos os homens do presidente'

TEXTO Marcelo Abreu

26 de Janeiro de 2018

 'The Post' traz Tom Hanks e Meryl Streep como os protagonistas de caso histórico da imprensa norte-americana

'The Post' traz Tom Hanks e Meryl Streep como os protagonistas de caso histórico da imprensa norte-americana

Foto Divulgação

The Post – A guerra secreta, o novo filme de Steven Spielberg, tem sido elogiado como uma metáfora das relações entre poder e imprensa no governo de Donald Trump, um lançamento com “timing perfeito” nessa era de fake news. Mas tudo isso não passa de estratégia de marketing para levar desavisados ao cinema. A história que ele conta se passa no ano de 1971, já foi amplamente documentada e, no filme, é basicamente fiel aos fatos. Portanto, querer ver um comentário sobre fake news ou outras mazelas contemporâneas é irrelevante. Alguma semelhança teria com o caso do Wikileaks, mas o filme evita entrar na discussão ética sobre privacidade e, de toda forma, a era digital parecia tão distante em 1971 como as viagens ao planeta Júpiter.

The Post é simplesmente a velha e boa história de um confronto: de um lado, o interesse do bom jornalismo em revelar documentos secretos de relevância vital para a população. Do outro, o interesse de sucessivos governos norte-americanos em esconder a realidade da Guerra do Vietnã (de Dwight Eisenhower, em 1953, até Richard Nixon, nos anos 1970). No filme, um conjunto de relatórios secretos contendo uma análise realista da inviabilidade do combate no Vietnã é passado para a imprensa pelo funcionário do Pentágono Daniel Ellsberg, um militar que se torna pacifista. Primeiro, os documentos chegam ao New York Times e depois ao Washington Post. Os relatórios ficariam conhecidos como The Pentagon papers (os Documentos do Pentágono), e sua publicação seria decidida na Suprema Corte, num dos casos célebres sobre liberdade de imprensa nos Estados Unidos.

O filme minimiza o papel do New York Times no caso, o que foi apontado por grandes nomes do jornal que viveram a época. O objetivo era mesmo abordar o drama interno no Washington Post, vivenciado pela publisher Katharine Graham (interpretada por Meryl Streep), que temia publicar os documentos e ser soterrada pelos processos do governo, justamente no momento em que a empresa abria seu capital na Bolsa de Valores. E destacar ainda o diretor de redação, o impetuoso Ben Bradley, vivido por Tom Hanks, que queria publicar o material de todo jeito.

É inevitável que o filme de Spielberg seja comparado a Todos os homens do presidente, um clássico do gênero. A obra de Alan J. Pakula, lançada em 1976, contava os acontecimentos do ano seguinte aos Documentos do Pentágono, passados no mesmo jornal, quando, em 1972, houve um arrombamento em um comitê do Partido Democrata sediado no edifício Watergate, em Washington. O incidente tornou-se o conhecido Caso Watergate. Investigado por dois repórteres do Post, Carl Bernstein (no filme interpretado por Dustin Hoffman) e Bob Woodward (Robert Redford), resultou na renúncia do presidente Nixon, em agosto de 1974.


Cena do clássico Todos os homens do presidente, de 1976

Feito no calor dos acontecimentos, Todos os homens do presidente é um filme contemporâneo aos fatos que são narrados, portanto não é uma produção de época. Por sua vez, The Post reconstitui uma época. O filme copia de Todos os homens certos enquadramentos (em cinema, a cópia quase sempre é defendida como sendo uma “citação” ou uma “homenagem” ao original), como, por exemplo, o movimento da câmera em travelling acompanhando a correria dos jornalistas na redação. Mas ao contrário do primeiro, The Post é um filme escuro. A redação perde a luz e o brilho que tinha em Todos os homens e parece mais pobre. Se é uma metáfora proposital, ela soa descabida porque o jornalismo norte-americano vivia, nos anos 1970, talvez o melhor momento de sua história, com grandes tiragens e relevância social sem precedentes. Os Documentos do Pentágono e o Caso Watergate são justamente os momentos principais de período áureo.

Meryl Streep, mais uma vez indicada ao Oscar, desempenha um papel difícil. Katharine Graham (1917-2001) aparece como uma pessoa delicada, hesitante, insegura, o que exige da atriz muito comedimento, justamente o oposto do que muita gente espera de uma grande interpretação. A destacar o seu relacionamento com o mundo masculino da diretoria do jornal, mas o filme não deixa o espaço necessário para uma abordagem psicológica mais aprofundada. Tom Hanks tem o trabalho mais facilitado porque Ben Bradlee (1921-2014) faz o papel do chefe durão, que coloca os pés sobre a mesa o tempo todo, e é irônico até com a dona do jornal. Mas fica ainda a imagem do ator Jason Robards no filme de Pakula, mais adequado para o papel (vencedor do Oscar de melhor ator coadjuvante naquele ano).


Tom Hanks é o diretor de redação, o chefe durão dirigido por Spielberg

Spielberg entrou num terreno já bem explorado. O governo Nixon (1969-1974) tem sido tratado no cinema por excelentes trabalhos. Além do filme de Alan Pakula, houve A honra secreta (1984), de Robert Altman, no qual o ator Philip Bakker Hall, em um monólogo, interpreta um Nixon solitário na Casa Branca, relutando em renunciar. E o Frost/Nixon, de 2009, de Ron Howard, sobre uma entrevista do então já ex-presidente dada ao jornalista inglês David Frost.

The Post acaba se revelando um filme menor na carreira de Spielberg. O recente Ponte dos espiões (2015), por exemplo, oferece uma reconstituição histórica bem mais apurada. Mas devido ao tema, o novo trabalho – indicado também ao Oscar na categoria de melhor filme – tem tudo para agradar aos formadores de opinião: apresenta um duelo da imprensa reveladora contra um governo que mente à população; mostra o jornalismo romântico da era antes da impressão em off-set (a composição era na base do linotipo, tipos de chumbo utilizados na montagem de cada página antes da impressão); expõe uma dona de jornal interessada em manter a qualidade e a quantidade de sua equipe de repórteres. Tudo isso parece tão distante e faz a delícia de todos que têm saudade de tempos melhores no jornalismo.

Mas incomoda no novo trabalho a quantidade de clichês presente nesse gênero de filme: os telefonemas rápidos e secretos entre repórteres e fontes, as máquinas rodando uma nova edição do jornal, os editores ofegantes entrando na sala do diretor de redação com novidades, as pressões dos círculos do poder sobre os donos do jornal. Cenas que vêm sendo mostradas há décadas. Spotlight – Segredos revelados (2016), de Thomas McCarthy, nos lembrou de tudo isso há apenas dois anos. Spielberg poderia ter tentado alguma abordagem mais criativa. Do jeito que foi feito, The Post poderia ser qualificado pelo neologismo prequel, ou pré-sequência, como fizeram a partir do quarto Guerra nas estrelas – A ameaça fantasma (1999). Ou poderíamos chamar o filme de Spielberg como Todos os homens do presidente – A origem, inaugurando uma nova série de cinema dedicada ao suspense político-jornalístico.

MARCELO ABREU é jornalista e autor do livro Viva o Grande Líder – Um repórter brasileiro na Coreia do Norte.

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