Pensar numa adaptação deste livro para o teatro é desafiador. O receio de se perder o intrincamento de palavras que dá alma à narrativa pode ser engessante. Para aqueles que leram o livro, o medo é de não encontrar a alma da narrativa de Bei; para aqueles que não leram, o questionamento é se verão algo sem grandes novidades. A atriz Helena Cerello e o diretor Nelson Baskerville encontraram uma solução para essas dúvidas e estrearam, no último sábado (22), uma adaptação cênica do livro que busca provocar na audiência os mesmos sentimentos transmitidos pelo formato literário, independente se houve ou não contato prévio com a história.
Capa do primeiro ato da peça online (esq.) e capa do livro (dir.)
Propositalmente fiel ao livro, e produzida num momento em que a arte está criando novos modos de expressão, a peça não vem com pretensões de espetáculo, recebendo o título de “experiência teatral”. Em entrevista à Continente, a atriz e idealizadora nos conta: “Desde o começo, nos propomos a contar a história. Não sabíamos se seria uma peça, um subproduto de audiovisual... Então, sempre tivemos esse cuidado de não colocar muitas expectativas, com a consciência de que estamos vivendo num momento em que está todo mundo com uma certa limitação. Tem fragilidades e elas estão presentes”. Isso porque a apresentação, que começou a ser construída em setembro do ano passado, teve que passar por reformulações até chegar a um modelo viável para o ambiente virtual, adequado à quarentena de teatros fechados, sem palco. A escolha foi por um híbrido de ao vivo e audiovisual, com trechos pré-filmados intercalados com encenação em live. E a potência de atuação de Helena nos envolve na trama de forma a dificultar a diferenciação entre o ao vivo e o gravado.
Além de atuar, Helena foi responsável por captar todas as imagens. Durante três meses, as cenas foram filmadas no sítio onde ela passa a quarentena, no interior de São Paulo, e enviadas para Nelson Baskerville, que dirigiu a peça a distância, em sua residência, localizada na capital paulista. No momento da apresentação, a transição entre o ao vivo e o gravado é feita pelo músico e sonoplasta Daniel Maia, através de estúdio montado em sua casa. Ele também é autor da trilha sonora original, que une música instrumental e inserções de áudios do ambiente, como sons da natureza e de crianças brincando.
aconteça o que acontecer um morto está
morto. não há urgência que o faça levantar ou
ser triste
tampouco alegre, é o nada absoluto que
me soa como belo, e se eu
me matasse?
(Trecho do romance. Imagem: Reprodução)
Por ser uma peça de 50 minutos, o livro não pôde ser contado na íntegra, daí a necessidade de se fazerem adaptações, rearranjos e cortes no texto literário para construir o roteiro, mas com o cuidado de respeitar a essência do fio narrativo e mostrar a progressão de idade da personagem. O ar pessoal e íntimo da história é conferido também pela escolha do tipo de filmagem feita em selfie pela atriz, com muitos closes no seu rosto e em suas expressões. A câmera se movimenta como se contracenasse com Helena, que guia nosso olhar e cria a ilusão de múltiplos personagens, ao mudar o seu tom da voz. Além disso, algumas cenas incorporam elementos da arte circense e do ilusionismo, funcionando como pontos de leveza em meio a temáticas tão densas.
"No dia em que eu li o livro, tive a certeza: esse livro foi feito para virar uma história contada. Porque o jeito que ele foi escrito parecia que estava vivo", diz Helena, que também é amiga pessoal da autora do romance, formadas na mesma escola de teatro. A confiança entre elas se refletiu na liberdade dada à adaptação do texto e, ao final da montagem, Aline Bei também aparece para uma leitura expressiva dos últimos trechos do livro. Sua imagem é sobreposta com uma cena que todos os leitores do livro esperavam presenciar ao lerem o fim do romance. Uma redenção; um acalanto frente aos pesares sofridos pela personagem ao longo de sua vida.
o Vento estava em casa esperando e isso a deixou tão
feliz que ela não acordou, não pôde,
nem o gorfo conseguiu e então
nunca mais.
(Trecho original do romance lido por Aline Bei na peça. Imagem: Reprodução)
A peça O peso do pássaro morto conta com delicadeza e coragem uma história que merece (e deve) ser ouvida, pois não se sabe quantas pessoas carregam, em silêncio, o peso morto de uma existência sem afeto. A temporada segue em cartaz até 27 de setembro, sempre aos sábados e domingos, às 16h. Parte da arrecadação será destinada à CEDECA Casa Renascer (ONG que luta pelos direitos de crianças e adolescentes em situação de risco, em especial vítimas de violência sexual). Os ingressos ficam à venda através da plataforma Sympla: www.sympla.com.br/opesodopassaromorto.
TAYNÃ OLIMPIA é jornalista em formação pela UFPE e estagiária da Continente.