Resenha

O paraíso de Lucas Santtana

Novo álbum do músico baiano reflete sobre a biosfera, temas ambientais e a vida na Terra, o único planeta habitável conhecido por nós

TEXTO Leonardo Vila Nova

24 de Março de 2023

O cantor, compositor e músico Lucas Santtana

O cantor, compositor e músico Lucas Santtana

Foto Jérome Witz/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

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Sim, sim, sim/ O paraíso já é aqui.”
Mesmo diante desta Terra que vem sendo degradada e malcuidada pela humanidade, e de projeções bastante pessimistas (ou realistas?) quanto ao nosso futuro como seres do único planeta (ainda) habitável conhecido, esses versos de Lucas Santtana teimam em alertar que, ainda assim, este é o lugar. É na Terra onde podemos usufruir de uma série de riquezas naturais e orgânicas que, em sistema, ainda seguram as pontas para garantir nossa existência e sobrevivência.

O “recado” do artista está nos primeiros versos da música O paraíso, que abre o seu álbum homônimo, lançado no início deste ano. O novo trabalho do cantor, compositor e músico baiano Lucas Santtana versa sobre questões ambientais, crise climática, nossa relação com a Terra, com a natureza e com os demais seres que compõem esse macro-organismo. Mas, em O paraíso, Lucas não segue a linha “alarmista” e “apocalíptica” adotada, em geral, nos trabalhos sobre a questão. Há, sobretudo, um quê de esperança nas letras, e de reflexão sobre a biosfera e a sua importância para manter em equilíbrio a cadeia vivente terrestre.

O disco foi se apresentando a Lucas durante o período pandêmico, no qual ele, recolhido, deparou-se com insights provocados a partir da leitura de alguns livros, entre eles, A Terra inabitável, do jornalista David Wallace-Wells. O documentário Simbiotic Earth, com a bióloga Lynn Margulis, foi outro “detonador” do ideário que compõe o discurso de O paraíso. “Ela deu um passo à frente no entendimento de Darwin, de que a evolução na Terra havia se dado pela competição. Ela provou que não, que essa evolução se deu pela simbiose, pela cooperação entre vários seres, por causa de bactérias, de seres microscópicos que regulam para que a atmosfera seja assim até hoje. Tem uma porrada de seres, neste exato momento, trabalhando pra que a gente respire oxigênio, beba água, plante sementes no chão pra colher nosso alimento”, comentou Lucas à Continente. “Essas leituras e o conhecimento dessas coisas sobre este Planeta me encheram de muito amor.”


Capa do disco. Imagem: Divulgação

Morando desde maio de 2022 em Montpellier, no Sul da França, Lucas contou com um time francês na feitura do disco, a pedido da gravadora No Format, que cuida do seu trabalho na Europa. O paraíso foi gravado e mixado em Paris, por Fred Soulard, que também toca sintetizadores e marimba, e traz os músicos Remi Sciuto e Sylvain Bardiau (sopros), Vincent Segal (cello) e Zé Luis Nascimento (percussão), baiano que vive em Paris há cerca de três décadas. Além disso, conta com as participações das cantoras Flavia Coelho e Flore Benguigi (banda L’imperatrice). O resultado é um disco de apuro e refinamento sonoro, que consegue agregar o orgânico e o eletrônico, criando uma tessitura por vezes onírica. É de forma muito sutil que os sons digitais e as batidas que nos levam a um cenário mais universal são entrelaçados a ritmos como a capoeira, o maracatu, o pagodão e até a música caribenha.

São 10 canções no álbum, sendo duas releituras: Errare humanun est, de Jorge Bem (Jor), e The fool on the hill, dos Beatles, que, segundo Lucas, têm letras que casavam perfeitamente com o conceito do disco. “Em 1974, o cara (Jorge Ben) já falava que não somos os primeiros seres terrestres, pois herdamos uma ‘herança cósmica’. E a Nasa provou que todos os elementos químicos presentes na Terra e em nós – como o carbono, oxigênio, nitrogênio e outros –  vieram do espaço”, disse. “Em The fool on the hill, a letra me lembra muito a sabedoria ameríndia de avisar, questionar como estamos lidando com a Terra, esse ‘amor ao progresso’ que destrói tudo. E a letra fala de um cara que tá falando às pessoas algo que elas não percebem e que ninguém dá bola. O Krenak, por exemplo, tá aí falando há anos. E eles tão falando algo para a sobrevivência do mundo inteiro, não só deles.”

Lucas canta em quatro idiomas no disco: português, francês, inglês e espanhol, o que ratifica a necessidade da discussão desse assunto se dar em âmbito global.  What’ life, segunda faixa do disco, é baseada na resposta de Lynn Margulis à pergunta “O que é a vida?”, no filme Simbiotic Earth. Na Biosphère, primeira composição de Lucas em francês, ele pergunta: “Où sont les civilisés? Où sont les sauvages? (“Onde estão os civilizados? Onde estão os selvagens?”), questionando o modelo civilizatório e de progresso imposto pela humanidade.


Foto: Jérome Witz/Divulgação

Encerrando o álbum, Sobre la memoria, que chama atenção para a importância da memória no processo de desenvolvimento dos seres, do planeta. “A evolução da vida na Terra foi feita graças à memória. Uma borboleta, até conseguir fazer a sua transformação, teve que repetir o processo milhares de vezes até que isso geneticamente fosse passado de geração a geração. Até as cianobactérias aprenderem que podiam comer água e expelir oxigênio, passaram-se bilhões de anos. E é por conta dessa memória aprendida que hoje temos uma atmosfera terrestre com 20% de oxigênio”, afirma Lucas no release de O paraíso.

Muita pose, pouca yoga, com participação de Flavia Coelho, foi feita por Lucas a partir de frases que integram o projeto Lambes do Mal, do cineasta Daniel Lisboa, que consiste em pôsteres espalhados pelas ruas de Salvador, com dizeres curtos que falam, de forma ácida e bem-humorada, sobre questões políticas e comportamentais. Lucas reuniu e reordenou várias dessas frases, de modo que fizessem sentido como letra de música. Em resumo, dá uma estocada nos “praticantes de yoga de Instagram”. Vamos ficar na Terra versa sobre o casamento entre a ganância e o consumo e o estrago que isso provoca na natureza, no lar que habitamos, e em nós.

“Esse disco fala sobre a vida na Terra”, resume Lucas. “Se existe algum paraíso, já é aqui. Onde somos parte de um imenso bioma, também chamado de biosfera, propulsor da vida que se dá, não por competição, como diziam os darwinistas, mas por simbiose e cooperação. Em um mundo fragmentado e exaurido, conectar-se com os outros seres aqui presentes é a única forma de sobre-viver”, pontua o baiano, cidadão do mundo, dando um recado – tão urgente quanto esperançoso – a todes que por aqui estão.

LEONARDO VILA NOVA, músico e jornalista cultural.

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