Resenha

Nesta terra tudo ainda é cana-de-açúcar

'Propriedade', filme de Daniel Bandeira, estreia com ares de novo clássico do cinema pernambucano

TEXTO Bruno Albertim

20 de Dezembro de 2023

'Propriedade' é o segundo longa-metragem de Daniel Bandeira

'Propriedade' é o segundo longa-metragem de Daniel Bandeira

Foto Símio Filmes/Divulgação

[conteúdo exclusivo da Continente Online]


Rio de Janeiro –
Os últimos quinze anos fizeram um bem enorme a Daniel Bandeira. Lá atrás, com o envolvente e um tanto infante Amigos de risco, o pernambucano anunciava o diretor que se tornaria. Com uma trama sobre um grupo de camaradas numa noite errática do Recife, ele informava o desejo de querer conquistar mecanismos de linguagem de certo cinema de gênero pouco comum no país.

Depois de colaborar com outros contemporâneos importantes – Gabriel Mascaro e Kleber Mendonça Filho entre eles – Bandeira teve tempo o bastante para amadurecer seu argumento e ressurge magistralmente maduro com seu novo e segundo longa-metragem. Com distribuição nacional da Vitrine Filmes, prêmios e elogios angariados em festivais importantes do mundo, como o de Berlim, Propriedade estreia no dia 21 de dezembro nos cinemas de todo o País com ares de “filme de ano”. Temos, aqui, um naticlássico do cinema pernambucano contemporâneo.

Com a trama, Daniel se mostra soberbamente hábil em duas frentes: um domínio absurdo do cinema de suspense e uma visão aguda da realidade ao redor. Quinze anos depois de sua estreia como diretor,  parece atualizar, de maneira personalíssima, uma frase de antologia de seu conterrâneo Gilberto Freyre. Em 1939, quando publicou o livro Assucar, o sociológico informou que, sem ele, o açúcar, não seria possível entender “o homem do Nordeste”. Quis o escritor informar que o substrato doce da cana adoçou irreversivelmente algumas das relações sociais da região onde o Brasil começou. Agora, Daniel atualiza a equação, como se dissesse: sem açúcar, não se entende as perversidades do Nordeste.

Propriedade é um thriller psicológico e de suspense sobre o (des)estado geral das coisas no Nordeste contemporâneo, a partir do trinômio que funda o açúcar como elemento viabilizador do projeto colonial português nesta margem do Atlântico: o latifúndio, a monocultura e o trabalho de homens e mulheres escravizados – tendo, quase sempre, a linha de cor da pele como faixa de distinção social. Poucas vezes, um diretor alcança a primazia em dois aspectos aqui tão imbricados: garantir entretenimento com uma manipulação cirúrgica da linguagem e nos apresentar uma visão coerente, agudamente sociológica do Nordeste que ainda destila açúcar no sangue que mina nos terreiros e asfaltos.

“Eu cresci com esse cinema de gênero, com o policial, com os filmes de horror”, explicou o diretor, em conversa com a Continente, após uma sessão de pré-estreia realizada semana passada na cidade do Rio de Janeiro. “Esse cinema tem estruturas de uma comunicação muito direta e fácil com o público em geral. No entanto, eu procuro usar essa zona de conforto para trazer camadas de interpretação da realidade. Esse cinema me permite que saia do registro do real, que aumente a intensidade das cenas, das relações de causalidade. Posso dar esse toque de extravagância. Através da simplicidade, apresentar a complexidade dos temas que eu quero abordar”.

Malu Galli vive a personagem Teresa em Propriedade. Foto: Símio Filmes/Divulgação

Claustrofóbico como um Parasita (filme do sul-coreano Bong Joon-hoo, grande aclamação do Oscar de 2020) da Zona da Mata Norte de Pernambuco, Propriedade se desenvolve a partir do trauma de uma estilista de presumida origem sudestina, mãe de uma pernambucana, casada com um empresário e proprietário de terras de lastro rural no Recife – uma família moradora da Avenida Boa Viagem, trecho onde vive o topo da pirâmide social na zona sul recifense.

Depois de sofrer um episódio de violência urbana na capital pernambucana, cruamente apresentado como prólogo do filme, a personagem da (magistral) atriz Malu Galli concorda em visitar a fazenda da família com o marido. Ela não saba, mas a massa de colonos trabalhadores do local acaba de ser sumariamente dispensada e desterrada. Envolvida num episódio bissexto de uma luta de classes cabocla, ela precisa se enclausurar em seu carro, devidamente blindado, para se proteger dos desdobramentos improváveis de dois universos sociais tão próximos como separados, em franca colisão.

Com a licença do clichê: é o tipo de filme que, mal nos apresentada a trama, nos dá vontade imediata de levantar da poltrona. Mas do qual não conseguimos fugir: quadro a quadro, Propriedade se impõe magnético. Com digressões temporais, dinâmica cirúrgica nos cortes e reapresentação dos fatos sob ângulos diversos, o diretor usa tintas hiper-realistas para imprimir os fatos de uma maneira alegoricamente real, com a cumplicidade bem orquestrada da fotografia de Pedro Sotero e dos figurinos de Andrea Monteiro. Não há maniqueísmos possíveis: primitivos em vários tons, todos estão cúmplices da barbárie.

No filme, Daniel conta com duas grandes co-autoras. Ancoradas por Samuel Santos e atores ao redor do grupo cultural O Poste, Malu Galli e a pernambucana Zuleika Ferreira se mostram atrizes imensas como os pêndulos opostos da narrativa.  Mais que intérpretes, de fato, duas grandes co-autoras do filme.

De uma inteligência corporal acima do comum, Malu imprime grande discursividade em seu corpo confinado e angustiado na pele da urbana e elegante Teresa. Zuleika é a tragédia grega em corpo agreste, os sulcos da face talhada de sol intensificam sua personagem.

A atriz Zuleika Ferreira está no elenco. Foto: Símio Filmes/Divulgação

Personificam, em campos opostos, esta luta de classes morena a bissexta. Praticamente sem falas, Malu, atriz de larga experiência teatral – como ela mesma disse, – “não textocêntrico”, na pele de uma mulher urbana, cosmopolita e cúmplice em suas bolhas de apatia e omissão. Zuleika, mulher de coragem, tralhada entre o patriarcado machista de baixa renda de trabalhadores da cana e cuidado do pasto. São, em trama agreste, duas heroínas da tragédia grega. Vitimadas por desterros pessoais, não podem fugir a seus destinos, presas, em latitudes existenciais diferentes, a seus destinos materializados em sobrenomes e documentos a esse desastre chamado terra. Muitíssimo bem afinado e coreografado, o elenco (impossível nominar a todos, embora necessário) age como o coro na estrutura grega da tragédia: comentando e interferindo sutilmente nos caminhos das duas heroínas despencadas de si.

“No caso de Malu, me interessa ter uma atriz, como é o caso dela, já conhecida em novelas, mas que tivesse uma garra e uma disposição pouco conhecidas. Conversando, confirmamos essa disposição”, diz Daniel. “Zuleika me capturou muito rapidamente como essa mulher que vem da terra e trabalha com uma sensação de fragilidade que logo vai a um pragmatismo que beira a crueldade”, segue.

Que nesta terra, tudo que é chão ou asfalto ou mesmo boi, ainda é cana-de-açúcar. Num país de donos tão invisíveis como concretos, Daniel Bandeira não poderia ter escolhido nome melhor para seu filme. Propriedade nasce como um novo clássico do cinema contemporâneo do Brasil  e dá provas de que Pernambuco, com suas narrativas sociais perversamente adoçadas, ainda tem muito a dizer ao país com seu cinema. Cotação: de um a cinco, dez roletes de cana-de-açúcar.

Propriedade
Direção: Daniel Bandeira
Roteiro: Daniel Bandeira
Produção: Kika Latache, Livia de Melo
Direção de Produção: Juliana Calles e Tiago Melo
Elenco: Malu Galli, Zuleika Ferreira, Tavinho Teixeira, Sandro Guerra, Roberta Lúcia, Amara Rita Magalhães, Marcílio Moraes, Nivaldo Nascimento, Clebia Sousa, Marília Souto, Chris Veras, Carlos Amorim, Anderson Cleber, Aruandhê Pereira, Andala Quituche, Natureza Rodrigues, Maria José Sales, Ângelo Fàbio, Ane Oliva, Samuel Santos, Edilson Silva, Erick Silva
Direção de Fotografia: Pedro Sotero
Direção de Arte: Maira Mesquita
Figurino: Andréa Monteiro
Montagem: Matheus Farias


BRUNO ALBERTIM, jornalista, antropólogo e escritor. Autor de Tereza Costa Rêgo, uma mulher em três tempos (Cepe) e Nordeste – Identidade comestível (Massangana). 

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