Resenha

Mergulho no fascínio de Clarice

Luiz Fernando Carvalho volta ao cinema com desafiadora adaptação de A Paixão Segundo GH, livro que completa 60 anos de lançamento

TEXTO Rostand Tiago

17 de Abril de 2024

FOTO Divulgação

Mais de duas décadas separam as duas incursões de Luiz Fernando Carvalho, um dos mais importantes nomes da teledramaturgia brasileira, em longas ficcionais para cinema. São 23 anos desde o lançamento de seu celebrado Lavoura Arcaica, adaptação do romance homônimo de Raduan Nassar, período no qual sua produção em televisão continuou de mãos dadas com a literatura, passando por obras de nomes como Machado de Assis, Eça de Queiroz e Ariano Suassuna, trabalhando com estruturas narrativas clássicas, mesmo que talvez em níveis diferentes de classicidade.

Agora seu retorno ao cinema continua com seu apego à produção literária nacional, ao mesmo tempo em que rompe energicamente com a narratividade clássica, a partir do enigma, fascínio, angústia, contemplação e êxtase de Clarice Lispector ao trazer para as telas A Paixão Segundo G.H, já em cartaz nos cinemas brasileiros. Carvalho se lança no desafio de transpor o vórtice filosófico, rítmico e sensorial das palavras de Lispector para a gramática do cinema em busca de uma unidade. Tropeça em algumas pedras nesse caminho, mas acaba conseguindo fazer o próprio esforço ser uma sólida aproximação do tom proposto pelo texto à linguagem cinematográfica.

Para realizar esta empreitada, A Paixão Segundo G.H estabelece logo de cara, por meio de elementos fílmicos, as condições para se alcançar esse tom que é primordial para o exercício de transposição do texto. A começar pelas dimensões da tela, em uma apertada razão de 4:3, fazendo com que o filme, por mais que acabe passeando por cenários variados, esteja sempre no território do sufoco. Contudo, dentro deste quadrado, opera o furacão cinematográfico que dá vazão ao furacão interno de sua protagonista, seja pelo foco volátil, pelas cores vivas, mas frias, ou pela decupagem paradoxalmente frenética e contemplativa.

Mas se há harmonia quando esses elementos conseguem constituir uma unidade essencialmente cinematográfica - o poder da imagem do cinema de conseguir dar uma face próxima da humana à uma barata, por exemplo -, há também desencontros quando diferentes elementos param de operar em conjunto e acabam se tornando apenas acessórios um dos outros.

O caso mais incômodo certamente é o da palavra, elemento muito bem compartilhado entre as linguagens fílmicas e literárias. Por mais que ela encontre no grande trabalho de Maria Fernando Cândido uma força rítmica e conceitual muito bonita, transformando a palavra em voz e rosto, muitas vezes acaba se descolando da unidade, tentando operar por uma força própria - justiça seja feita, a tentação de recorrer à força própria palavra de Lispector sempre vai ser grande -, mas isolada.

Ainda assim, mesmo com essas oscilações, é bonito o esforço em si, de mergulhar sonora e imageticamente na angústia e no fascínio do texto que completa seis décadas neste ano, de forma tão radicalmente sólida, sem recorrer à aura de enigma como subterfúgio para ser demasiadamente arbitrário em suas escolhas estéticas. Pelo contrário, há um louvável rigor dentro do caos proposto, capaz de trazer uma vibrante digestão da experiência após a sessão.

DEBATE NA FUNDAÇÃO
Na última terça-feira (16), o filme A Paixão Segundo G.H. ganhou uma sessão especial no Cinema da Fundação, seguida de um debate com o diretor Luiz Fernando Carvalho e a roteirista Melina Dalboni. Na conversa com o público, a dupla desvelou alguns aspectos do processo criativo, iniciado em 2017, para a feitura do filme, rodado no ano seguinte. No diálogo, com pouco mais de uma hora e meia de duração, abordaram desde as primeiras aproximações com o texto até escolhas técnicas e conceituais da filmagem e da montagem. 

Dalboni revelou que, desde o primeiro momento até a chegada no set de filmagem, o processo criativo se deu em uma espécie de “galpão criativo” criado por Luiz Fernando Carvalho. Por lá, foram promovidas oficinas com especialistas na obra de Clarice, debatendo não somente A Paixão Segundo G.H., mas toda a obra e a vida da autora, chegando não a um roteiro, mas à coordenadas e recortes do próprio texto. 

“Sempre se dizia se tratar de um romance infilmável. Mas quem deu essa classificação? O romance é muito subversivo por ser inclassificável em seu gênero, sem ser fechado em um ou outro gênero. Talvez por isso dizem que ele é infilmável. A nossa aproximação foi de abraçar justamente essa potência literária. Fomos para o set com um roteiro que nada mais era que o próprio livro, separado por cenas e recortes de fala. Nosso caminho foi o de encontrar um diálogo no monólogo, entre as vozes de uma mulher com ela mesma”, contou a roteirista. 

Já Luiz Fernando falou sobre alguns princípios que deram diretrizes para se pensar o filme, como as ideias de polifonia, espirais, fragmentos e recortes. Ele também conversou sobre as bases conceituais que nortearam a criação da imagem do filme, desde o tamanho da tela à forma como a protagonista e o espaço ao seu redor foram filmados, partindo de noções como a de retrato e identidade, tão caras ao texto de Lispector. 

“Estamos falando de uma crise de identidade e quando pensamos em imagens de identidade, de carteiras e documentos, falamos sempre em retratos, de dimensão 4:3. Então fizemos isso, construir uma proporção de retrato e trabalhar dentro dele. Criamos uma lente que é uma contradição óptica, grande angular e teleobjetiva ao mesmo tempo. Então Maria Fernando poderia se aproximar sem perdemos partes de seu rosto, ao mesmo tempo em que o contorno e o mundo se esfacela. O que nos permite trazer um olhar bem claretiano, uma narrativa epidérmica, podendo ver o detalhe do detalhe do detalhe do olho”, concluiu o diretor.

 

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