Resenha

Meio século de encontros e encantos

A Banda de Pau e Corda chega aos 50 anos e lança o álbum 'Entre a flor e a cruz' para comemorar sua profícua trajetória

TEXTO Antonio Lira

19 de Fevereiro de 2024

FOTO André Sidarta / Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online] 

Não é fácil viver da canção. Essa forma de arte, que é característica e fundante da nossa identidade, constrói universos, permite sonhar e, sobretudo, imaginar mundos possíveis. Mas aqueles que dedicam o ofício à arte de fazer versos e canções, sabem bem que o caminho é longo, difícil e que, num país que não valoriza seus artistas como deveria, nem sempre se consegue continuar nessa trajetória. Desse modo, sempre que um grupo que marca a história de nossa música celebra o aniversário de sua existência, é motivo de grande comemoração, ainda mais quando se completam 50 anos de estrada. É com esse intuito, o de celebrar uma longa e profícua trajetória, que a Banda de Pau e Corda lança o álbum Entre a flor e a cruz (2022). Entre regravações de clássicos, novas composições e participações mais que especiais, o disco homenageia meio século de encontros e encantos.

Formada no início dos anos 1970 pelos irmãos Roberto, Waltinho e Sérgio Andrade, a banda foi um dos principais grupos da música pernambucana daquela década. Chegando a arrancar elogios entusiasmados de Ariano Suassuna, que afirmava que a banda era uma aliada na defesa da música brasileira, eles também conquistaram o Brasil, tendo sido até mesmo trilha sonora da novela Maria, Maria, com a música Flor D’água (1974). Hoje, a formação do grupo conta, além de Sérgio (voz, percussão e vocal), com Júlio Rangel (viola e vocal), Sérgio Eduardo (contrabaixo), Zé Freire (violão e vocal), Yko Brasil (flauta transversal e pífano) e Alexandre Baros (bateria, percussão e vocal). De lá para cá, a carreira do grupo é marcada pela valorização de suas raízes, além do diálogo constante com a MPB e os diversos ritmos que compõem a paisagem nordestina.

Em entrevista à Continente, Sérgio Andrade falou que se sente muito orgulhoso ao olhar para trás, depois de meio século, e ver tudo que a banda construiu. “Quando criamos a Banda de Pau e Corda, ainda no comecinho dos anos 1970, não imaginávamos que chegaríamos até aqui. Celebrar 50 anos de carreira do grupo é celebrar o trabalho incansável de todos que fizeram parte do grupo ao longo dessas cinco décadas. Mas é uma celebração, em especial, de toda a luta dos meus irmãos Waltinho e Roberto Andrade, que, junto comigo e nosso primo Paulinho, criaram a Pau e Corda e deram início a toda essa história. Eles são os grandes arquitetos desse tipo de canção que a gente vem fazendo desde o início da banda”, afirma o cantor e compositor, que também reforça a importância da parceria com o produtor musical José Milton –  que já produziu outros sete discos do grupo – e do produtor-executivo Rafael Moura. O encontro com Moura, que aconteceu há cerca de seis anos, de acordo com a banda, tem sido fundamental para dar ao grupo a segurança que eles precisam para tocar o barco com muita tranquilidade, profissionalismo e dinamismo. E, para a sorte dos ouvintes, o resultado é um disco sólido, fiel à história, mas cheio de potências que apontam para o futuro.

Logo na primeira faixa, o som do violão e das harmonias vocais já nos mostram a marca registrada da sonoridade que marca a história do grupo nesses 50 anos. A música é uma regravação da faixa de abertura do primeiro disco da banda, mas as palavras de Vivência ganham outra conotação depois desses anos todos. “Quem nasceu lá e viveu / Crescendo percebeu / O canto do ferreiro / Da casa do doutor / O velho mensageiro / Das cartas de amor / O homem, o vassourão / Limpando o chão da manhã / Sabe, crê e chora / Vive cada hora / No canto do ferreiro / Da casa do doutor.” Se em 1973 a faixa anunciava para o público a poética nordestina que é matéria-prima para a obra do grupo, hoje, revisitada após todos esses anos, soa como uma bonita lembrança dessa história, que segue viva na arte do grupo. O arranjo original é preservado, apenas há uma substituição da percussão pela bateria na versão de 2023. E, logo de cara, chama atenção a sintonia do grupo, que parece estar muito confortável e feliz em celebrar esse legado.

O disco segue viajando pelos cenários e territórios, imaginários ou não, que tecem a poesia e as cores da vasta obra do grupo pernambucano. Em Moer a cana, composição de Chico César, a voz de Lenine aproxima Pernambuco e Paraíba, com o arranjo que passeia pelas sonoridades da Mata Norte de Pernambuco – que, ao norte, se encontra com o estado vizinho –  além de celebrar a influência mútua entre toda uma geração de músicos de lá e de cá. Entre a flor e a cruz, faixa que dá título ao disco, traz o frescor das novas gerações de cantautores. Composição de PC Silva e Gean Ramos Pankararu, dois artistas do sertão nordestino que vêm ganhando destaque no cenário nacional, a faixa combina perfeitamente com a narrativa construída no disco, trazendo elementos específicos da paisagem musical nordestina, que dialogam com temáticas universais.

Outro clássico da banda que ganhou uma regravação foi Areia, composição de Sérgio e de Waltinho e hit da banda nos anos 1970, contou com a participação de Fagner. De acordo com Sérgio, a conhecida dramaticidade que carrega a voz do cantor cearense foi o que chamou atenção da banda na hora de pensar a regravação. “Apesar de sermos da mesma geração, sempre fui um grande fã de Fagner por sua interpretação única e pela forma como ele consegue se comunicar com seu público de uma forma tão intensa”, afirma Sérgio. Já em Rosa roubada, a voz suave e harmoniosa de Sérgio traz a temática dos encontros e despedidas, acompanhando a chegada do “trem que vem da serra”. A voz suave e harmoniosa de Sérgio canta: “Já se ouve o badalar do sino / Na estação, homem, mulher, menino / A perguntar quem vem lá / De longe pra esse destino” enquanto o arranjo desenha sonoramente essa viagem para os ouvintes.

Mesmo para quem está ouvindo o disco pelo streaming, é possível perceber a virada do Lado A para o Lado B com as versões excepcionais dos clássicos Lamento sertanejo e Carcará. A primeira começa com voz e violão, mas vai evoluindo aos poucos para um xote com toda a banda. O destaque fica para a segunda parte, onde o ritmo acelera e os sopros e cordas que marcam a trajetória da banda vão dançando e marcando o contraste entre a força e a delicadeza, tão característico da sonoridade da banda. A ideia de mandar a divisão entre lados, característica do vinil, foi pensada dentro da proposta geral do disco, de promover diálogos entre diferentes gerações. E se o Lado A termina com uma jam instrumental em cima do clássico do Dominguinhos e Gilberto Gil, a segunda parte do álbum começa, logo de cara, com uma das maiores canções da música brasileira, imortalizada na voz de Maria Bethânia.

A dificuldade de conseguir uma intérprete à altura para Carcará foi, de acordo com a banda, um enorme desafio. Mas o encontro da cantora potiguar Juliana Linhares com o arranjo de Zé Freire finalmente deu vazão a essa versão, que já estava há muito tempo no radar do grupo. Impactados com a potência de seu primeiro disco, Nordeste ficção (2021), o convite foi feito e tanto Juliana quanto a banda entregam uma versão potente que justifica a regravação de um clássico. A partir daí, o disco segue com uma revisita aos maiores sucessos da banda – nas palavras de Sérgio, “o nosso verdadeiro Lado A” –  que inicia com o hit Flor D’água e encerra como um carnaval, no frevo Pelas ruas do Recife.

Para percorrer esse trajeto, a banda escolheu manter os arranjos quase idênticos aos originais, mas com uma surpresa ou outra no meio do caminho. Esperança, que, durante a pandemia, foi a música mais ouvida do grupo nas redes digitais, reaparece com a voz do Padre Fábio de Melo, que se une a de Sérgio para recriar o significado original da canção. Se antes a letra remetia ao duro momento que o Nordeste vivia nos anos 1970, com a seca e a ditadura militar, ela também foi ressignificada para dar vazão aos sentimentos que afloraram nos tempos da Covid-19. O contato foi realizado através do produtor musical, José Milton, que também trabalha com o padre. Para fechar o disco, Marcos Valle, que é um dos compositores de Pelas ruas do Recife. Novamente respeitando o arranjo original – nesse caso de Zezinho Franco – a regravação da canção também rememora a história da banda que foi responsável por dar origem ao primeiro polo carnavalesco no Bairro de Boa Viagem que, até então, era separado da folia recifense.

Desde o início, Entre a flor e a cruz foi pensado para ser uma celebração dos 50 anos da banda. A decisão de montar um repertório que apresentasse ao público a trajetória do grupo, desde as influências que ajudaram a criar a banda até os caminhos futuros que continuam a inspirá-los, se mostrou bastante acertada. Além de celebrar o legado de um dos mais importantes grupos da história da canção em Pernambuco, no Nordeste e no Brasil e apresentar a banda para aqueles que ainda não conhecem, os fãs da Banda de Pau e Corda têm a oportunidade de conferir um grupo que está mais afiado do que nunca e pronto para o futuro.

ANTONIO LIRA, músico, pesquisador e mestre em Comunicação pela UFPE.


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