Resenha

Lula Queiroga e o Rio Capibaribe

Compositor lança 'Capibaribum', em uma reverência ao principal meio fluvial que corta a capital pernambucana e que agora atravessa seu repertório sonoro, lírico e onírico

TEXTO Marcus Iglesias

08 de Abril de 2024

FOTO Sidarta / Divulgação

A água preenche qualquer vazio, seu desafio é chegar”. Essa é uma das frases que estampam a capa do novo disco do cantor e compositor recifense Lula Queiroga, o álbum Capibaribum (2024), produzido junto ao sobrinho e parceiro musical Yuri Queiroga. O novo trabalho foi divulgado nas principais plataformas de streaming, no início deste mês, e também contou com shows na Caixa Cultural do Recife, no Bairro do Recife, realizados nas últimas quinta-feira (4), sexta-feira (5) e sábado (6).  Nas três noites, o público viu ao vivo a execução das composições do novo repertório sonoro, lírico e onírico de Lula Queiroga.

Das dez músicas apresentadas em Capibaribum, sete são inéditas: A que leva o nome do disco (com participação de Chico César), Cerca Viva (com participação de Bruna Alimonda), Ela e o Tempo (Aonde Isso Vai Chegar), Paisagem Secreta (com participação de Zé Renato), A Curva da Luz, Hora do Pesadelo e Forró do Nevoeiro (com participação de Caju e Castanha)

As outras três que já existiam são A Ponte (parceria com Lenine, desta vez com participação de Ailton Krenak e Marcelo Falcão), Sobreviventes (com participação de Martins) e Piaba de Ouro (parceria com Erasto Vasconcelos, desta vez com participação de Ylana Queiroga). 

Numa referência ao principal rio do Recife, cujo nome traduzido do tupi para o português significa “rio das capivaras”, o jogo de vogais de Capibaribe é preenchido com um “bum” no final, representando o mergulho do animal silvestre encontrado nas margens do rio pernambucano e que estampa a capa do disco – produzida, segundo Lula Queiroga, por meio de inteligência artificial (IA).       

“A gente não ia colocar uma pessoa com câmera subaquática esperando a capivara pular certinho para fazer a foto. Tudo no encarte é IA, mas as imagens passaram por tratamento”, brinca o artista.

Morador das margens do Capibaribe, Lula Queiroga também fala sobre o mergulho na sua própria história neste novo trabalho, que o atravessa artisticamente. “O rio faz parte da minha vida desde a infância, e eu vejo todo dia a dança e o cotidiano das marés”, explica o cantor.

Capibaribum é o primeiro álbum desde o Aumenta o sonho (2017) e surgiu a partir da ideia antiga de reverenciar diretamente o rio que cruza 240km de Pernambuco e corta praticamente todo o Recife. 

O insight nasceu após um sobrevoo de helicóptero que Lula Queiroga fez por todo o curso do rio. A experiência aconteceu graças a um convite para compor uma exposição de arte pernambucana no museu Palais De La Porte Dorée, em Paris, mostra que apresenta obras de nomes como Cícero Dias, João Câmara e Francisco Brennand, dentre outros artistas. 

“Fui convidado a fazer o vídeo de abertura, que conta a história de um menino que sobrevoa o Capibaribe. Ao sobrevoá-lo durante as gravações pensei em como o Capibaribe é fantástico, porque se adapta a tudo. Começamos pela sua fonte, que logo depois vira um riachinho para sumir nas pedras. Chega a ‘dar um pitu’, porque o leito segue para outro lado, faz a volta e de repente vira uma represa enorme”, conta. “Daqui a pouco se transforma de novo num riachinho até virar outra represa ainda maior e, então, cair numa cachoeira. O riacho vai alagando, e quando passa pelo município de Carpina, começa a ficar mais escuro”, detalha o artista sobre as diversas paisagens do rio que também o atravessa.

Numa das cenas registradas, Lula Queiroga chegou a um local com crianças brincando à margem ribeirinha. Algumas meninas sentadas na areia portavam porta-joias de tamanhos e cores diferentes, e os tesouros guardados nas caixinhas nada mais eram do que animais como chiés, uma maria farinha e pequenos caranguejos.

Em seguida, um menino sem camisa, com um calção amarrado e dois gatos pendurados, se aproxima. “Na hora pensei: o universo da felicidade está aqui. Essa alegria pura é o rio quem traz para eles”, filosofa Queiroga.

Na questão sonora e rítmica, Capibaribum apresenta várias atmosferas. Uma prova desse caldo borbulhante está na própria música homônima, uma mistura de sintetizadores e guitarra que dialogam com um berimbau de fundo, misturando células rítmicas numa espécie de toré da world music. “É o rio que passa na minha aldeia, passeia e desenha a cidade”, diz um trecho da canção.          

Começa com synthers e depois ganha um ar meio gitano, espanhol. Em seguida, entra numa pegada do The Police, uma das bandas preferidas de Lula Queiroga, segundo ele próprio. No final, termina com uma espécie de frevo, segurando a mesma potência que circulava antes. “São experiências, e você vai tentando descobrir o que pode ser e para onde pode ir”, destaca o músico.

Em geral, as letras de Capibaribum, repletas de lirismo, abordam temas como ancestralidade, urgência do tempo e o inevitável aquecimento global, sem perder a consciência de que o que também nos resta na vida é saber se divertir durante o percurso. 

“Minhas composições são, a princípio, muito intuitivas e caóticas. Fragmentos que depois vou juntando e, quando vejo, tenho uma história inteira para contar. Há diversas maneiras de fazer música. Às vezes, vou por sonoridades que a melodia me dá; às vezes, faço letra para quem me dá uma melodia, ou faço música para uma letra que já existe”, ressalta.

Lula Queiroga explica que a escolha das participações especiais transcorreu numa confluência natural de encontros, sem que fosse necessário escavar caminhos para que o rio percorresse os trajetos desejados. “Sentei com Yuri Queiroga, com quem já gravei dois discos e ganhei um Grammy por ter produzido o disco de Elba Ramalho (O elogiado Qual o assunto que mais lhe interessa?, que contou com a produção de Lula, Yuri e Tostão Queiroga). Yuri foi o produtor brasileiro mais jovem a ganhar um Grammy”, pontua. 

“A gente tem uma afinidade muito grande, passamos uns dias lá em casa e depois na casa dele. Quando encontramos as canções, fomos para o estúdio com os protótipos gravados. Daí, comecei a fazer as novas músicas, e assim surgiram as sete canções inéditas, todas vieram desse momento”, relata Lula.

Nas participações especiais, Lula Queiroga optou, por uma escolha de vida, contar apenas com seus amigos. Caju e Castanha, por exemplo, dão um gás alegre e irreverente em Forró do Nevoeiro, faixa que encerra o álbum. “É o tipo de música que eu tenho que cantar baixo, porque senão fico um forrozeiro, e eu canto do meu jeito. Tem também uma resenha que é bom deixar baixinho, porque se você faz alarde demais fica meio panfletário. Eu evitei. Mas quando eles (Caju e Castanha) entram é muito engraçado e verdadeiro”, comenta Queiroga, aos risos.

Com A Ponte, a regravação foi feita a partir da amizade com Marcelo Falcão e por ter ouvido uma vez ela sendo cantada na voz de Ailton Krenak, escritor indígena que tomou posse, na última sexta-feira (5), na Academia Brasileira de Letras. “Estava lendo, há pouco tempo, o Futuro Ancestral, do Krenak, e ele abre o livro citando a relação de meninos com um rio. Ou seja, tudo se funde numa coisa só. Já com Falcão, ele gravou no dia seguinte ao convite. Teve ainda (o baterista e produtor musical) Pupillo, que perguntou se podia tocar nessa música, e eu só disse sim”, comemora Queiroga.

Duas vozes femininas compõem a rota de Capibaribum, a cantora Bruna Alimonda e Ylana Queiroga – que regravou uma composição de Lula Queiroga com Erasto Vasconcelos, feita na década de 1990, Piaba de Ouro. “A história dessa música é muito boa. Eu morava numa casa gigante que tem ao lado da Academia Santa Gertrudes, como quem vai para o Alto da Sé, em Olinda. Ela tinha uma parede enorme com azulejos, fazia um calor nesse dia e eu estava só de calção. Estou lá eu batendo nos azulejos, suando, repetindo várias vezes ‘hoje eu não quero saber’”. 

“Quando vejo, Erasto está cantando atrás de mim ‘ó quem vem lá, olha quem vem lá, que bonito ver’. Isso ele tocando o berimbau. ‘A moça que ginga no baque solto’. A música foi feita assim, sem papel, e é uma saudação ao querido Erasto Vasconcelos”, revela Lula Queiroga. 

Coincidência ou não, Piaba de Ouro é o nome do rio que deu origem ao Maracatu Piaba de Ouro. “Erasto quem contou que um cara pescou uma piaba de ouro gigante, e virou lenda. E o rio tomou esse nome, que posteriormente deu nome a essa agremiação. Esse que é o ecossistema do rio, a mistura borbulhando, o caldo das coisas, a fertilidade que está junta pela água. Todas as coisas estão imersas, tudo é debaixo d'água”, opina o artista.

Sobreviventes, com a participação da potente voz de Martins, apresenta tons vocais diferentes que se completam e se entrelaçam na correnteza da música. Como todo rio que renasce, a música já existia, mas ganhou nova versão. “Essa música é simples, foi feita num momento de tristeza. Não componho exatamente o que eu vivo, mas o que vivo está no que componho. A situação desata um nó, às vezes você começa num lugar e termina em outro muito melhor. Mas aquele princípio foi importante para chegar no resultado. E quando você está com amigos, fica melhor ainda”, reflete Queiroga.

AO VIVO
O repertório do show apresentado na Caixa Cultural do Recife foi composto por 15 músicas. Capibaribum, Curva da Luz, Cerca Viva, Paisagem Secreta, Ela e o Tempo (Aonde Isso Vai), A Ponte (parceira com Lenine), e Hora do Pesadelo integram o novo disco. Dos outros álbuns de Lula Queiroga, foram apresentadas as Se Não For Amor Eu Cegue (parceria com Lenine), Roupa no Varal, Cano na Cabeça, Tem Juízo Mas Não Usa, Ah Se Eu Vou, Noite Severina (parceria com Pedro Luís), Eu No Futuro, Alzira e a Torre, e O Mistério do Fundo do Olho

“As pessoas ficam muito magnetizadas enquanto o show vai se desenrolando. É um papo que anda por um caminho, depois segue para outro, vai para uma terceira parte, e evolui em várias modalidades de música. Todas ali, dentro de uma certa harmonia, e vão dando um sentido comum para no final explodir numa grande catarse da experiência humana”, celebra o artista.

No palco, Lula Queiroga se apresentou acompanhado de músicos como Yuri Queiroga (violão e guitarra), Luck Luciano (baixo), Daniel Vasconcelos (guitarra), Peu Lima (bateria) e Guilherme Queiroga (efeitos e vozes).

O artista recifense tem composições gravadas por artistas como Maria Bethânia, Lenine, Maria Rita, Milton Nascimento, Mart’nália, Teresa Cristina, Paralamas, Ney Matogrosso, Geraldo Azevedo, Elba Ramalho, Roberta Sá, Mônica Salmaso entre muitos outros. Em mais de 20 anos de carreira solo, fez também trilhas para o cinema nacional e internacional, além de receber prêmios como o APCA (Melhor Compositor de 2001) e Prêmio Sharp. Teve ainda indicações para o Prêmio da Música Brasileira de Melhor Disco do Ano, além do Grammy Latino, em 2008, do qual foi vencedor com Elba Ramalho.                  

MARCUS IGLESIAS, jornalista.

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