Ave Sangria, a banda mais conhecida da geração psicodélica do Recife dos 1970's. Foto: Acervo de Rafles de Oliveira
"Eu não conhecia nada, até ler o livro Do frevo ao manguebeat, de Teles. Depois, fui atrás, comprei CDs piratas, depois a internet pra baixar os discos. Fui ouvindo e bateu!", conta Rogério sobre a descoberta, ainda universitário. "Eu sabia que tinha mais história ali, o próprio Teles já falou que cada capítulo do livro merece um livro próprio". De fato, Valsa dos cogumelos é o primeiro livro inteiramente dedicado a discorrer sobre essa cena, que convencionou-se chamar Udigrúdi, expressão que Rogério só utiliza praticamente uma vez ao longo da publicação. "Eu não uso (o nome "Udigrúdi") porque ninguém usava. Ninguém sabe ao certo de onde surgiu esse termo. Algumas pessoas até disseram, nas entrevistas, que não gostavam. Então, achei que não era representativo, que a galera não se identificava. Inclusive, na época não tinha nome", explica Rogério, que opta por alcunhar aquele período como “psicodelia recifense” e/ou termos congêneres.
Para o livro Valsa dos cogumelos, Rogério recorreu a mais de 50 entrevistas e pesquisas em jornais/publicações locais e nacionais. O resultado são os relatos das inúmeras histórias, algumas totalmente desconhecidas do público em geral, que foram cruciais para o desenrolar de todos os acontecimentos que envolveram esses artistas e para o surgimento de discos lendários, cultuados até hoje por colecionadores e amantes da música, como Satwa (1973), Ave Sangria (1974) e Paêbirú (1975/1976). Certamente, para quem curte e se interessa pelo assunto, para quem é fã, não há como não se emocionar com muitas das passagens.
Valsa dos cogumelos é o primeiro livro do jornalista, pesquisador e músico Rogério Medeiros. Foto: Divulgação
O livro é dividido em seis capítulos, onde Rogério perpassa o estágio embrionário dessa geração – fim dos anos 1960, quando o Tropicalismo repercutia no Recife e, influenciados pelo movimento, surgiram artistas que já faziam um som "avançado" e experimental para aquela época, como o Laboratório de Sons Estranhos – ; as primeiras movimentações e encontros dos diversos personagens; a "explosão" da cena, quando eles viveram o auge dessa efervescência; o seu posterior fenecimento; e o que ainda continuou reverberando posteriormente. No prólogo e epílogo, Rogério lança mão de um importante elo nessa história: o Teatro de Santa Isabel, no Recife, que foi palco do último show da Ave Sangria antes de ter seu “voo abatido” pela ditadura militar, o antológico Perfumes y Baratchos, em 1974, e do show de retorno da banda (com quatro dos integrantes originais: Marco Polo, Almir de Oliveira, Paulo Rafael e Ivinho), 40 anos depois, em 2014.
Valsa dos cogumelos também traz fotos da época, algumas bem raras – como, por exemplo, do grupo Ala D'Eli, que tinha Robertinho de Recife e Zé Flauta entre os integrantes – conseguidas nas pesquisas em jornais e no arquivo pessoal de alguns entrevistados. Como dito anteriormente, os registros desse período são escassos (aqui, é importante salientar que não se tem conhecimento de nenhum registro em vídeo disponível, a não ser de um clipe "perdido" que a Ave Sangria gravou para o programa Fantástico e nunca foi exibido; e de um show de Alceu Valença que chegou ao conhecimento da Rede Globo, e nunca mais se soube dele). Diante disso, Rogério teve que praticamente montar um quebra-cabeças para construir a narrativa que discorre em Valsa dos cogumelos, dada a diversidade e a riqueza dos relatos, alguns contraditórios entre si, já que tudo faz muito tempo de acontecido e muitas das pessoas estavam bem "chapadas" quando viveram aquilo, para lembrar com exatidão de detalhes.
PESSOAS, LUGARES, MOMENTOS
Em Valsa dos cogumelos, Rogério nos conta não só sobre quem era aquelas pessoas, como se conheceram e como as coisas foram acontecendo, mas, também, nos situa nos lugares e momentos relevantes para a psicodelia recifense de então. Assim como o já citado Teatro de Santa Isabel, também são mencionados no livro o lendário Beco do Barato – ponto de encontro dessa turma que se apresentava por lá, o Beco do Barato foi para a psicodelia recifense o que a Soparia foi para o Manguebeat – e festivais como a I Feira Experimental de Música (1972), em Fazenda Nova (festival que pretendia-se "Woodstock do Nordeste" e reuniu grande parte desses artistas), o Primeiro Parto de Música Livre (1973), realizado no Santa Isabel, e o 7 Cantos do Norte (1974).
Paulus Raphael, Johsé e Laylson: era assim que Paulo Rafael, Zé da Flauta e Lailson assinavam seus nomes na banda Phetus. Foto: Acervo de Laílson de Holanda
Dois personagens chamam a atenção no livro, por motivos diferentes: um é o músico e artista plástico Lula Côrtes, figura fundamentalmente importante para esse período e para essa geração. Valsa dos cogumelos faz certa justiça a Lula, uma vez que fica notório durante a narrativa o quanto o engajamento dele foi decisivo em fazer muitas coisas acontecerem. Ele foi, por exemplo, a pessoa responsável – por intermédio do pai da cineasta Kátia Mesel, com quem namorava na época – por levar a turma para gravar nos estúdios da Rozenblit, a histórica gravadora que existia no Recife, e pela produção dos primeiros discos daquele período: Satwa – considerado o marco inaugural da psicodelia recifense –, Marconi Notaro no sub-reino dos metazoários e Paêbirú, álbum que reuniu a maior parte daquela cena em estúdio. Mas, assim como era energético e colocava em prática as iniciativas de produção e gravação, Lula também foi um tanto desafortunado no desenvolvimento de sua própria carreira – em circunstâncias que são contadas por Rogério no livro. "Lula talvez fosse a pessoa que mais instigava e movimentava aquela cena, pelo que eu pude inferir nas pesquisas e entrevistas. Tanto Lula quanto Kátia (Mesel). Mas, ao mesmo tempo, ele era um cara muito fugaz. Ele terminava um disco e “foi!”, já pulava para outra coisa, preparar uma exposição.”
O outro é Ricardo Uchôa, personagem obscuro dessa geração, autor de um disco tão obscuro quanto: Indra (1981). O recifense Ricardo, que havia voltado de São Paulo com a família, decepcionado com a vida de trabalhador do comércio de confecções, foi instado a gravar as poesias/canções que rabiscava por uma sugestão do amigo Don Tronxo. Indra foi gravado, mas não teve um lançamento formal lá muito organizado. Ricardo foi embora para os Estados Unidos, onde mora até hoje, desgarrado das lembranças desse período. E sua contribuição para Valsa dos cogumelos é algo inédito. "Modéstia à parte, foi um trabalho de detetive que eu me orgulho em tê-lo achado. O livro tava pronto sem a parte do Ricardo Uchôa. Quem me falou dele foi o Bento Araújo (autor da série de livros Lindo Sonho Delirante e editor de Valsa dos cogumelos)”, lembra Rogério. “Resolvi que queria colocar Indra no livro, mas só se eu conseguisse falar com Ricardo (…) fui caçar, usei todas as mídias sociais possíveis, fiz conexão entre posts de anos atrás e o achei. Ele vive nos Estados Unidos e hoje trabalha construindo helicópteros para clientes específicos”, conta.
Valsa dos cogumelos traz fotos raras, como esta, de 1974, do grupo Ala D'Eli, formado por Zé da Flauta, Robertinho de Recife e Neusa Maria. Foto: Paulo Macedônia/Acervo de Robertinho de Recife
Assim como traz ao público as histórias dos principais personagens da psicodelia recifense, Rogério também menciona e localiza na narrativa como outros artistas participaram e dialogaram com essa cena. É o caso das seminais Phetus (formada por Paulo Rafael, Zé da Flauta e Lailson), a já citada Ala D'Eli, o grupo Nuvem 33, entre outros. Assim como, por exemplo, Alceu Valença, que também vivia no Recife daquela época, conhecia toda aquela turma, participou de eventos realizados por ela, gravou discos sob as influências que já eram abarcadas por esses artistas, arrebanhou parte deles para tocarem em sua banda, mas que desenvolveu uma carreira que correu em paralelo a essa movimentação, uma vez que caiu nas graças da indústria cultural e tornou-se artista de renome nacional. “Realmente, ele nunca esteve completamente aqui quando a efervescência tava maior, mas, ele chegou a tocar no Beco do Barato; tocou numa homenagem a Luiz Gonzaga que também teve Phetus, Marconi Notaro e Tamarineira Village (antigo nome da Ave Sangria). O disco Vivo! é, basicamente, um apanhado dessa galera toda.”
Valsa dos cogumelos é o mais completo registro dedicado a esse período e a essa geração da música pernambucana/brasileira. Antes, uma história que se ressentia de muitas lacunas, com versões desencontradas e/ou inventadas dos acontecimentos. Hoje, ganha ainda mais relevância através das novas descobertas registradas no livro, contemplando a curiosidade de tantas e tantos fãs. "Eu gosto muito de ler e pesquisar sobre música. O melhor de fazer esse livro foi justamente o processo. Às vezes, eu achava que tava fazendo o livro pra mim. A parte mais prazerosa era a jornada, eu sentia que a jornada era tão prazerosa que eu não queria que ela terminasse, mas tinha que terminar. Então, tem aquela máxima que 'livro a gente não termina, a gente abandona'”, comenta Rogério. “E eu gostaria muito que meu livro se tornasse uma referência sobre essa cena, aquele livro a que a pessoa recorre para se informar ou relembrar alguma passagem, pesquisar. Fico feliz que as pessoas estão descobrindo coisas que elas sempre queriam saber, mas que não tava publicado ainda", conclui.
Capa de A valsa dos cogumelos. Imagem: Divulgação
LEO VILA NOVA, músico e jornalista cultural.