Escrito a muitas mãos — as tantas que construíram e refletiram o monumento — o livro revela o lugar onírico de arte, mito e espiritualidade, jamais estático, sempre em movimento, tal como a vida, o tempo, a natureza e o humano. O labirinto é uma construção mitológica erguida a partir da gigantesca erudição do artista, dos muitos livros de seu ateliê, das intermináveis pesquisas, da eterna cerâmica pela qual caiu de amores desde que Picasso ao material o apresentou, e dos seres vivos. Inclusive os microscópicos. A bióloga Cecilia Toro escreveu, em 2001, um artigo para a Revista Chilena de Historia Natural em que defendia um inconsciente coletivo biológico, em que o humano carrega memória escrita nos átomos e moléculas que fazem parte do universo que habitam. Sendo assim, diz a autora, “não estranha, portanto, que Brennand afirme que a argila tem memória, pois, na sua constituição molecular, está essa memória”.
É também labiríntica a maneira como o livro foi construído, editorial e conceitualmente, pois compila artigos escritos por curadores, colaboradores, familiares e críticos, em épocas diversas, visto serem textos atemporais e, portanto, atualíssimos para refletir a obra do Mestre da Várzea. A cronologia é linha reta que se faz questão de tumultuar, em nome de vida e produção dinâmicos. “A oficina é um organismo vivo que se nutre da diversidade de olhares sobre o acervo do artista e do espaço que ele ergueu com a ajuda de muitos, a partir de um ideal próprio nos anos 1970”, diz o prefácio do livro, organizado por Ariana Nuala (gerente de educação e pesquisa), Olívia Mindêlo (gerente artística do museu) e Júlia Rebouças (ex-diretora artística da instituição). Esta última define a oficina como um potente espaço de criação, pesquisa e difusão artística constituída, segundo ela, “de mata e rio, feita de barro e fogo”.
O livro de 304 páginas traz textos e imagens (ensaios visuais) que se desenham em quatro tomos: A ruína como princípio, Um fio que tudo perpassa, O poder do fogo e das formas e Um chamamento de arco. O símbolo da oficina — um arco e flecha, a arma de Oxóssi, divindade das religiões africanas — Brennand conheceu em viagem a Salvador em 1956. “Fiquei hipnotizado pela figura de Oxóssi, este arco e a flecha estilizados. E determinei que seria, definitivamente, a marca do meu ateliê, da minha oficina”, disse Brennand, em entrevista ao jornal O Povo, em 2006. O compositor, cantor e poeta Tiganá Santana reflete sobre o que chama de escultura-flecha: “O ofá é a tentativa de se modelar a espera, na cerâmica, quando os dedos parecem de ferro”.
A influência africana na obra de Brennand e a leitura um tanto simplista do caráter erótico e primitivo de suas obras é apontada pelo curador Emanoel Araújo, em texto de 2004, em que sugere pensar em um Brennand antropofágico dos anos 1970, “quando a representação da natureza na sua obra tinha a grandeza da fertilidade da terra, a sensualidade suada do gesto grande, eloquente e brasileiro, e tão brasileiro que levou a que o expusessem numa bienal como ‘primitivo’. E como diria Mário de Andrade: ‘Primitivo em relação a quê’?”.
Apesar de nunca ter tido oportunidade de perguntar a Brennand o porquê da marca de sua cerâmica, Emanoel preferiu supor que, “tal como Oxóssi, também Brennand é um caçador, dono do tesouro das formas invisíveis que se escondem na mata e que capta e modela para colocá-las nos espaços mágicos da Várzea”. Aquele homem elegante a caminhar de bengala seria, segundo o curador, “a maior obra do universo”.
SERVIÇO
Lançamento do livro No labirinto do sonho — 50 anos da Oficina Francisco Brennand
Onde: Teatro Deborah Brennand — Oficina Francisco Brennand (lançamento seguido de roda de conversa)
Quando: Terça-feira (11), das 14h às 16h30
Quanto: Acesso gratuito