Foto: Felipe Ovelha/Divulgação
Em Lady Tempestade, A. recebe os diários pelo correio de R., uma referência a Roberto Monte, que coordena o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, em Natal, para onde o marido de Mércia doou o acervo da mulher após sua morte, em 2003. A advogada acumulou cartas, processos jurídicos e diários escritos em folhas soltas, publicados pela editora Potiguariana em 2023 como Diários 1973-1974 escritos por Mércia Albuquerque Ferreira. Com o material nas mãos, Yara, Silvia e Andrea pensaram juntas em como tratar da violência sem simplesmente reproduzir o horror, em como trazer vida diante do fracasso, porém sem menosprezar o tamanho do abismo. “Sabíamos que precisávamos contar casos, porque não tem como falar disso só pelas beiradas. Mas decidimos não ter o nome dos torturadores, porque não gostaríamos que eles habitassem a nossa cena. É preciso que se dê nome para que essas pessoas possam ser penalizadas, mas quisemos nomear aqueles que lutaram, as mães que procuraram a Mércia. Nossos mortos estão ali para serem honrados, ser força para a gente, coragem”, explica Yara, que já vinha refletindo sobre a representação da violência, no caso o estupro, ao dirigir em 2023 a peça Teoria King Kong, adaptação de Márcia Bechara para o livro de Virginie Despentes.
Como dizia Mércia, os torturadores são os “gafanhotos”, “canalhas”, “necrófilos”, “sádicos”. Em Lady Tempestade, não se ouve o nome de Médici ou Geisel, os militares no poder em 1973 e 1974. Ouvimos, sobretudo, os nomes de mães como Dona Rosália, que procura Mércia de forma recorrente para tentar encontrar o filho desaparecido. Entre um ou outro pai, são as mães que povoam a casa da advogada, são as mães que chegam no meio da noite e são acolhidas por ela – que sofre por muitas vezes ter dado menos atenção a seu único filho do que aos de outras mulheres. “Às vezes vinham três, quatro mães, a Mércia as punha para dormir... Isso era muito forte por si só”, afirma Silvia. “Pensando em dar ao diário uma dimensão narrativa, usei a história da Dona Rosália ao longo da dramaturgia, para criar uma linha de tensão. Ela representa todas as outras mães.”
O filho de A. também está em cena. Vivido pelo próprio filho de Andrea Beltrão, Chico B., ele faz as intervenções sonoras da montagem e vez ou outra pontua preocupação com a mãe, que vai se afetando pela leitura dos diários. Foi mais uma ideia da diretora a que Andrea resistiu, para depois abraçar. “Um dia, a Yara, como quem não quer nada, perguntou sobre meus filhos. Falei do Chico, que faz música. Ela disse que queria chamá-lo para a peça. Não sabia que seria monólogo, achava que viriam mais umas duas pessoas. Mas ficou só ele”, conta Andrea. “Só fui me dar conta depois de como fazia sentido a história ser contada por uma mãe e um filho.”
Mércia nasceu em Jaboatão dos Guararapes, na região metropolitana do Recife, em 1934, em dia de tiroteio numa estação ferroviária, como se anunciasse o que estava por vir. Sua mãe era “uma mulher terna e acomodada, totalmente diferente de mim. Enquanto sou tempestade, ela é bonança”, escreveu a advogada num dia de 1974. Daí vem a alcunha Lady Tempestade, nome inventado pelo teatro, que só existe na dramaturgia. Um teatro “generoso com os fantasmas”, diz a Mércia-personagem, que, ao olhar para o que fizeram dela no presente, fica feliz com o nome que recebeu. O que fizeram dela foi, de fato, uma mulher-tempestade, cabelos rebeldes, bolsa e batom vermelhos em contraste com a roupa formal de advogada. Uma mulher que gosta de escrever poemas e ouvir a Nona Sinfonia de Beethoven. Andrea exalta:
“A Mércia era muito invocada, barra pesada, chamava os militares de gafanhoto, ia para o (bloco de carnaval) Galo da Madrugada. Uma mulher muito agarrada à vida, solar. Para descer lá embaixo, tem que ter uma grande paixão pela vida, se não ela desce e fica lá. A Mércia amava viver, ela diz isso. Que mulher interessante, tão escondida, apagada. Fomos movidas pela paixão por ela, e não por qualquer efeméride de 60 anos do golpe”.
Viver em estado de tempestade durante a ditadura foi deixando o corpo de Mércia frágil, como mostram os relatos dos diários em 1974, ano em que a canção de dor de cotovelo Feelings estava em primeiro lugar das músicas mais tocadas no Brasil e a repressão e atingira o ápice no país. Quando a música de Morris Albert toca em Lady Tempestade, por trás ouvem-se sons de tiros e gritos. “É como se a gente dissesse: ‘Abaixa o Feelings um pouco para você ver. Tem cachorro latindo, criança chorando’”, diz Yara, que também é atriz e protagoniza Malu, filme de Pedro Freire que acabou de estrear no Festival de Sundance.
Em 1974, os diários de Mércia têm muitas rasuras, páginas inteiras riscadas. A dramaturgia manteve a proposta do livro Diários, que aponta os trechos ilegíveis ou ausentes, anunciando, por exemplo, quando uma página fora cortada com tesoura. Em Lady Tempestade, houve algumas tentativas de encenar o não dito, por exemplo, como se A./Mércia estivesse muda. Até que se decidiu relatar cada data de 1974 em que algo foi riscado dos diários. A estratégia reforça o efeito de acúmulo, de repetição, a mesma que faz Mércia declarar seu encontro diário com o fracasso. “A gente chegou à conclusão de que se aquilo foi rasurado por ela ou por outra pessoa não importa. Tem um limite de onde a gente avança. Mas a presença dessas rasuras é essencial”, diz Silvia.
As rasuras também acabaram por confrontar a dramaturga com o lado absurdo e incomunicável da realidade, que é marca de sua dramaturgia autoral. Quando recebeu o convite de Yara, Silvia pensou não ser a mais adequada, justamente por seus textos privilegiarem o nonsense. Mas encontrou ali algo de delírio. “Ao mesmo tempo em que os diários são um documento, eles são o real no que ele tem mais incomunicável, abjeto. Então houve uma imposição desse real como algo absurdo”, sustenta a dramaturga. “Tento olhar para o real e encontrar sua face delirante. É desse real que eu parto. Ele é uma medusa, paralisa. O trauma paralisa. O delírio talvez seja um artificio de olhar para o real sem ficar paralisado por ele”.
A dramaturga Silvia Gomez lançou recentemente livro com os textos de Mantenha fora do alcance do bebê e Neste mundo louco, nesta noite brilhante. Foto: Renato Parada/Divulgação
Apesar de mais fincada nos fatos, Lady Tempestade traz uma semelhança com outras dramaturgias de Silvia ao tratar do encontro perturbador entre duas mulheres, A. e Mércia. Em Mantenha fora do alcance do bebê, que venceu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e foi indicada ao Prêmio Shell em 2015, Silvia retrata a tensão entre uma funcionária pública e uma mulher candidata à adoção de um bebê, enquanto uma superpopulação de lobos invade as ruas da cidade. Em Neste mundo louco, nesta noite brilhante, também indicada ao Shell em 2019, uma vigia de uma estrada erma busca salvar uma mulher que foi estuprada e delira. As obras foram recém-publicadas em livro pela Javali, em edição bilíngue (português/espanhol).
Ambos os textos partem do absurdo da existência e buscam fazer algo dele com jogos de linguagem e o corpo das personagens. Na dramaturgia de 2015, a mulher que quer um bebê a qualquer custo se alterna entre a performance social para conseguir o que deseja e impropérios que nunca seriam ditos numa entrevista de adoção. Ela confronta a entrevistadora, que se sente simultaneamente atraída e repelida por sua estranheza. Em meio aos diálogos repletos de ironia, em que adotar um bebê às vezes se parece a fazer compras de supermercado, Silvia reflete, como ela mesma diz, sobre “como o consumo contamina as coisas mais preciosas para a gente”. Mantenha fora do alcance do bebê está sendo transformada em filme em mais uma parceria de mulheres, com roteiro de Silvia, Vana Medeiros, Erika Ferreira e Debora Falabella, que também será a diretora.
Neste mundo louco, nesta noite brilhante surgiu a partir de casos de violência contra as mulheres, sobretudo do estupro de quatro adolescentes no Piauí, violentadas, amarradas e atiradas de um penhasco em 2015. Mas os fatos são só um estopim, transfigurados pela dramaturga de forma inventiva, em diálogos por vezes surreais. O encontro da vigia de estrada e de L ocorre no km 23 de um lugar sem nome como as personagens, enquanto um rádio se conecta ao tráfego aéreo de decolagens e aterrissagens em várias partes do mundo. A vigia, mesmo habituada ao que acontece “todos os dias no km 23”, age para tentar tirar a mulher dali. Resta alguma esperança diante do apocalipse, como escreve no posfácio do livro Yara de Novaes, tia de Silvia que a pôs em contato com o teatro desde pequena, em Minas Gerais.
“Como olhar para o horror? Como não se deixar paralisar por ele e não cair no melodrama, como usar a ironia para falar da violência?”, questiona Silvia. “O texto tem um riso nervoso, se não você não consegue passar por aquilo.”
Depois de Neste mundo louco, nesta noite brilhante, lida e encenada em cidades do México e montada na Argentina, Silvia foi aos poucos tomando contato com uma produção teatral latino-americana que não chega ao Brasil, e que tem forte influência do ativismo feminista. A edição bilíngue de seus textos pela Javali partiu, segundo ela, de um desejo de ponte com essa dramaturgia. “Publicar é muito importante porque, além do registro, você estimula a formação”, afirma a dramaturga, cujas obras, além do espanhol, já foram traduzidas para alemão, francês, inglês, italiano, mandarim e sueco.
Desde o ano passado, Silvia dá aulas no laboratório do Instituto Brasileiro de Teatro, em São Paulo, onde quer estimular a experimentação, porque “demora muito pra gente confiar na própria voz”. Ela se inspira em sua própria formação no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), em São Paulo, onde também já deu aulas. No CPT ela pôde testar dramaturgias com um registro desviante de sua graduação em jornalismo. “Quando li o (Samuel) Beckett, pensei: Mas pode escrever assim?”, ela ri. Hoje Silvia continua o aprendizado como mestranda na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, onde pesquisa sobre a ideia de delírio na dramaturgia.
Silvia ressalta o apreço que tem pela informação objetiva, que é sempre aproveitada em suas obras, seja em dados do controle de tráfego aéreo, na composição química da molécula de naftalina ou nas espécies botânicas. Em A árvore, publicada pela Cobogó em 2021, uma mulher, A., se transforma em vegetal dentro de seu apartamento, a partir do contato com uma Mimosa pudica, planta que se fecha ao toque. Ela faz um diário dessa transformação, que começa na pele e rompe sua separação com o mundo, fundindo-se a ele pelas raízes que se expandem dentro da terra. Escrito durante a pandemia, o texto foi encenado em vídeo por Alessandra Negrini, com direção de Ester Laccava e João Wainer, além de apresentado no Festival Mujeres en Escena por la Paz, em Bogotá, na Colômbia.
Em A árvore, o encontro com a natureza é uma viagem para dentro de si, mote que se repete em Partida de vôlei à sombra do vulcão, peça-filme também criada em tempos pandêmicos para o Grupo Galpão, com direção Clarissa Campolina e Fernanda Vianna. A dramaturgia partiu de uma cena real de pessoas jogando vôlei a poucos metros de um vulcão ativo na Islândia. Mais uma vez, o absurdo estava na própria realidade. Mais uma vez, Silvia buscou na invenção da linguagem outra forma de acreditar na vida. E, mais uma vez, fez isso por meio de uma mulher “em estado de desobediência”, como diz o texto.
“A dramaturgia é a proposição pública de discussão de um impasse coletivo, algo que se coloca e a gente discute junto”, afirma Silvia. “Sempre penso: Você está escrevendo isso porque é um desabafo ou por que é de interesse comum? A nossa dor também é sintoma do nosso tempo, mas como saltar do pessoal do coletivo? Esse desafio tem que estar sempre no meu horizonte.”
SUZANA VELASCO, jornalista, escritora e doutora em Relações Internacionais, autora da dramaturgia Pra onde quer que vá será exílio (Cobogó, 2021).