Disco teve produção de Rafael Ramos, da Deck DiscEm Interessante e obsceno, Martins trouxe um apanhado de músicas compostas pensando num assunto específico. É um disco de canções que versam sobre relações entre duas pessoas, mais focado no discurso afetivo, romântico, e em suas manifestações do ponto de vista emocional, carnal – e também metafísico. “É um disco mais pessoal, da minha relação com as pessoas, mas também ficção, coisas que eu invento, mas muito em função desse universo. É um disco que fala para o outro. É um disco pra multidão também, porque, de alguma forma, todo mundo já passou por situações que as letras sugerem, mas é uma coisa pra você ouvir e mandar pra alguém”.
Além do mais, ele parece trazer um maior domínio de um certo balanço mais pop, radiofônico: nas intenções melódicas, nas levadas, no caráter mais enxuto dos arranjos de algumas delas. A canção que abre o disco, Tua voz, que havia sido lançada como single no fim de julho, é uma balada pop romântica, meio bluesy, dessas de tocar na rádio o dia inteiro, e com versos que não deixam de ser Martins em sua pura poesia: “O que seu olho faz mais além de me olhar bonito?”
Mas há também o samba-rock dançante Não duvido, que denota que o interesse e o passeio poético de Martins, que, no primeiro álbum, eram pelos olhos (“Olhos que afagam”, “Olhos que protestam”), agora são pelas bocas: “eu tenho lábios de sorrir, você tem dentes de quem quer morder”.
A música que dá título ao álbum, Interessante e obsceno, um xote cujo título se insinua, mas, na verdade, o que nos interessa é o que está sendo dito, em uma delicadeza e sagacidade poéticas que são a tônica do álbum. É uma música que, ao mesmo tempo, tem uma graça sensual – “por isso que eu desejo pra você a Lua em Libra / a língua em Vênus” – , mas é uma coisa quase existencial. É um conselho que você dá pra quem gosta, que necessariamente não é uma pessoa que você se relaciona amorosamente, pode ser um amigo, mas pode ser também uma relação romântica... então, essa canção puxa todas as outras canções, no sentido de “falar pra alguém”, comenta.
Essa canção foi a primeira a ser composta para o disco, na primeira semana de “lockdown” aqui no Brasil. Martins começou a mostrá-la ao público em vídeos nas suas redes sociais, com um feedback sempre amoroso. Um registro já foi feito dela, em Almério e Martins ao vivo no Parque (2022), mas, agora, em estúdio.
Outra (velha) conhecida, não só dos fãs do pernambucano, mas, de todo o país, é Eu e você sempre, praticamente um dos hinos do samba brasileiro, de autoria de Jorge Aragão e Flávio Cardoso, que ganha outra dimensão poética na interpretação intimista de Martins. Apenas voz, violão, acordeon e baixo. “Sempre fiquei intrigado com ela, porque é uma letra meio densa, meio triste, mas ela foi gravada como um sambão, que virou um clássico, gravada por vários artistas. E eu tive vontade de fazê-la desse jeito, meio como que vomitar essa letra, porque ela é densa”, conta.
Além disso, houve uma razão afetiva para gravá-la, que lhe desperta reminiscências, em especial do lugar onde cresceu e do seu irmão mais velho, Valdemir. “Pagode dos anos 1990 era uma coisa que eu ouvia muito na minha adolescência, na Iputinga, subúrbio de Recife. Meu irmão é muito fã de Jorge Aragão, e, em especial, ele tem essa função (...) Eu comecei a gostar de samba por causa do meu irmão, principalmente o dos anos 1990: Exaltasamba, Art Popular (...) e Jorge Aragão era o artista que ele preferia”, conta. “[Também quis gravá-la porque] tinha uma relação com a minha infância, meu bairro, e meu irmão. E porque a música é linda também”. Não por acaso, a faixa que vem na sequência, Tem problema não, de Martins, é vestida como um samba/pagode nessa linha estética.
O Reverbo, coletivo de artistas pernambucanos do qual Martins faz parte, de alguma forma também está no disco. Seja através da presença de Juliano Holanda, como parceiro e guitarrista no trabalho, mas também por Igor de Carvalho, de quem gravou Tá tudo bem (deste e de Holanda). “Desculpa, é muita pretensão, mas essa daqui poderia ser minha também (risos), porque são as coisas que eu falaria exatamente desse jeitinho que Igor tá falando”, “Ele é um dos compositores mais incríveis, tenho muito interesse pelas coisas que ele faz, e achei simbólico gravar uma música dele, pelo carinho, pelo amigo e pela canção”.
Nu é uma balada romântica de emocionante delicadeza e, ao mesmo tempo, potência, seja pela melodia, seja pelos arranjos de cordas e de sopros – do genial músico Henrique Albino – que ampliam em camadas grandiosas essa emoção. Uma letra de doce e boba malícia, como quem vai “ficando por aqui mais um pouquinho”, sem deixar-se ir, porque, na verdade, não quer ir.
Uma característica também marcante em parte da obra de Martins é uma certa “pegada baiana”, desde o seu trabalho com a banda Marsa, passando pela já citada – e tão cantada – Me dê, chegando, nesse novo disco, em Deixa rolar e Voltar pra si. Nesta última, justamente a que encerra o disco, esse traço está escancarado. Um ijexá daqueles, com guitarra de “sotaque” baiano pelo pernambucano Juliano Holanda e o dendê originalmente soteropolitano de Kaynã do Jêje (que, relembro, tempera todo o disco). A música é uma parceria só de pernambucanos: Martins, Holanda, PC Silva e Marcello Rangel, mais uma com o carimbo “Reverbo”.
“Eu acho que a gente – Pernambuco e Bahia – tem uma besteira, essa coisa de ‘quem tem o melhor carnaval? quem é melhor em não sei o quê?’, e eu penso que, de alguma forma, Pernambuco e Bahia se correspondem muito nisso, da resistência, da coisa afro na cultura popular”, pontua. “Vamo se juntar, que é mais bonito”, responde o artista sobre a canção que fecha o disco dando vontade de dançar.
Interessante e obsceno é um álbum que privilegia e dá ênfase à canção – sem nada over, tudo na medida certa – e faz da letra e do assunto a sua beleza mais potente, como se, através do escrevinhar de Martins, a gente encontre uma forma mais direta de dizer a alguém o que nela apaixona e arrepia, desassossega e aconchega.
LEONARDO VILA NOVA, músico e jornalista cultural.
Pode parecer meio bobo ou piegas, mas, quem nunca enviou uma música para outra pessoa, querendo dar aquele “recado romântico” e tendo o pensamento “essa é a cara da gente”? Interessante e obsceno, o novíssimo segundo álbum de Martins, para além do registro fonográfico de canções dele e de outros artistas, parece ter sido feito sob medida para esse intento, o de, através de seus versos e levadas, olhar diretamente para alguém e “dar a real sobre nós”. Um álbum que canta necessariamente os amores – os que começam, os que terminam; os amores líricos; existenciais; os amores sensuais –, as relações entre duas pessoas, o tesão e outras mumunhas mais.
Interessante e obsceno chegou às plataformas de streaming neste 25 de agosto, data do aniversário de 33 anos do cantor e compositor pernambucano de voz peculiar e composições de rara fineza estilística. Foi gravado pela Deck, com produção de Rafael Ramos e um valoroso time de músicos. O álbum traz 12 músicas – apenas duas não são de Martins –, algumas delas já conhecidas do seu público mais próximo, uma vez que já as cantou em shows ou em vídeos nas suas redes sociais, mas que valiam o registro em estúdio.
Após o disco estreia, Martins (2019), este parecia envolvido por uma certa expectativa (d)e responsabilidade, pois, logo após se lançar ao Brasil como artista solo, composições suas foram regravadas por experimentados nomes da música brasileira: Ney Matogrosso (Estranha toada), Simone (A gente se aproveita), Daniela Mercury e a atual ministra da Cultura, Margareth Menezes – elas gravaram e lançaram quase simultaneamente a música provavelmente mais cantada de Martins, Me dê.
“(O primeiro disco) era uma coisa sem pretensões específicas. O que esse disco quer falar? O que ele queria falar é: ‘estou no mundo!’ Não parei para fazer canções para um disco, era todo um material que eu já tinha na vida, e que precisava mostrar às pessoas”, diz Martins sobre sua estreia fonográfica. “Isso de a galera ir gravando depois foi uma feliz surpresa pra mim”, no que faz apenas um adendo, sobre Me dê: “Quando eu fiz essa música, eu pensei que ela tinha muito uma vibe daquelas coisas feitas na Bahia, nos anos 1990, que essa música era a cara de Daniela Mercury, que ficaria muito bonita com ela”.
***
Em Interessante e obsceno, munido de uma maior experiência do processo, Martins pode interferir mais e pensar o álbum dentro de um conceito mais bem amarrado. “As canções que estão no segundo álbum eu já escrevi pensando em estruturar uma ideia para um disco mesmo. Foram canções que eu fiz durante a pandemia e foi mais pensadinho”. “No primeiro, eu era mais um compositor, o cara que fazia as músicas ali e que deixava para o produtor (no caso, Juliano Holanda) fazer o rolê. Nesse, eu já fui sugerindo mais coisas, pensava em linha de baixo, sugeria quem poderia tocar em tal música”, conta.
O fato de ter feito pela gravadora Deck deu abertura para que Martins – principalmente contando com a expertise e o conhecimento de Rafael Ramos – pudesse convidar músicos de carreira, gente com um currículo considerável. Para Interessante e obsceno, eles arregimentaram uma banda base que está presente em praticamente todas as faixas, como Alberto Continentino (baixo), Kainã do Jêje (percussão) e Rodrigo Tavares (teclados) – músicos que atualmente circulam com Caetano Veloso na turnê Meu coco – além do onipresente Juliano Holanda (guitarras). Também participam do disco Dadi Carvalho e Pupillo (em Deixa rolar), Marcos Suzano (Deixe), Henrique Albino com arranjos e sopros (Deixe e Nu), Jorge Continentino e Marlon Sette (Não duvido).
Sobre Juliano Holanda, que foi produtor do seu primeiro álbum, e agora é guitarrista nesse segundo, Martins comenta: “Um disco gravado quase todo por ‘não-pernambucanos’. Foi interessante trabalhar com outras pessoas, ter outra sonoridade, falar de outras coisas. Mas, ao mesmo tempo, eu não queria perder a linguagem das coisas que a gente faz aqui”, destaca. “E a guitarra de Juliano está presente em disco da Academia da Berlinda, da Orquestra Contemporânea de Olinda, de Isaar, de Otto... ou seja, toda essa música de Pernambuco tem aquela guitarrinha de Juliano, é uma assinatura! Eu achei que Juliano seria perfeito, porque a gente já tem uma relação, é um amigo meu, um ‘irmão mais velho’ mesmo, e é o compositor com quem mais tenho parcerias. Ele somou muito, e era algo que eu queria sinalizar e deixar registrado”.
***
Em Interessante e obsceno, Martins trouxe um apanhado de músicas compostas pensando num assunto específico. É um disco de canções que versam sobre relações entre duas pessoas, mais focado no discurso afetivo, romântico, e em suas manifestações do ponto de vista emocional, carnal – e também metafísico. “É um disco mais pessoal, da minha relação com as pessoas, mas também ficção, coisas que eu invento, mas muito em função desse universo. É um disco que fala para o outro. É um disco pra multidão também, porque, de alguma forma, todo mundo já passou por situações que as letras sugerem, mas é uma coisa pra você ouvir e mandar pra alguém”.
Além do mais, ele parece trazer um maior domínio de um certo balanço mais pop, radiofônico: nas intenções melódicas, nas levadas, no caráter mais enxuto dos arranjos de algumas delas. A canção que abre o disco, Tua voz, que havia sido lançada como single no fim de julho, é uma balada pop romântica, meio bluesy, dessas de tocar na rádio o dia inteiro, e com versos que não deixam de ser Martins em sua pura poesia: “O que seu olho faz mais além de me olhar bonito?”
Mas há também o samba-rock dançante Não duvido, que denota que o interesse e o passeio poético de Martins, que, no primeiro álbum, eram pelos olhos (“Olhos que afagam”, “Olhos que protestam”), agora são pelas bocas: “eu tenho lábios de sorrir, você tem dentes de quem quer morder”.
A música que dá título ao álbum, Interessante e obsceno, um xote cujo título se insinua, mas, na verdade, o que nos interessa é o que está sendo dito, em uma delicadeza e sagacidade poéticas que são a tônica do álbum. É uma música que, ao mesmo tempo, tem uma graça sensual – “por isso que eu desejo pra você a Lua em Libra / a língua em Vênus” – , mas é uma coisa quase existencial. É um conselho que você dá pra quem gosta, que necessariamente não é uma pessoa que você se relaciona amorosamente, pode ser um amigo, mas pode ser também uma relação romântica... então, essa canção puxa todas as outras canções, no sentido de “falar pra alguém”, comenta.
Essa canção foi a primeira a ser composta para o disco, na primeira semana de “lockdown” aqui no Brasil. Martins começou a mostrá-la ao público em vídeos nas suas redes sociais, com um feedback sempre amoroso. Um registro já foi feito dela, em Almério e Martins ao vivo no Parque (2022), mas, agora, em estúdio.
Outra (velha) conhecida, não só dos fãs do pernambucano, mas, de todo o país, é Eu e você sempre, praticamente um dos hinos do samba brasileiro, de autoria de Jorge Aragão e Flávio Cardoso, que ganha outra dimensão poética na interpretação intimista de Martins. Apenas voz, violão, acordeon e baixo. “Sempre fiquei intrigado com ela, porque é uma letra meio densa, meio triste, mas ela foi gravada como um sambão, que virou um clássico, gravada por vários artistas. E eu tive vontade de fazê-la desse jeito, meio como que vomitar essa letra, porque ela é densa”, conta.
Além disso, houve uma razão afetiva para gravá-la, que lhe desperta reminiscências, em especial do lugar onde cresceu e do seu irmão mais velho, Valdemir. “Pagode dos anos 1990 era uma coisa que eu ouvia muito na minha adolescência, na Iputinga, subúrbio de Recife. Meu irmão é muito fã de Jorge Aragão, e, em especial, ele tem essa função (...) Eu comecei a gostar de samba por causa do meu irmão, principalmente o dos anos 1990: Exaltasamba, Art Popular (...) e Jorge Aragão era o artista que ele preferia”, conta. “[Também quis gravá-la porque] tinha uma relação com a minha infância, meu bairro, e meu irmão. E porque a música é linda também”. Não por acaso, a faixa que vem na sequência, Tem problema não, de Martins, é vestida como um samba/pagode nessa linha estética.
O Reverbo, coletivo de artistas pernambucanos do qual Martins faz parte, de alguma forma também está no disco. Seja através da presença de Juliano Holanda, como parceiro e guitarrista no trabalho, mas também por Igor de Carvalho, de quem gravou Tá tudo bem (deste e de Holanda). “Desculpa, é muita pretensão, mas essa daqui poderia ser minha também (risos), porque são as coisas que eu falaria exatamente desse jeitinho que Igor tá falando”, “Ele é um dos compositores mais incríveis, tenho muito interesse pelas coisas que ele faz, e achei simbólico gravar uma música dele, pelo carinho, pelo amigo e pela canção”.
Nu é uma balada romântica de emocionante delicadeza e, ao mesmo tempo, potência, seja pela melodia, seja pelos arranjos de cordas e de sopros – do genial músico Henrique Albino – que ampliam em camadas grandiosas essa emoção. Uma letra de doce e boba malícia, como quem vai “ficando por aqui mais um pouquinho”, sem deixar-se ir, porque, na verdade, não quer ir.
Uma característica também marcante em parte da obra de Martins é uma certa “pegada baiana”, desde o seu trabalho com a banda Marsa, passando pela já citada – e tão cantada – Me dê, chegando, nesse novo disco, em Deixa rolar e Voltar pra si. Nesta última, justamente a que encerra o disco, esse traço está escancarado. Um ijexá daqueles, com guitarra de “sotaque” baiano pelo pernambucano Juliano Holanda e o dendê originalmente soteropolitano de Kaynã do Jêje (que, relembro, tempera todo o disco). A música é uma parceria só de pernambucanos: Martins, Holanda, PC Silva e Marcello Rangel, mais uma com o carimbo “Reverbo”.
“Eu acho que a gente – Pernambuco e Bahia – tem uma besteira, essa coisa de ‘quem tem o melhor carnaval? quem é melhor em não sei o quê?’, e eu penso que, de alguma forma, Pernambuco e Bahia se correspondem muito nisso, da resistência, da coisa afro na cultura popular”, pontua. “Vamo se juntar, que é mais bonito”, responde o artista sobre a canção que fecha o disco dando vontade de dançar.
Interessante e obsceno é um álbum que privilegia e dá ênfase à canção – sem nada over, tudo na medida certa – e faz da letra e do assunto a sua beleza mais potente, como se, através do escrevinhar de Martins, a gente encontre uma forma mais direta de dizer a alguém o que nela apaixona e arrepia, desassossega e aconchega.
LEONARDO VILA NOVA, músico e jornalista cultural.