Resenha

Dentro das sombras da guerra

Vencedor do Oscar em 2024, documentário "20 dias em Mariupol", de Mstyslav Chernov, registra ataque russo à cidade ucraniana

TEXTO João Rêgo

07 de Março de 2024

O fotógrafo Evgeniy Maloletka caminha após um ataque russo em Mariupol, em 24 de fevereiro de 2022

O fotógrafo Evgeniy Maloletka caminha após um ataque russo em Mariupol, em 24 de fevereiro de 2022

FOTO Mstyslav Chernov / Divulgação

Em sua essência, o interesse pelo cinema está intrinsecamente ligado à atração causada pelas imagens. Um encantamento que pode ser tanto narrativo, objetivamente construído em filmes de ficção, quanto imanente nos próprios registros, algo mais direto e com poucos espaços de ficcionalização em nossas experiências individuais. Este é o caso do documentário 20 dias em Mariupol, uma obra exclusivamente composta por cenas reais de cadáveres, destruição e desespero.

O filme, que chega às salas de cinema nesta quinta-feira (07), é um mergulho cru nos primeiros dias da ofensiva da Rússia à cidade ucraniana de Mariupol, pelas lentes do cinegrafista Mstyslav Chernov, integrante do único grupo de fotojornalistas da Associated Press que permaneceu na cidade após ela ser cercada pelo exército inimigo em fevereiro e março de 2022.

Durante 20 dias, acompanhamos um jornalista testemunhar a devastação causada pela guerra no epicentro de um dos mais sangrentos conflitos geopolíticos da atualidade. O documentário direciona o olhar para os civis sitiados e bombardeados, a rotina desesperadora dos hospitais e o desespero das famílias. Essa informação basta para entender que o foco não está nas discussões ideológicas que envolvem o conflito, mas nas pessoas reais que são diretamente impactadas por ele.

É também óbvio que há um cerne político em tudo que circunda o extracampo do filme, mas isso passa longe de acusações de uma abordagem unilateral ou propagandista. Acima de tudo, 20 dias em Mariupol é uma obra sobre um ucraniano que filma os escombros do seu próprio país e os cadáveres dos seus conterrâneos. Um ato de esforço jornalístico e humanitário, mas também de autoflagelo.

Como um dos únicos jornalistas com acesso à Mariupol, as imagens de Mstyslav Chernov se transformaram na principal fonte de comunicação entre o mundo e a cidade sitiada. Em certa cena, um comandante da polícia arrisca a vida para que o jornalista consiga enviar aos editores os registros de uma maternidade que fora bombardeada pelos russos. “Irá mudar o rumo da guerra”, justifica o policial.

Muitas dessas imagens já são de conhecimento público, entraram em guerras de narrativas com porta-vozes russos e foram estampadas em noticiários com manchetes de jornais ao redor do mundo. Em 20 dias em Mariupol, elas são acompanhadas apenas pela voz em off do próprio Chernov – algo que lembra as incursões do cineasta alemão Werner Herzog em documentários que analisam registros audiovisuais que compõem tragédias. A diferença é que o ucraniano retorna às imagens para confrontar todos os horrores que ele mesmo vivenciou e filmou, uma espécie de exorcismo particular. Uma abordagem que se soma a sua pouca interferência ao longo das próprias filmagens (conhecemos seu rosto unicamente perto do final do longa-metragem).

Como sempre é bom reforçar nos debates que circundam o filme, o documentário acompanha um ucraniano que testemunha o seu povo morrer em tempo real, algo que pode ser esquecido nas guerras ideológicas que têm dominado a sua repercussão, principalmente após a indicação ao Oscar 2024 de Melhor Documentário e os interesses midiáticos do país que está por trás da premiação (um esforço inversamente proporcional em jogar luz aos horrores semelhantes que estão acontecendo com o povo palestino, por exemplo). A obra não está isenta do debate ideológico, mas o seu valor cinematográfico é mais amplo e intrínseco à força das imagens documentais que produz.

Um dos pontos interessantes é o entrelaçamento entre o caráter de urgência dos seus registros jornalísticos e a tendência “Found Footage”, que se notabilizou em filmes de terror como A Bruxa de Blair (1999) e Atividade Paranormal (2007). Isso porque o documentário também mergulha em uma narrativa de horror, onde toda brutalidade das imagens passa pela perspectiva do próprio cinegrafista. Ao longo do filme, ele nos conduz em diversas situações de tensão – desde conversas com civis desesperados, salas de cirurgias ensanguentadas, até estar na mira de um tanque.

O jornalista se põe como uma testemunha majoritariamente ocular, onde toda concepção de plano extrapola o caráter jornalístico e carrega um potencial imaginativo próprio. Isso não acontece necessariamente pelas gravações, mas pela imanência cinematográfica delas, a sensibilidade de Chernov ao seu redor e o trabalho minucioso da montadora Michelle Mizner. Se pensarmos em um filme como Assalto à 13ª DP (1976), de John Carpenter, como uma grande metáfora ficcional a um cerco enclausurador de violência, 20 dias em Mariupol é uma documentação real dessa ideia, um filme sobre o terror de sentir-se acuado em delimitações espaciais e da iminência da morte. A inversão é que no documentário essas imagens são reais, as crianças são reais e as mortes são reais. Não há efeito visual ou controle de narrativa quando uma cena resulta na interrupção real e objetiva de uma vida.

Pelo seu caráter intrinsecamente denunciatório, o documentário vem acumulando diversas premiações, como o Bafta de Melhor Documentário, o prêmio do público na categoria de Documentário no Festival de Sundance, e anteriormente a própria cobertura de Chernov, ao lado de outros colegas jornalistas, foi vencedora do prêmio Pulitzer em 2023.

Mas no final de tudo, 20 dias em Mariupol não deixa de ser uma obra sobre imagens brutais e cruas, alheio à ideologia no seu cerne mais fundamental. Uma peça sobre o horror que o homem pode produzir registrado em filme. É uma pena que algumas reações descredibilizem esse arsenal de imagens históricas ao envenená-las por debates teóricos ou políticos – e abdique não uma ideia de empatia rasa, mas uma conexão real com a dor humana universal. Os anos vão seguir e talvez tudo mude. As ideias, debates e a guerra irão passar, mas todos os vestígios dos seus horrores e as histórias das vidas que ela tentou apagar sempre continuarão eternizadas nas 1h35 deste documentário.

JOÃO RÊGO, jornalista e assistente de curadoria do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco.


 

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