“O agente secreto”, um thriller auspicioso
Filme de Kleber Mendonça Filho, protagonizado por Wagner Moura, exibido, no sábado (24), no Festival de Cannes, onde concorre à Palma de Ouro, alcança aprovação máxima da crítica
LUCIANA VERAS, DE CANNES
22 de Maio de 2025
Wagner Moura, em cena de "O agente secreto"
Foto Victor Jucá/Divulgação
Um evento da magnitude do Festival de Cannes, em curso nesta cidade mediterrânea da França desde o dia 13 e prestes a encerrar sua 78ª edição no sábado (24), tem dados superlativos: a organização informa que cerca de 35 mil pessoas frequentam as milhares de sessões dos 22 filmes na competição pela Palma de Ouro, dos outros 20 títulos da mostra Un Certain Regard, dos 12 longas-metragens selecionados hors concours e dezenas de outras obras divididas em programas como Cannes Classics e Cinéma de la Plage e nas paralelas Semana da Crítica ou Quinzena dos Realizadores. Contudo, mesmo neste espetáculo hiperbólico, a incluir ainda a presença de Tom Cruise para a première mundial de Missão Impossível - O acerto final, não é desplante ou equívoco afirmar que a exibição de O agente secreto (Brasil/França/Holanda/Alemanha, 2025), nova ficção do realizador pernambucano Kleber Mendonça Filho, foi um acontecimento.
E de proporções cataclísmicas, a começar bem antes da projeção no Grand Thêatre Lumière, a principal e maior sala do Festival de Cannes, com seus mais de 2 mil assentos. As imagens da caminhada da equipe de O agente secreto, com Kleber, a produtora Emilie Lesclaux e o ator Wagner Moura à frente, dançando frevo ao lado do grupo Guerreiros do Passo, transcenderam o perímetro da Croisette e ganharam o mundo: o trajeto percorrido entre o Hotel Majestic e tapete vermelho para o tradicional Montée des Marches, ao som de Vassourinhas na execução da Orquestra Popular do Recife, com um estandarte em nome do filme e em alusão ao Cinema São Luiz, viralizou a partir das redes sociais do festival, multiplicou-se em incontáveis clipes e se destacou nos perfis da Secretaria de Cultura de Pernambuco, do Ministério da Cultura e do próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“Trouxemos 15 músicos e dançarinos do Recife, do Guerreiros do Passo, uma das coisas mais lindas do Carnaval de Pernambuco, e foi uma grande celebração de energia que trouxe a equipe em cortejo ao tapete vermelho e rendeu uma boa mídia para o Brasil e para Pernambuco”, resumiria o diretor à Continente dois dias depois, em um escritório no qual se dividiria entre várias e rápidas entrevistas - naquela tarde, apenas para jornalistas brasileiros, mas segundo Anna Luiza Muller, da Primeiro Plano Comunicação, assessora de imprensa deste e de todos os outros longas de Kleber, “tem gente do mundo inteiro atrás dele”.
A procura é compreensível diante da repercussão em publicações prestigiadas como Le Monde (França), The Guardian (Inglaterra), Variety, The Hollywood Reporter e The New Yorker (Estados Unidos) e da acolhida por parte da crítica e da cinefilia: nas bolsas de apostas que fervem durante o próprio festival, O agente secreto aparece com notas altas, mesmo ante a concorrência com cineastas como Lynne Ramsay, Wes Anderson, Sergei Loniztsa, Jafar Panahir, Richard Linklater e Julia Ducournau, que venceu a Palma de Ouro em 2021 por Titane; e no popular site Rotten Tomatoes, com 100% de aprovação. “O filme foi muito bem recebido aqui em Cannes. Estamos felizes com a recepção na mídia, não só brasileira, mas francesa e internacional”, comentou Kleber.
A julgar pelos quinze minutos de conversa que a Continente teve com este jornalista formado pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, crítico de cinema do Jornal do Commercio que durante anos cobriu Cannes até se tornar um autor reconhecido pelo festival (onde exibiu Aquarius e Bacurau, codirigido com Juliano Dornelles, na competição oficial em 2016 e 2019, respectivamente, e para onde trouxe Retratos fantasmas na seção Special Screenings em 2023), a felicidade se ancora, também, na certeza que Kleber e toda equipe compartilham sobre a qualidade da obra fílmica em si e se espraia como os contagiantes acordes e movimentos do frevo. Ao menos entre os jornalistas credenciados para esta edição e as centenas de representantes nacionais no Marché du Film, braço de negócios cujo país de honra em 2025 é justamente o Brasil, a constatação é de que O agente secreto é um grande filme. Sem dúvida um “thriller político”, como sintetiza o release divulgado pela assessoria, e também indubitavelmente um mergulho mais adensado e profundo em temas caros à filmografia de Kleber, como memória, mobilizações e insurgências contra poderes estabelecidos e as frestas de afeto e luta que teimam em rasgar os horizontes turvos.
Logo no início, os créditos ensinam que o enredo se passa no Brasil de 1977, uma época de muita “pirraça”. Marcelo (Wagner Moura) chega a um posto de gasolina em um paisagem tipicamente pernambucana, rodeada de canaviais, no volante de um fusca amarelo com o qual viaja há três dias. O destino é o Recife, sua cidade natal, conforme a audiência há de saber mais tarde. Após este prólogo, em que policiais chegam para abordar Marcelo e pedem propina e há um cadáver com o cérebro estourado repousando sob um papelão por dois dias, tem início a narrativa cindida em três partes: O sonho do menino, Institutos de identificação e Transfusão de sangue.
Na capital pernambucana, no meio do Carnaval, Marcelo reencontra seu Alexandre (Carlos Francisco, de Bacurau e Marte Um), projecionista do São Luiz (impossível não remeter à homenagem que Kleber faz ao seu Alexandre “da vida real”, projecionista do Art Palácio, em Retratos fantasmas), avô do seu filho, a quem anseia por rever, e encontra aconchego no seio de uma espécie de vila de “refugiados”, onde mora Cláudia (Hermila Guedes, de Era uma vez eu, Verônica e O Céu de Suely) e dona Sebastiana (a brilhante Tânia Maria, que também aparece em Bacurau) personifica o apoio a pessoas que estão de passagem, como a angolana Tereza Vitória (Isabél Zuaa, de Joaquim). Se por um lado O Som ao Redor, Aquarius e Retratos Fantasmas também se caracterizavam por uma narrativa em tríptico, por outro se reafirma outro aspecto crucial da maneira como o realizador pernambucano estrutura suas histórias: nem sempre é preciso nomear ou escancarar, com palavras, os horrores que se sentem e dos quais se foge.
Indagado sobre a opção pela palavra “pirraça” em vez de “ditadura”, Kleber responde: “Acho mais interessante sentir o peso de uma presença do que você ficar falando da presença, sabe. Quando dona Sebastiana fecha a porta, baixa a voz e diz ao personagem do Wagner que ‘isso é aqui para você, é muito bom poder lhe ajudar’, por que ela está falando baixo? E para que ajudar? Tem alguma coisa acontecendo? Eu acho isso mais interessante e o filme todo foi desenvolvido assim, então leva um certo tempo para você juntar as peças e entender inclusive a gravidade da situação. Quando isso acontece, acho forte”. Já sobre a decisão de enquadrar as 2h38 de duração em três capítulos, ele revela que é um resultado da montagem, assinada por Eduardo Serrano e Matheus Faria, parceiros habituais dele. “Na montagem, você começa a entender melhor como o filme se comporta e talvez precise de um parágrafo aqui, como se fosse um parágrafo, para explicar melhor”, situa.
O roteiro d’O Agente Secreto brotou no meio da pandemia. “Veio no segundo semestre de 2020 e quando comecei a escrever já queria desenvolver para Wagner. O tempo foi passando e trabalhar no Retratos Fantasmas me ajudou muito no roteiro. Porque eu fiz muita pesquisa de arquivo e só de você ler tantos jornais antigos no Arquivo Público, já entra num clima muito específico de história. Tinha história sobre a Perna Cabeluda, anúncio de classificado eu achava interessante por causa do linguajar, da maneira de se referir às empregada domésticas e a marginais - mau elemento, meliante. Pardo, sabe? Pederasta. Tudo isso me coloca em um Brasil que era mais áspero do que hoje. E eu queria muito incluir essa atmosfera no filme”, observa o diretor.
“Atmosfera” talvez seja uma das palavras-chave e/ou conceito fundamental para perceber O agente secreto como a mais recente construção no projeto cinematográfico e político de Kleber Mendonça Filho. O filme, decerto o mais ambicioso já rodado no Recife no tocante à reconstituição de época, captura o olhar do público pelo magnetismo em ambientar o visível e invisível naqueles tensos dias em que Marcelo ora é acolhido por Waldemar (Thomás Aquino) e Elza (Maria Fernanda Cândido), membros de uma rede que busca auxiliar as pessoas a sair do Brasil, ora é recebido pelo comissário Euclides (personagem defendido com maestria pelo ator cearense Robério Diógenes), delegado corrupto que manda matar e invadir o IML para sumir com evidências com a mesma galhardia com que comanda um teatro para melhor acomodar a parte financeiramente mais privilegiada em um depoimento. “Ele é dúbio, engraçado, mas ao mesmo tempo horroroso… Um fascista, mas simpático”, descreve Kleber.
E há um trabalho incrível para concretizar essa “atmosfera” e espelhar uma fusão entre elementos familiares à gramática e à dicção cinematográfica do diretor (o centro do Recife, o texto ágil com expressões populares, o bom humor, o flerte com o fantástico - quem vai ter medo da Perna Cabeluda ou dos tubarões de Candeias? - e olhar agudo e apurado para os planos que revelam muito mais do que o dito em cena) e o desejo de contar uma história que traduz as opressões de um passado não tão longínquo do Brasil. A direção de arte de Thales Junqueira e os figurinos de Rita Azevedo (membros recorrentes das trupes fílmicas comandadas por Kleber e Emilie Lesclaux) se aliam à fotografia de Evgenia Alexandrova, uma das poucas integrantes da equipe - em que também se incluem, entre outros, Dora Amorim na produção executiva, Fellipe Fernandes e Leonardo Lacca como diretores assistentes e os irmãos Mateus Alves e Tomaz Alves Souza na trilha sonora - que ainda não havia trabalhado com o diretor, para compor uma imagem única e impactante.
“Se você deixar correr solto, a imagem de um filme de hoje vai parecer muito com a imagem de um qualquer filme de hoje e eu não queria que o filme tivesse a imagem das câmeras modernas de hoje. Conversei muito com Evgenia, mostrei referências de cinema brasileiro e estrangeiro, de coisas que eu gostava e que por algum motivo não são mais feitas. Por exemplo, a cor d’O agente secreto você não vê muito nos filmes hoje, não é?”, questiona o cineasta. “Recentemente, vi um filme do Steve McQueen, Blitz, que se passa em 1942, em Londres, e a imagem do filme é de uma câmera moderna de hoje. Não estou criticando, mas eu não queria isso, e sim trabalhar com lentes com 60 anos de idade, da Panavision, que trazem um certo look, uma certa distorção. Muita gente jovem não usa porque acha que é ruim. Não, ela não é ruim. Ela tem personalidade. É diferente. É feito dizer “Não gosto de cachaça porque queima aqui”, brinca Kleber, alisando o pescoço. “Tudo bem, eu entendo… Mas é cachaça, não tem como fugir. Então usar aquelas lentes foi muito importante porque elas têm muita personalidade. E aí tudo foi se juntando ao trabalho de luz, com a correção de cor e com a compreensão de Evguenia, que não é brasileira, mas é bem sensível”.
Por fim, talvez para borrar ainda mais os limites entre local/global, algo tão difundido e propalado na cultura ocidental, o que Kleber Mendonça Filho faz em seu thriller eminentemente político, de ação como os filmes de Brian de Palma e Francis Ford Coppola nos anos 1970, é adorná-lo de uma trilha sonora em que sobressaem tanto a música popular nordestina, como frevos de Nelson Ferreira e a Banda de Pífanos de Caruaru, quanto a vanguarda revolucionária de Paêbiru, o seminal álbum de Lula Côrtes e Zé Ramalho gravado em 1975, presente com as canções Trilha de Sumé / Culto à Terra / Bailado das Muscarias - Terra e Harpas dos Ares - Ar. “Ninguém falou ainda sobre isso e talvez seja bom falar que não foi planejado. Três anos atrás, com aquelas duas músicas do Paêbiru no roteiro, para mim era uma grande conquista garantir os direitos… Porque se essas músicas saíssem do filme, fico arrepiado só de pensar na perda. E agora o filme está saindo em maio, com duas músicas, e com um trabalho incrível de mixagem e eu disse para a equipe francesa que era um disco de 50 anos, gravado lá perto de casa. É incrível”, vibra.
O agente secreto é assinado pela CinemaScópio, produtora de Kleber e Emilie Lesclaux, representando o Brasil, e por MK Productions (França), Lemming (Holanda) e One Two Films (Alemanha). A estreia no Brasil, com distribuição da Vitrine Filmes, é no segundo semestre. Em junho, o filme compete no Sydney Film Festival, que Aquarius venceu em 2016. Em Cannes, o longa-metragem foi comprado pela Neon para distribuição em território norte-americano, o que atiçou a curiosidade dos cinéfilos - a Neon comprou todas as últimas cinco Palmas de Ouro, de Parasita, de Bong Joon-ho, a Anora, de Sean Baker. A Mubi também fechou acordo para distribuir o filme.
Em fevereiro, O último azul, do pernambucano Gabriel Mascaro, ganhou o Grand Prix do Júri na Berlinale. Em março, Ainda estou aqui, de Walter Salles, deu ao Brasil o inédito Oscar de melhor filme internacional. Kleber já foi premiado em Cannes, pois seis anos atrás, o Bacurau dele e de Juliano Dornelles dividiu o Prix du Jury com Les miserables, de Ladj Ly. Neste auspicioso maio de 2025, em que a alegria do frevo escoltou O agente secreto para sua sessão de estreia mundial, a Continente pergunta se, em caso de uma nova vitória e a tríplice consagração do cinema brasileiro neste primeiro semestre, não haveria um novo Carnaval? “Eu não vou especular sobre isso”, responde, em tom comedido. “Vamos ver o que acontece quando acontecer”.
LUCIANA VERAS, jornalista.