Resenha

Dentro das quatro paredes

Rachel Daisy Ellis apresenta, em diversos festivais, seu documentário 'Eros'

TEXTO Luciana Veras

26 de Março de 2024

Existem mais de 5 mil moteis em atividade no Brasil

Existem mais de 5 mil moteis em atividade no Brasil

Foto Desvia Filmes

Na mitologia grega, Eros é o deus do amor e do desejo. Conhecido como Cupido no cânone romano, é retratado, na maioria das vezes, como uma divindade alada a empunhar arco e flecha a fim de atingir e assim inocular qualquer criatura humana com o vírus da paixão. Não é difícil imaginar por que a realizadora Rachel Daisy Ellis escolheu o nome deste mito para intitular seu primeiro longa-metragem - EROS (Brasil, 2024), obra com os selos da Desvia Filmes, produtora de Rachel e do cineasta Gabriel Mascaro, e da Ponte Produtoras, de Dora Amorim, e único filme brasileiro selecionado para a seção NEXT:WAVE da 21ª edição do CPH:DOX 2024, o Festival Internacional de Documentários de Copenhagen, que se estende até o próximo 3 de abril. 

Em breves linhas que constam no material de divulgação preparado ainda em janeiro, quando EROS foi exibido na Mostra Aurora da 27ª Mostra de Tiradentes, em Minas Gerais, surge a descrição: o documentário “acessa a intimidade vivenciada na maior instituição erótica do Brasil: o motel”. A premissa também está delineada de modo sucinto: “Pessoas frequentadoras foram convidadas a se filmar durante uma noite e compartilhar os seus vídeos para fazer parte de um filme”. Para o time curatorial de Tiradentes, tratava-se de um “curioso desafio de voyeurismo e exibicionismo”. “Rachel Daisy Ellis cria um ecossistema robusto, através das imagens feitas com aparelhos diversos, costurando esses relatos em uma obra que não apenas contrapõe preceitos, como estabelece novos caminhos nas discussões de erotismo, sexualidade e afeto”, afirmava o texto assinado pelos curadores Francis Vogner dos Reis, Juliano Gomes e Tatiana Carvalho Costa e pelo curador assistente Rubens Fabricio Anzolin.

“Descobri que quase toda cidade tem um motel chamado Eros”, brinca Rachel, uma britânica há muito radicada no Recife, onde existe um famoso estabelecimento com este nome. “E essa coisa da mitologia era algo que combinava porque traz a reflexão sobre o que seria esse desejo, essa paixão, num espaço de intimidade e sexo e do que significa amor”, acrescenta a diretora em uma entrevista por telefone à Continente com um oceano de distância – ela estava em Lisboa, onde vai passar os próximos meses, mas se preparava para regressar ao Brasil a fim de acompanhar exibições em Salvador, na competição do Panorama Coisa de Cinema, e em São Paulo, na itinerância da Mostra de Cinema de Tiradentes, antes de atravessar o Atlântico novamente para participar do festival na Dinamarca.

EROS surgiu do “fascínio”, para usar uma palavra repetida algumas vezes durante a conversa, que ela assume pela “instituição motel”. “Todo mundo vai naquele lugar, mas o espaço em si, com sua arquitetura, esconde a identidade das pessoas. Como isso se reflete nas relações íntimas e amorosas das pessoas? Até que ponto é um espelho da forma como as pessoas se relacionam? Fiquei com essa curiosidade, até para pensar diferente de como vemos o motel na mídia – nas outras séries, nas novelas e filmes ou nas propagandas, tudo é super estereotipado”, diz Rachel, que não demorou a entender que precisava, sim, também estar naquela teia diversa de pessoas e personas que seu filme descortina.


A diretora Rachel Daisy Ellis em cena no filme. FOTO: Frame de EROS/Fistaile 

“Para além dessa ideia que sempre tive de fazer um filme sobre motel, juntou uma série de acontecimentos: me separei e, nessa minha vida depois de separada, comecei a conhecer outras pessoas. Estava em um momento de busca, com outra compreensão da sexualidade, e com isso a vontade de fazer esse filme ficou mais forte. Veio a ideia de convidar as pessoas a se filmarem e, ao mesmo tempo, a percepção de que também precisava estar nisso. A pesquisa foi muito extensa e rolou um momento em que percebi que essa parte do processo é real e verdadeira e eu tinha que estar lá”, pontua.

De fato, a diretora é a primeira pessoa a aparecer em foco, explorando os limites do quarto do motel e explicitando o convite para que os espectadores adentrem um universo que é “tão perto/tão longe”: muito embora o Brasil tenha 5 mil moteis em atividade, que registram mais de cem milhões de hospedagens, como o documentário explica nos seus créditos finais, o que acontece entre aquelas quatro paredes, e sob o espelho do teto, permanece tabu, mistério ou elucubração. Ao longo de quase cem minutos de projeção, vemos cenas captadas no Recife e em cidades tão díspares como São Paulo, Curitiba, Guarulhos, Petrolina, Niterói, Campo Grande, Fortaleza e Manaus.

Se por um lado essa amplitude geográfica não pode ser aferida, posto que as imagens concatenadas pelo preceito inicial de EROS, no qual são as próprias pessoas a se enquadrar, por outro o filme acerta, e muito, ao apresentar pessoas, casais e até mesmo trisais que exploram e alargam as fronteiras da sexualidade contemporânea: há o par heteronormativo; o casal adepto do sadomasoquismo; um casal mais velho; outro que na verdade é um trio composto por duas mulheres e um rapaz, ele fantasiado de padre; dois jovens gays monogâmicos; um casal evangélico que não vê problemas em falar de sexo; aqueles que apostam na liberdade do swing; e um par formado por uma mulher trans e um homem negro, os dois egressos do sistema penitenciário. 

“Eu sabia que nunca iria representar todo mundo que vai ao motel, mas ao final de dois anos de pesquisa, vi, por exemplo, que era importante ter um casal mais velho, de mais idade, porque essa sexualidade existe também. Acho que o filme traz essa diversidade de corpos e a ideia do motel como um espaço que sai do cotidiano, do dia a dia das pessoas, e que permite um outro tipo de vivência. Acho que é impossível fugir do imaginário do motel que tem em todas as cidades, que está na beira da estrada, mas quis tentar mostrar que existem diversas razões que levam as pessoas a irem ao motel, e não apenas infidelidade ou fantasia, mas como um refúgio mesmo. Para mim, era interessante ter essa diversidade dos corpos e das razões em um filme que provocasse reflexão”, comenta Rachel Daisy Ellis.


Cartaz do documentário

Não é a primeira incursão por trás das câmeras da produtora de Divino amor (2019), Boi neon (2015) e Ventos de agosto (2014), três longas com a assinatura de Gabriel Mascaro. Em 2018, Rachel dirigiu o curta-metragem Mini Miss, selecionado para o É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários. Em EROS, que também produz, o trabalho veio sem pressa. “Foram quase três anos de pesquisa, em que li e ouvi muitas histórias. Queria experimentar e vi que precisava de um editor para me ajudar a entender como funcionaria tudo isso. Chamei Matheus Farias e juntos montamos as duas primeiras personagens. O processo de edição foi meio circular, pois estávamos sempre pesquisando, filmando e editando ao mesmo tempo. Na medida que ia surgindo uma pessoa interessante e que topava filmar, que aceitava aquele dispositivo, o material vinha, tudo podia mudar e Matheus e eu mexíamos no corte do filme”, conta, referindo-se ao realizador pernambucano que rodou os curtas Caranguejo rei (2019) e Inabitável (2020) ao lado de Enock Carvalho e responde pela montagem de Retratos fantasmas (2023), de Kleber Mendonça Filho, e Propriedade (2022), de Daniel Bandeira. 

Depois destas primeiras exibições em festivais, nas quais “as pessoas riram muito, aplaudiram e se emocionaram” segundo a diretora, EROS deve se manter em circulação por mostras e afins até entrar em cartaz no início do segundo semestre, pela distribuidora Fistaile. O documentário foi rodado com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual - FSA e terá o lançamento comercial viabilizado por um montante oriundo da Lei Paulo Gustavo. Muito contente com os meses iniciais deste seu documentário, Rachel Daisy Ellis torce agora para que o filme desperte a atenção de plateias interessadas, também, em debater as múltiplas possibilidades de fruição de uma sexualidade mais fluida e aberta e menos preconceituosa. 

“O Brasil tem essa contradição de ser um país sexualizado, com muio calor humano, energia sexual, as imagens do Carnaval e a relação que os brasileiros e brasileiras têm com o corpo, ao mesmo tempo em que sabemos que existe muita violência sexual e contra as mulheres. O filme não vai para esse lugar de explorar a contradição e discutir a violência, mas sim parte da ideia inicial de entender um pouco dessa instituição que é o motel, onde as pessoas vão não apenas para transar, mas também para viver suas fantasias e compartilhar momentos de intimidade, que inclui fazer refeição, conversar ou às vezes apenas descansar. Espero que uma obra como EROS ajude no debate mais amplo sobre sexualidade, intimidade e conexão com o próprio corpo”, alinhava a cineasta. 

LUCIANA VERAS, jornalista e crítica de cinema. 

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