De fato, a diretora é a primeira pessoa a aparecer em foco, explorando os limites do quarto do motel e explicitando o convite para que os espectadores adentrem um universo que é “tão perto/tão longe”: muito embora o Brasil tenha 5 mil moteis em atividade, que registram mais de cem milhões de hospedagens, como o documentário explica nos seus créditos finais, o que acontece entre aquelas quatro paredes, e sob o espelho do teto, permanece tabu, mistério ou elucubração. Ao longo de quase cem minutos de projeção, vemos cenas captadas no Recife e em cidades tão díspares como São Paulo, Curitiba, Guarulhos, Petrolina, Niterói, Campo Grande, Fortaleza e Manaus.
Se por um lado essa amplitude geográfica não pode ser aferida, posto que as imagens concatenadas pelo preceito inicial de EROS, no qual são as próprias pessoas a se enquadrar, por outro o filme acerta, e muito, ao apresentar pessoas, casais e até mesmo trisais que exploram e alargam as fronteiras da sexualidade contemporânea: há o par heteronormativo; o casal adepto do sadomasoquismo; um casal mais velho; outro que na verdade é um trio composto por duas mulheres e um rapaz, ele fantasiado de padre; dois jovens gays monogâmicos; um casal evangélico que não vê problemas em falar de sexo; aqueles que apostam na liberdade do swing; e um par formado por uma mulher trans e um homem negro, os dois egressos do sistema penitenciário.
“Eu sabia que nunca iria representar todo mundo que vai ao motel, mas ao final de dois anos de pesquisa, vi, por exemplo, que era importante ter um casal mais velho, de mais idade, porque essa sexualidade existe também. Acho que o filme traz essa diversidade de corpos e a ideia do motel como um espaço que sai do cotidiano, do dia a dia das pessoas, e que permite um outro tipo de vivência. Acho que é impossível fugir do imaginário do motel que tem em todas as cidades, que está na beira da estrada, mas quis tentar mostrar que existem diversas razões que levam as pessoas a irem ao motel, e não apenas infidelidade ou fantasia, mas como um refúgio mesmo. Para mim, era interessante ter essa diversidade dos corpos e das razões em um filme que provocasse reflexão”, comenta Rachel Daisy Ellis.
Cartaz do documentário
Não é a primeira incursão por trás das câmeras da produtora de Divino amor (2019), Boi neon (2015) e Ventos de agosto (2014), três longas com a assinatura de Gabriel Mascaro. Em 2018, Rachel dirigiu o curta-metragem Mini Miss, selecionado para o É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários. Em EROS, que também produz, o trabalho veio sem pressa. “Foram quase três anos de pesquisa, em que li e ouvi muitas histórias. Queria experimentar e vi que precisava de um editor para me ajudar a entender como funcionaria tudo isso. Chamei Matheus Farias e juntos montamos as duas primeiras personagens. O processo de edição foi meio circular, pois estávamos sempre pesquisando, filmando e editando ao mesmo tempo. Na medida que ia surgindo uma pessoa interessante e que topava filmar, que aceitava aquele dispositivo, o material vinha, tudo podia mudar e Matheus e eu mexíamos no corte do filme”, conta, referindo-se ao realizador pernambucano que rodou os curtas Caranguejo rei (2019) e Inabitável (2020) ao lado de Enock Carvalho e responde pela montagem de Retratos fantasmas (2023), de Kleber Mendonça Filho, e Propriedade (2022), de Daniel Bandeira.
Depois destas primeiras exibições em festivais, nas quais “as pessoas riram muito, aplaudiram e se emocionaram” segundo a diretora, EROS deve se manter em circulação por mostras e afins até entrar em cartaz no início do segundo semestre, pela distribuidora Fistaile. O documentário foi rodado com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual - FSA e terá o lançamento comercial viabilizado por um montante oriundo da Lei Paulo Gustavo. Muito contente com os meses iniciais deste seu documentário, Rachel Daisy Ellis torce agora para que o filme desperte a atenção de plateias interessadas, também, em debater as múltiplas possibilidades de fruição de uma sexualidade mais fluida e aberta e menos preconceituosa.
“O Brasil tem essa contradição de ser um país sexualizado, com muio calor humano, energia sexual, as imagens do Carnaval e a relação que os brasileiros e brasileiras têm com o corpo, ao mesmo tempo em que sabemos que existe muita violência sexual e contra as mulheres. O filme não vai para esse lugar de explorar a contradição e discutir a violência, mas sim parte da ideia inicial de entender um pouco dessa instituição que é o motel, onde as pessoas vão não apenas para transar, mas também para viver suas fantasias e compartilhar momentos de intimidade, que inclui fazer refeição, conversar ou às vezes apenas descansar. Espero que uma obra como EROS ajude no debate mais amplo sobre sexualidade, intimidade e conexão com o próprio corpo”, alinhava a cineasta.
LUCIANA VERAS, jornalista e crítica de cinema.