Oito anos depois, o Cordel está de volta, com Viagem ao coração do sol, quarto álbum autoral do grupo. Cada um dos seus três primeiros discos traz algo que o distingue dos outros, seja na temática ou nos arranjos. No novo trabalho, é o conceito que se destaca, desenvolvido sob o mote da palavra liberdade – tal qual sugere a primeira música divulgada nas redes sociais da banda, Liberdade, a filha do vento. Essa escolha temática, nestes tempos sombrios de crescente perda de direitos, soa como um ato de resistência, a despeito do tom lírico que a palavra assume no disco.
Imagem da nova fase. Foto: Tiago Calazans/Divulgação
Outro traço que se sobressai, recorrente nas construções poéticas do Cordel, é a personificação dos elementos da natureza, sentimentos e sensações – familiar aos ouvidos acostumados aos discos anteriores. Essa tal “liberdade”, ou “a filha do vento”, no contexto atual ganha também o sentido daquela que anda de mãos dadas com a democracia. “Não há palavra que deixa de ser liberdade./ Aquele rio é vermelho”, dizem os versos da música, ilustrando que a palavra, em tempos de silêncio, é um ato de coragem. Viagem ao coração do sol precisa ser ouvido mais de uma vez para ser minimamente compreendido.
Com relação à divulgação audiovisual, os videoclipes de Liberdade, a filha do vento, tanto o oficial quanto a versão em 360 graus, trazem iluminação característica à da paisagem sertaneja, com predominância dos tons ocres em contraste ao céu azul. Esses e outros pontos remetem ao clipe do hitChover, do álbum de estreia da banda, lá pelos “andos” de 2000. Nas paisagens do Sertão em Liberdade..., o céu e as estrelas sinalizam esse retorno do Cordel às origens, mas, desta vez, aprofundando ainda mais a relação com as tecnologias iniciada em Transfiguração, cujos arranjos mesclam instrumentos eletrônicos a referências das metrópoles, sem perder a gênese percussiva do grupo.
Já na abertura do novo álbum, sintetizadores e a voz de Lirinha, em uma versão levemente robotizada, provocam a memória dos que curtem ficção científica ao aterrissar de naves, que a seguir avisa: “O sonho acabou e só assim saímos de dentro da terra em direção ao sol. O mundo agora é esse”. Com todas as peculiaridades que o contexto sociopolítico nos dá, eis a hora de voltar. E o Cordel tem a habilidade de trazer temas históricos e políticos de forma poética. Por exemplo, tocam nas temáticas da descentralização da cultura e da ancestralidade através da própria criação, com suas referências a cordéis, artistas populares, percussão de matriz negra e indígena. As primeiras músicas de Viagem ao coração do sol situam o ouvinte nesse recomeço – muito mais do que um retorno – da banda.
O novo disco oscila entre diversos ritmos e, como já vinha sendo marcante nos dois álbuns solo (Lira, 2011; O labirinto do desmantelo, 2015), o lado cantor de Lirinha se sobrepõe ao de declamador. O músico e diretor artístico do disco Fernando Catatau, de Fortaleza, já trabalhou com Karina Buhr, Otto e Céu. Aqui, ele imprime sua personalidade, tanto no jeito de tocar em algumas canções (ele também participa como instrumentista do disco), quanto no que produz. O resultado desse encontro é que há momentos nos quais a identidade sonora do Cordel se sobressai e outros em que é possível identificar a presença de Catatau ou das influências que permeiam a sua banda Cidadão Instigado – os anos 1980 da new wave e da eletrônica, por exemplo.
A disposição das faixas é minuciosa. Canções em que a percussão sobressai e ganha mais peso são mescladas a outras cujas vozes ou as cordas têm protagonismo, dando certa leveza e fluidez sem que haja tantas repetições rítmicas. Na sexta faixa, No compasso da mãe natureza, percebe-se, como no primeiro disco, influências do povo Xucuru, habitante da Serra Ororubá de Pesqueira, cidade vizinha à Arcoverde, de onde saiu o grupo. Na faixa Destilações, de Maviael Melo e Alisson Menezes, pela primeira vez o Cordel grava uma música que não é de sua autoria. A última música, intitulada Cavaleiro das estradas do sol, conta com a participação do violeiro Manassés e a escolha soa como se o grupo ratificasse a ideia de que para ir além, é preciso visitar a tradição.
Desde o começo, o grupo mostrou conceitos sonoros e poéticos muito bem-definidos, seja em Cordel do Fogo Encantado (2001), O palhaço do circo sem futuro (2002) ou em Transfiguração. Se cada um dos três disco carrega suas peculiaridades, mais do que isso, eles se correlacionam. Entre as suas inúmeras narrativas fragmentadas, é como se contassem uma história, a do Cordel, suas influências e seus anos de estrada. A identidade, essa coisa de ouvir e saber de onde veio, é habilidade só dos artistas que conseguem ultrapassar a fronteira entre mímese e originalidade, o que pode ser bom – como acontece com a maioria –, mas também pode, com o passar dos anos, encaminhar para o abismo das redundâncias.
No início da inclusão digital no Brasil, com essa coisa (tão contemporânea ainda hoje) de unir música, poesia e espetáculo através da experiência dos shows, o Cordel conquistou uma legião de seguidores, no sentido mais analógico da palavra. Se tinha apresentação do quinteto marcada, era certeza de lotar a Rua da Moeda, no Recife, ou outros lugares do Brasil e do mundo. Para se ter uma ideia do fenômeno que a banda era – e continua sendo, agora também nas redes sociais –, em 2005, o Cordel entrou para o conjunto de artistas que tiveram seus próprios Acústico MTV apresenta para chamarem de seus, registro atualmente disponível no Youtube.
Desde o primeiro álbum, o grupo pernambucano não deu trégua. Já estreou no mundo com a produção musical de um dos grandes mestres da música brasileira: Naná Vasconcelos, eleito um “sem número” de vezes melhor percussionista do mundo. No meio daquela percussão pesada de trovões e tempestades que marcaram os primeiros discos – principalmente o da capa vermelha –, encontra-se qualquer coisa de leveza e equilíbrio, característica da sonoridade de Naná. O segundo, por sua vez, o Palhaço do circo sem futuro, foi produzido pelos próprios integrantes e é a saudade – esta temática tão cara à poesia oral do Nordeste – que conduz todo o conceito do disco. Um exemplo é o trecho da canção Na veia, um dos grandes sucessos: “Aquele cheiro, som, imagem do teu corpo incendeia/ E um rio carregado de saudade vem correr na minha veia/ Na veia, amor, na veia/ É como a luz da lua que atravessa a parede da cadeia/ Clareia mais forte que o sol”. Em Transfiguração, com produção do saudoso Carlos Miranda, o Cordel inaugura sua incursão pelo som eletrônico.
Já se falou em trilogia, mas com a chegada deste quarto álbum, talvez não faça mais tanto sentido. Como é possível observar, o Cordel sempre teve parcerias de peso. Mesmo nos trabalhos solos de Lirinha e Clayton Barros durante o intervalo do grupo. Apesar de seguirem caminhos distintos na música, sempre foram acompanhados de gente muito talentosa: Neilton Carvalho, da Devotos, nas guitarras da banda de Lira; Pupillo, baterista da Nação Zumbi na produção de O labirinto e o desmantelo (2015), que também traz vocais da cantora Céu; e no caso de Clayton, com a banda os Sertões, Rafa Duarte, ex-baixista do Rivotrill, e Deco Trombone, da Ska Maria Pastora. E agora Fernando Catatau.
Para além de todas as novidades que Viagem ao coração do sol nos oferece, tanto musical quanto conceitualmente – recuperar a atmosfera de esperança de tempos remotos –, eis a oportunidade de (re)viver experiências coletivas, reais e cantar junto como só os bons shows são capazes de oferecer.