Michel Foucault, ao cunhar o conceito de biopoder, dividiu-o em duas formas, a saber: uma anátomo-política do corpo e uma biopolítica da população. Em seu livro Necropolítica, Achille Mbembe relaciona este biopoder foucaultiano a outros dois conceitos: estado de exceção e estado de sítio. Ele aponta:
Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica. Em muitos aspectos, a própria estrutura do sistema de plantation e suas consequências manifesta a figura emblemática e paradoxal do estado de exceção. Aqui, a figura é paradoxal por duas razões. Em primeiro lugar, no contexto da plantation, a humanidade do escravo aparece como uma sombra personificada. De fato, a condição de escravo resulta de uma tripla perda: perda de um “lar”, perda de direitos sobre seu corpo e perda de estatuto político. Essa tripla perda equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte social (que é expulsão fora da humanidade). (...)
Um traço persiste evidente: no pensamento filosófico moderno assim como na prática e no imaginário político europeu, a colônia representa o lugar em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei (...).
A lavoura da cana-de-açúcar, conforme apresentada em Modo de produção, é o retrato fiel do biopoder a que são submetidas as populações negras, descendentes de escravos, que há gerações repetem esse ciclo de perdas, atualmente representadas também pela precarização dos direitos trabalhistas; ciclo que, após a reforma trabalhista, aparece de modo nítido e temerário na fragmentação das entidades sindicais.
Não é somente vaticinante, mas é igualmente emblemático que o filme, como se destacou, tome lugar no interior de um sindicato, e que seja o dos trabalhadores rurais. O papel dos sindicatos, tradicionalmente, nas conquistas de direitos dos trabalhadores, merece uma curta retrospectiva. Entre os direitos conquistados por meio da mobilização coletiva está a criação das Normas Regulamentadoras, ou NRs, cuja função é promover a saúde e a segurança dos laboristas em seus postos de trabalho. O Brasil era o campeão mundial em acidentes de trabalho, na década de 1970, quando as normas entraram em vigor. Atualmente, ocupa o 4º lugar mundial, com uma ocorrência a cada 48 segundos. À época, várias greves organizadas pelos Sindicatos levaram à promulgação de tais medidas.
Em compasso de espera dentro do sindicato. Foto: Beto Figueiroa/Divulgação
Do mesmo modo são fruto da união de categorias o 13º salário (que já estava na pauta da “greve dos 300 mil”, ocorrida em 1953); as férias remuneradas (pleiteada por lutas sindicais que remontam a 1917, ano em que eclodiu uma paralisação como protesto pelo assassinato de um trabalhador pela polícia); o salário mínimo (que, não obstante perseguido no movimento grevista de 1917, somente se efetivou em 1936), entre outros.
O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipojuca não oferece apenas assessoria jurídica. Vai-se até lá à procura de remédios, carona e, surpreendentemente, afeto. A obra cinematográfica mostra a reunião de Lindalva com outras mulheres obreiras. Não se sabe qual é a função de Lindalva no Sindicato, mas o seu papel logo fica claro: ela desconstroi mitos e educa as colegas. Ao longo de diversos encontros, discorre sobre o papel do homem enquanto pai e companheiro, masculinidade frágil, feminismo, racismo, boa alimentação, stress e, até mesmo, a necessidade de chegar em casa, ao fim do dia, e se render ao chamego do outro, deixando de lado o cansaço, porque faz bem.
A necessidade de revisão da postura e das funções dos Sindicatos não justifica as medidas de mitigação do seu papel, que, como visto, decorrem diretamente das atuais políticas de fragilização de direitos e garantias juslaborais. A utilização de artifícios legais visando ao abatimento de organizações de trabalhadores em torno de objetivos comuns representa a tática de “dividir para conquistar” (estratégia por meio da qual as maiores concentrações de poder são diluídas, evitando que os grupos menores se aglomerem), em que a corda, é claro, arrebenta do lado mais fraco. O silêncio da grande imprensa em relação à greve dos petroleiros, somada à decisão do Tribunal Superior do Trabalho, que declarou a greve ilegal, não podem ser analisados separadamente, já que são parte do mesmo fenômeno.
Por fim, a torcida contrária ao documentário da brasileira Petra Costa, Democracia em vertigem, na premiação do Oscar, realizada no último dia 09 de fevereiro, termina por se transmudar em uma comemoração do prêmio concedido à película Indústria americana. Modo de produção, à sua maneira, alinha-se à mensagem trazida no filme contemplado, cuja diretora, em seu discurso de agradecimento, evoca o Manifesto Comunista ao atribuir a melhora das condições de trabalho atuais à união dos trabalhadores do mundo. Plot twist.
BIANCA DIAS é advogada e leitora e cinéfila diletante.