Resenha

Colonialismo e precarização do trabalho

O que é dito sem ser falado na narrativa de 'Modo de produção', documentário da realizadora pernambucana Dea Ferraz atualmente em cartaz no Cinema São Luiz

TEXTO Bianca Dias

27 de Fevereiro de 2020

Cotidiano de trabalhadores rurais de Ipojuca é radiografado no longa

Cotidiano de trabalhadores rurais de Ipojuca é radiografado no longa

FOTO Beto Figueiroa/Divulgação

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Uma das informações mais importantes de Modo de produção, filme da cineasta pernambucana Dea Ferraz em cartaz no Cinema São Luiz, poderia estar na abertura do filme, e não em seu fim. Após a projeção da película, antes do aparecimento dos créditos, é prestado o seguinte esclarecimento:

O material bruto desse filme foi capturado em 2013.
Em 2016 a presidenta Dilma Rousseff sofre um golpe de estado. Assume Michel Temer. Em seu governo, Câmara e Senado aprovam a Reforma Trabalhista, acabando com direitos adquiridos, deixando o trabalhador e a trabalhadora ainda mais vulneráveis.
A partir de 2019, a classe trabalhadora passa a enfrentar os ataques do governo Bolsonaro, empenhado em acabar com sindicatos, CLT, justiça do trabalho e movimentos sociais.

A reforma trabalhista é apresentada como um divisor de águas entre a filmagem da obra e a sua exibição, e parece se revestir de um aspecto ainda mais vaticinante pelo fato de que toda a obra cinematográfica é passada no interior do Sindicato dos Empregados Rurais de Ipojuca. As entidades sindicais, a partir de novembro de 2017, quando as alterações na Consolidação das Leis do Trabalho entraram em vigor, foram atingidas por modificações significativas em suas funções e autogestão, em decorrência de mudanças sofridas pela legislação trabalhista recente, com destaque para políticas de financiamento que causam o desequilíbrio das organizações sindicais, com enfraquecimento da capacidade de mobilização e defesa de interesses coletivos.

Em setembro de 2019, o Tribunal Regional do Trabalho de Pernambuco organizou o VI Congresso Pernambucano do Trabalho Seguro. Um dos conferencistas, o magistrado Leandro Fernandez Teixeira, expôs o tema "Trabalho decente na Agenda 2030 da ONU: o mundo do trabalho e o dilema da modernização precarizante". Em sua apresentação, o juiz do trabalho transformou em números o que o senso comum e o sentimento geral já pareciam saber: retirar direitos trabalhistas não melhora a economia.

Segundo a pesquisa conduzida por Fernandez, no mês de julho de 2017, o então Ministro do Trabalho (pasta, aliás, encerrada no governo de Jair Bolsonaro) assegurou que seriam criados dois milhões de empregos com o advento da reforma trabalhista, por meio, principalmente, de três modelos de contratação: jornada parcial, contrato intermitente e por produtividade. Entretanto, entre os anos de 2013 e 2015, entidades como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que entabularam pesquisas independentes, comprovaram que as reformas trabalhistas que retiram direitos, contrariamente ao que se defende em determinados setores da sociedade, historicamente não geram empregos. Políticas econômicas eficazes é que contribuem para isso.


Detalhe de uma carteira de trabalho Foto: Beto Figueiroa/Divulgação

A propósito, entre outubro de 2017 e setembro de 2019, a empregabilidade formal no país ficou na monta de cerca de 961 mil postos de trabalho. Muito abaixo dos dois milhões prometidos. Há pouco falado, mas muito dito na narrativa de Modo de produção. São aspectos que, lidos dentro de um contexto histórico, explicam a relação entre a cana-de-açúcar e a reforma trabalhista.

Seu Amaro, atendido pelo departamento jurídico do Sindicato, enuncia uma jornada de trabalho que se inicia às 7h da manhã e vai até às 21h, com duas horas de intervalo, na Usina Ipojuca. O pagamento mensal obtido por Seu Amaro, cujo recebimento é dividido em duas quinzenas, chega a um e meio salário mínimo (bruto) da época. Entre as queixas dele estão o fato de raramente folgar ("depende da moagem") e de não ter podido ter acesso ao benefício do PIS, Programa de Integração Social, devido a informações que entende erradas, prestadas pelo empregador.

Dona Doralice, que está há quatro anos sem tirar férias ou receber o valor correspondente à ausência do descanso, não sabe assinar o próprio nome. Outros empregados tentam se aposentar, ainda que não integralmente, por não aguentarem mais as condições de trabalho, receber adicional de insalubridade, as verbas rescisórias, e, em um dos casos, ser bem tratado.

A lavoura da cana-de-açúcar foi protagonista do segundo ciclo econômico de grande importância do país, sendo, igualmente, responsável pelo povoamento da então colônia e ocupação do litoral, de onde era exportado o açúcar que seguia para as metrópoles conquistadoras de além-mar. Tendo ditado os rumos da economia do Brasil e de Portugal, nos séculos XVI a XVIII, não por acaso tal período coincidiu o tráfico de escravos vindos de África, cuja medição entre 1519 e 1867 foi compilada na tabela abaixo reproduzida:Fonte: David Eltis, “The Volume and Structure of the Transatlantic Slave Trade: A Reassessment”, in: William and Mary Quarterly (2001)

Seu Amaro, Dona Doralice e vários outros personagens de Modo de produção, seria despiciendo ressaltar, são negros, de renda e nível de escolaridade baixos.

Michel Foucault, ao cunhar o conceito de biopoder, dividiu-o em duas formas, a saber: uma anátomo-política do corpo e uma biopolítica da população. Em seu livro Necropolítica, Achille Mbembe relaciona este biopoder foucaultiano a outros dois conceitos: estado de exceção e estado de sítio. Ele aponta:

Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica. Em muitos aspectos, a própria estrutura do sistema de plantation e suas consequências manifesta a figura emblemática e paradoxal do estado de exceção. Aqui, a figura é paradoxal por duas razões. Em primeiro lugar, no contexto da plantation, a humanidade do escravo aparece como uma sombra personificada. De fato, a condição de escravo resulta de uma tripla perda: perda de um “lar”, perda de direitos sobre seu corpo e perda de estatuto político. Essa tripla perda equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte social (que é expulsão fora da humanidade). (...)

Um traço persiste evidente: no pensamento filosófico moderno assim como na prática e no imaginário político europeu, a colônia representa o lugar em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei (...).

A lavoura da cana-de-açúcar, conforme apresentada em Modo de produção, é o retrato fiel do biopoder a que são submetidas as populações negras, descendentes de escravos, que há gerações repetem esse ciclo de perdas, atualmente representadas também pela precarização dos direitos trabalhistas; ciclo que, após a reforma trabalhista, aparece de modo nítido e temerário na fragmentação das entidades sindicais.

Não é somente vaticinante, mas é igualmente emblemático que o filme, como se destacou, tome lugar no interior de um sindicato, e que seja o dos trabalhadores rurais. O papel dos sindicatos, tradicionalmente, nas conquistas de direitos dos trabalhadores, merece uma curta retrospectiva. Entre os direitos conquistados por meio da mobilização coletiva está a criação das Normas Regulamentadoras, ou NRs, cuja função é promover a saúde e a segurança dos laboristas em seus postos de trabalho. O Brasil era o campeão mundial em acidentes de trabalho, na década de 1970, quando as normas entraram em vigor. Atualmente, ocupa o 4º lugar mundial, com uma ocorrência a cada 48 segundos. À época, várias greves organizadas pelos Sindicatos levaram à promulgação de tais medidas.


Em compasso de espera dentro do sindicato. Foto: Beto Figueiroa/Divulgação

Do mesmo modo são fruto da união de categorias o 13º salário (que já estava na pauta da “greve dos 300 mil”, ocorrida em 1953); as férias remuneradas (pleiteada por lutas sindicais que remontam a 1917, ano em que eclodiu uma paralisação como protesto pelo assassinato de um trabalhador pela polícia); o salário mínimo (que, não obstante perseguido no movimento grevista de 1917, somente se efetivou em 1936), entre outros.

O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipojuca não oferece apenas assessoria jurídica. Vai-se até lá à procura de remédios, carona e, surpreendentemente, afeto. A obra cinematográfica mostra a reunião de Lindalva com outras mulheres obreiras. Não se sabe qual é a função de Lindalva no Sindicato, mas o seu papel logo fica claro: ela desconstroi mitos e educa as colegas. Ao longo de diversos encontros, discorre sobre o papel do homem enquanto pai e companheiro, masculinidade frágil, feminismo, racismo, boa alimentação, stress e, até mesmo, a necessidade de chegar em casa, ao fim do dia, e se render ao chamego do outro, deixando de lado o cansaço, porque faz bem.

A necessidade de revisão da postura e das funções dos Sindicatos não justifica as medidas de mitigação do seu papel, que, como visto, decorrem diretamente das atuais políticas de fragilização de direitos e garantias juslaborais. A utilização de artifícios legais visando ao abatimento de organizações de trabalhadores em torno de objetivos comuns representa a tática de “dividir para conquistar” (estratégia por meio da qual as maiores concentrações de poder são diluídas, evitando que os grupos menores se aglomerem), em que a corda, é claro, arrebenta do lado mais fraco. O silêncio da grande imprensa em relação à greve dos petroleiros, somada à decisão do Tribunal Superior do Trabalho, que declarou a greve ilegal, não podem ser analisados separadamente, já que são parte do mesmo fenômeno.

Por fim, a torcida contrária ao documentário da brasileira Petra Costa, Democracia em vertigem, na premiação do Oscar, realizada no último dia 09 de fevereiro, termina por se transmudar em uma comemoração do prêmio concedido à película Indústria americana. Modo de produção, à sua maneira, alinha-se à mensagem trazida no filme contemplado, cuja diretora, em seu discurso de agradecimento, evoca o Manifesto Comunista ao atribuir a melhora das condições de trabalho atuais à união dos trabalhadores do mundo. Plot twist.

BIANCA DIAS é advogada e leitora e cinéfila diletante.

 

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