Resenha

Barbie: dentro e fora da caixa

Com direção de Greta Gerwig, o longa-metragem homenageia a história da boneca ao mesmo tempo em que a subverte

TEXTO Laura Machado

31 de Julho de 2023

No longa-metragem da diretora Greta Gerwig, a famosa boneca Barbie é interpretada pela atriz Margot Robbie

No longa-metragem da diretora Greta Gerwig, a famosa boneca Barbie é interpretada pela atriz Margot Robbie

Foto Divulgação/Warner Bros.

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No ano de 1959 o mundo dos brinquedos mudou para sempre com o lançamento de uma boneca diferente das outras. Ela não replicava o corpo e os trejeitos de um bebê de colo – típico objeto de diversão de meninas que em suas brincadeiras interpretavam mães carinhosas tomando conta da casa e dos filhos ainda totalmente dependentes –, muito pelo contrário: o novo lançamento da marca Mattel representava uma modelo adolescente com o corpo esbelto vestido em um clássico maiô branco e preto, cabelos loiros bem penteados em um rabo de cavalo e batom vermelho nos lábios. A boneca Barbie, batizada em homenagem à filha de sua criadora Ruth Handler, inaugurou uma nova era na brincadeira de meninas por todo o mundo.

Com roupas e acessórios diversos disponíveis para trocar e vestir sua boneca do jeito que preferir, a Barbie foi um sucesso absoluto de vendas e com o passar do tempo as possibilidades apenas se tornaram mais extensas. Ela já não era mais uma simples modelo, a boneca passou a ser astronauta, presidente, cantora pop, atriz, médica, escritora, veterinária…

Acumulando profissões e amigos com o passar dos anos, muita coisa mudou, mas a Barbie e o que ela representava permanecia intacta no imaginário de meninas. De acordo com a própria Ruth, sua intenção em criar uma boneca como aquela era sua forma de afirmar para as meninas que elas poderiam ser quem desejassem. E justamente sendo quem a Barbie desejava ser, a boneca fez meninas largarem as típicas brincadeiras com bebês de colo e tarefas de casa para se imaginarem no futuro, mais independentes, satisfeitas profissionalmente e, acima de tudo, segurando um vasto leque de possibilidades.

Contudo, com características jovens sempre em compasso com os padrões estéticos de seu tempo, repleta de amigos, com namorado, morando em uma belíssima dreamhouse cor-de-rosa e sendo quem ela quiser ser, Barbie não foi uma boneca revolucionária apenas para o bem. Loira, magra, branca. A boneca sempre representou um estereótipo gigantesco e muitas meninas sofreram com o desejo de ser, assim como ela, parte de um padrão.

Diante disso tudo, quando o filme Barbie, dirigido por Greta Gerwig (Frances Ha, Lady Bird e Adoráveis mulheres) estreou nos cinemas em julho de 2023, eu genuinamente senti medo de que a obra ignorasse as problemáticas que surgem com a boneca e focasse sua narrativa apenas nos pontos positivos. Depois de assistir, ficou claro que eu deveria ter tido mais confiança na Greta.


Ryan Gosling e Margot Robbie em cena no filme. Foto: Warner Bros./Divulgação


Na Barbieland, as Barbies são perfeitas. Foto: Warner Bros./Divulgação

Com Margot Robbie (Era uma Vez em...Hollywood e Esquadrão Suicida) interpretando a boneca Barbie, Ryan Gosling (Diário de uma paixão, La la land), o seu namorado Ken, e mais um elenco repleto de bons atores como Will Ferrell, Kate McKinnon, America Ferreira e Michael Cera, o longa-metragem acerta na abordagem e cria uma obra de comédia emancipatória voltada para mulheres (o que não quer dizer de maneira alguma que homens não devam assistir e adorar o filme também).

A premissa por trás da obra é simples: a Barbie Land é o lugar perfeito para as bonecas. Por lá, uma das Barbies é presidente, outra é vencedora do prêmio Nobel de física, outra faz parte da suprema corte, uma delas é médica e assim por diante. Vivendo em harmonia no mundo perfeito, as bonecas se orgulham do poder feminino e, acima de tudo, de serem o exemplo absoluto para as mulheres no mundo real. A Barbie protagonista não carrega nenhum grande título, sendo a Barbie estereotipada, porém isso não é importante naquele lugar fantástico, todas são iguais e possuem seu valor dentro da sociedade (Os Kens, por sua vez, vivem de forma mais simplista, felizes por estarem no background das vidas das Barbies, assim como o boneco Allan). Tudo muda na Land, quando a Barbie interpretada por Margot Robbie começa a ter pensamentos que desafiam a regra de felicidade total e assim, buscando respostas para a súbita mudança, ela precisa viajar ao mundo real.

O filme desenvolve sua narrativa em uma dualidade justa entre satíra e homenagem ao legado da boneca mais famosa do mundo. Desde o momento em que a Barbie sai de seu mundo protegido e encara a realidade patriarcal da realidade, diversas questões pertinentes são levantadas e a obra, até então completamente fictícia, ganha seu toque de realidade. No mundo aqui fora, as mulheres não são maioria em cargos de poder, sofrem com assédios na rua e com os padrões de beleza inalcançáveis instaurados pela mídia (e por bonecas como a Barbie, diga-se de passagem). Assim, enquanto a personagem feminina se vê cada vez mais diminuta nessa realidade, o Ken se anima como nunca ao se deparar com um universo onde ele, apenas por ser homem, é o centro de tudo.

Brincando e subvertendo os papéis de gênero como uma forma de criticar o sexismo, Greta Gerwig cria uma obra sólida de crescimento e descoberta pessoal com uma produção impecável que vai desde os figurinos inspirados em roupas utilizadas pelos bonecos da Mattel através dos anos, até cenários deslumbrantes que parecem sair de caixas de brinquedos.

Apesar de Barbie não ser uma obra que traz aprofundada substância nos temas que toca, o longa-metragem representa muito para meninas e mulheres. É bonito ver um blockbuster capaz de levar tantas mulheres ao cinema, todas dedicadas em usar tons de rosa e aproveitar a experiência de ver um dos símbolos de suas infâncias em tela grande. Em uma das cenas da Barbie no mundo real, depois de frustrada em perceber o papel secundário que o feminino ocupa por ali, ela encara uma senhora sentada no ponto de ônibus e exclama “você é linda”. Essa afirmação parece sair da narrativa e se dirigir também às meninas que assistem ao filme, envoltas em um mundo onde o fato de irem ao cinema vestidas de forma similar é motivo de piada por parte de um grupo da sociedade que faz a mesma coisa em lançamentos de filmes de super-heróis. Mas eles são homens e, por isso, aparentemente, é diferente.

Outro ponto importante de destaque é a atenção que se dá aos personagens engravatados da Mattel. Deslocadas do restante da obra, todas as cenas que representam os funcionários da marca criadora da boneca são sátiras claras à empresa. Mas lembrando que: o filme foi aprovado pela própria e é uma fonte de renda inestimável - na primeira semana, alcançou quase meio bilhão de dólares nas bilheterias. Essas cenas perdem seu teor de diversão para se tornarem vazias e soarem como uma brincadeira com o próprio espectador, que ri da empresa após ter pago o ingresso do filme que dará retorno financeiro a essa mesma empresa.

Para sua coluna “Divirta-se com o filme da Barbie, mas não se engane: ele não tem nada de empoderador” no Intercept Brasil, a jornalista Fabiana Moraes escreve que a palavra diversidade “há muito serve não para mudar as coisas, mas para deixá-las como estão” e é uma necessidade olhar para o filme da Barbie com esse olhar crítico.

Cena do filme. Foto: Warner Bros./Divulgação

Apesar dessa questão, a obra é divertida e bonita, composta de um primoroso elenco. Com o passar da narrativa, alguns dos personagens não são tão bem aproveitados quanto poderiam ser, o que é uma pena, mas também algo de certa forma justificável devido ao desejo da diretora em focar na boneca e, a partir da segunda metade do filme, no próprio Ken e nas personagens humanas que auxiliam Barbie no novo mundo, sendo elas, Gloria (America Ferrera), uma das únicas funcionárias mulheres na corporação Mattel e sua filha, Sasha (Ariana Greenblatt).

Inclusive, a relação materna entre as duas personagens é um dos bonitos pontos desenvolvidos no filme. Sasha é uma adolescente que se afasta da mãe cada vez mais, achando-a vergonhosa e tediosa, enquanto Gloria sente a falta de sua menininha, de um tempo que não volta mais, onde brincavam de Barbie juntas. Quando ambas acabam envolvidas com a boneca, a relação cresce e uma entende mais sobre os ideais da outra. Em comum, elas têm o desconforto com a sociedade machista, o que resulta, já no final do filme, em uma das cenas mais comentadas, onde Gloria discursa para as Barbies sobre o quão complexo é ser uma mulher no mundo real.

Barbie, mesmo sendo um filme sobre bonecas, soa como uma ode à mulher real, às dores e dificuldades, mas também à beleza de resistir e de, apesar da extrema dificuldade, ser quem você quiser ser.

LAURA MACHADO, jornalista em formação pela Universidade Católica de Pernambuco e estagiária da Continente.

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