Se em seu trabalho anterior, Blvesman, o artista cantava que “Tudo que quando era preto era do demônio e depois virou branco e foi aceito eu vou chamar de blues/ É isso, entenda, Jesus é blues”, a retomada agora é de uma construção social da qual muito se fala e pouco se reflete. E que, para utilizar as palavras do próprio artista em entrevista ao podcast Podpah, foi embranquecida, assim como aconteceu como a imagem de Jesus numa sociedade eurocristã monoteísta.
Sim, o mais novo disco de Baco Exu do Blues é sobre amor. Mas por que ele teria escolhido dar essa centralidade ao tema? E que amor é esse cantado por Baco? A resposta talvez comece a se revelar desde o início da audição, já na primeira faixa, Sinto tanta raiva... “Eu sinto tanta raiva que amar parece errado”, anuncia ele para, logo em seguida, nos jogar no meio do frenesi de um jazz bebop que poderia muito bem representar o turbilhão no qual se transformou sua vida desde que conquistou seu lugar de destaque na música brasileira, com o álbum Esú (2017), puxado pelo hit Te amo, disgraça.
“O amor é uma parada muito mais complicada do que parece. Quando a gente fala de amor, eu vejo uma perspectiva de que pessoas negras são empurradas o tempo todo para uma visão do amor branco. O amor europeu, o amor católico-cristão, que não foi feito pra gente, que joga a gente de lado o tempo todo. Por mais que eu tenha sido amado várias vezes, eu não soube receber esse amor, porque não me ensinaram a receber esse amor”, comentou Baco na entrevista ao Podpah, também neste mês.
Em Dois amores, faixa que dá continuidade ao disco, é possível ouvir, num determinado momento, a voz de JF, da Banda O Metrô, conversando com Baco. “Tamo veloz, lembre de onde você veio/ A Bahia é tipo oceano, guetos infinitos/ Qualquer coisa, sabe o caminho de casa.” Durante a pandemia, o artista teve que voltar para si mesmo, se resguardar e cuidar melhor da saúde de seu corpo, de sua mente e de seu espírito. Dentre várias dessas mudanças, Baco, que havia se mudado para São Paulo para poder gerir melhor a sua própria carreira e a carreira dos artistas do seu selo – o 999 –, voltou a morar em Salvador. Nesse processo, pôde reencontrar com seu passado. O resultado disso é uma obra na qual a persona Baco Exu do Blues se aproxima, mais do que nunca, de Diogo Moncorvo e de todas as vivências que construíram e ainda constroem a sua subjetividade enquanto homem negro.
O acalento da Bahia se faz presente no refrão – que traz um canto que integra a espiritualidade afro-brasileira –, na torcida organizada do seu time de coração, mas também na endorfina com perigo dos inúmeros amores que volta a experimentar em sua terra. Enquanto canta vantagem por ter amado tanto – “Problema com álcool/ já que em toda conquista eu brindo” –“dói, dói, dói, dói, dói” se transforma em “no, no, no, no”, na voz de um artista que parece estar cansado de ser alvo de tantas expectativas em torno de quem ele deveria ser e da maneira como ele deveria amar. Voltar a Salvador é também reencontrar a dor. Do amor que “faz sofrer”, do amor que “faz chorar”. Mas o conselho de seus amigos é que ele respire e não esqueça: “A cidade é nossa”.
Apaixonado pela Cigana, Baco entrega o melhor refrão do disco, uma melodia muito bonita, construída e cantada com cuidado e sensibilidade, que permanece na cabeça do ouvinte por dias após a audição e é mais um exemplo da excelência também instrumental que se revela nos arranjos musicais que ele escolhe, desde sempre, para criar sua marca sonora. “De noite vem/ De manhã vai/ E todos querem saber quem é.” Quem é ela, quem é ela? Sabemos apenas que sua saia é linda, que ela tem sempre razão, que Baco deu a ela seu coração e o futuro na sua mão. Mas a ressaca vem e Baco agora já não sabe se quer atender às 20 ligações que ela fez para o seu celular. “Você não me quer/ Quer me mudar/ Não sou o melhor/ Mas amo meu jeito de ser.”
E se em Mulheres grandes a raiva do artista parece ser direcionada para a mulher – o que, numa percepção inicial, poderia ser lida como machista –, Baco nos dá a deixa para entendermos o ponto principal de toda a sua criação em torno do amor. Nesse momento, desfaz a dificuldade masculina de falar dos próprios sentimentos de uma vez só, como num sincericídio: “Não, não, não, não/ Não acredito em você/ Não é pessoal/ Não acredito em mim/ Como acreditar em alguém?”. Perguntar quantas vezes você já foi amado é falar também sobre a própria capacidade de amar.
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Em Tudo sobre o amor: novas perspectivas, primeiro livro da sua trilogia do amor, a professora e teórica feminista bell hooks discute a contradição de vivermos numa sociedade que fala o tempo todo de amor através das mais diversas manifestações da cultura de massas sem, no entanto, refletir sobre o que seria esse amor – ou sem mesmo refletir sobre como as pessoas são ensinadas a amar e serem amadas. Em sua experiência pesquisando e discutindo o tema, ela chega à conclusão de que não só a maioria das obras canônicas sobre o amor são escritas através da perspectiva de homens brancos, mas também que há um grande desconforto na hora de trazer esse tema à tona. Essa dificuldade consistiria no fato de que, apesar de sermos bombardeados o tempo todo com discursos sobre o amor, uma discussão mais profunda sobre ele acabaria por trazer à tona o fato de que o que temos a dizer sobre o amor chama atenção mais para a falta desse amor do que para a sua presença. Que mesmo que o amor seja tratado como algo dado, muitos de nós não temos exatamente certeza do que estamos falando quando pensamos sobre o amor. E que, muitas vezes, a maneira como somos ensinados a amar está permeada por uma série de violências.
No mundo em que vivemos, tal qual ele está construído, como seria possível, então, amar? bell hooks nos provoca: “Quando entendemos o amor como a vontade de nutrir o nosso crescimento espiritual e o de outra pessoa, fica claro que não podemos dizer que amamos se somos nocivos ou abusivos”. Mas, mesmo que essa afirmação possa servir como metáfora da maneira como deveríamos amar, também é, de acordo com a pensadora, impossível conceber amor sem justiça. E essa justiça não pode partir de outro lugar senão do reconhecimento de que, a depender da vivência de cada pessoa, as dificuldades de amar surgem relacionadas também às caixinhas nas quais todos somos colocados, de acordo com os padrões de beleza, classe, raça, gênero e nação.
Diogo Moncorvo é um homem negro que, aos sete anos de idade, nessa mesma Salvador, sentiu, pela primeira vez, olhares estranhos direcionados ao seu corpo, por ele ser quem ele era. Nutrir seu próprio crescimento espiritual, se permitir sentir as dores e as feridas que se inscrevem em sua subjetividade é a única maneira possível de se permitir amar e de aprender a reconhecer o amor das pessoas.
E o grande amor que Baco encontra na produção de seu disco não é direcionado a mais ninguém que a si mesmo. “Foram 25 anos pra eu me achar lindo/ Sempre tive o mesmo rosto/ A moda que mudou de gosto/ E agora querem que eu entenda/ Seu afeto repentino.” Talvez a coisa mais bonita de QVVJFA? consista no fato de que, ao mergulhar em busca de sua Autoestima, o artista acaba por convergir com a mesma definição de amor enunciada por bell hooks. Porque, independente das experiências individuais de cada um, é impossível parar em meio ao Brasil de 2022 para ouvir um disco que fala do amor, de maneira tão profunda, sem se deixar afetar por algumas das mesmas reflexões.
Se em tempos de crise, devemos seguir com os artistas, poder viver na mesma época em que Baco Exu do Blues trabalha para nutrir seu próprio amadurecimento e, nesse processo, faz com que todo o seu público se afete junto a ele e procure refletir também sobre o amor e a dor, é, sem dúvida, um privilégio. No final, a pergunta que permanece é: quantas vezes já te amaram, baby?
ANTONIO LIRA é jornalista, músico, pesquisador e mestre em Comunicação pela UFPE.