Resenha

África Brasil

Livro da jornalista Kamille Viola remonta trajetória de Jorge Ben até gravar o icônico disco homônimo, em 1976

TEXTO Débora Nascimento

22 de Março de 2021

A autora conseguiu ter acesso a Jorge Ben, feito alcançado por poucos jornalistas

A autora conseguiu ter acesso a Jorge Ben, feito alcançado por poucos jornalistas

FOTO Daniela Dacorso/ DIvulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Há alguns nomes comumente mencionados como revolucionários na música popular brasileira. Pixinguinha, Noel Rosa, Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, João Gilberto são alguns deles. No entanto, um nome menos lembrado à altura de seus feitos é o de Jorge Ben. Uma rápida busca cronológica na linha evolutiva da música brasileira mostrará que o artista influenciou os três grandes últimos movimentos musicais no Brasil: o Tropicalismo, o Rap Nacional e o Manguebeat. Isso é apenas para citar parte de sua importância na nossa cultura.  

Mas a responsabilidade sobre esse acanhamento nas exaltações ao cantor também pode recair no próprio Jorge. Se não é um ermitão, como João Gilberto foi, ele também não contribui para que contemos sua história. Até mesmo sua data de nascimento permanece um mistério. Sabe-se que ele faz aniversário no dia 22 de março. Mas o ano é uma incógnita. Atualmente diz ter nascido em 1945. Já em 1963, quando estreou em disco, com o impactante Samba esquema novo, afirmava ter 21 anos, ou seja, teria nascido em 1942. Entretanto, recentemente a jornalista carioca Kamille Viola, ao pesquisar a vida do cantor, encontrou uma certidão de nascimento de um tal de Jorge Lima de Menezes, nascido em 22 de março de 1939. Apesar de os nomes dos pais diferirem um pouco dos informados pelo próprio artista em entrevistas, provavelmente essa é a data certa. E o nosso Jorge Ben Jor deve completar neste mês incríveis 82 anos! 

Contribuindo com sua aura enigmática, raramente dá entrevistas, nas quais não gosta de tratar de assuntos pessoais ou que envolvam opiniões polêmicas, principalmente sobre outros artistas. Kamille foi uma das poucas jornalistas que teve acesso ao cantor. “Eu o conheci pessoalmente num desfile de moda e passei a esbarrar com ele pela cidade, inclusive ia atrás dele num sarau que ele frequentava. Isso culminou com uma entrevista que fiz, em 2011, com ele no Copa", conta a jornalista, referindo-se ao Copacabana Palace – onde Jorge reside atualmente, mantendo, inclusive, a mesma mística de João Gilberto, que morou no famoso hotel. A repórter pretendia escrever a biografia do cantor e compositor carioca. Mas, fracassada a tentativa, por falta de uma aprovação dele por escrito (exigência da editora), desistiu da empreitada. No lugar, surgiu a oportunidade de escrever um livro sobre África Brasil (1976), um dos discos essenciais de Jorge Ben.

No livro África Brasil – Um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver, a repórter narra a trajetória profissional do músico até chegar à gravação daquele que é considerado o seu último grande álbum de estúdio. Para tentar explicar a sonoridade do músico, a publicação, que integra a série Coleção Discos da Música Brasileira (História e bastidores de álbuns antológicos), do Sesc, resgata a infância e adolescência de Jorge Ben. 

capa do livro áfrica brasil
Livro da jornalista carioca Kamille Viola foi lançado recentemente pelo selo Sesc Edições. Imagem: Divulgação.

O artista cresceu em Rio Comprido, bairro da Zona Central do Rio de Janeiro, em um ambiente familiar totalmente musical. Sua mãe, que era dona de casa, tocava violão. O pai, estivador e vendedor de peixes, cantava, compunha e tocava pandeiro no bloco Cometas do Bispo. Nessa época, eles frequentavam o Salgueiro – onde Jorge viu pela primeira vez uma escola de samba, fascinando-o o fato de ver várias pessoas tocando juntas e soando harmônico. 

Na adolescência, Jorge estudou, por dois anos, em seminário, onde aprendeu a tocar piano, órgão e recebeu aulas de canto. Em casa, os pais costumavam ouvir Nelson Gonçalves, Angela Maria, Ataulfo Alves, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, jazz e rock. Foi o irmão de Jorge quem o presenteou com o compacto que daria seu famoso apelido. O single era Bop-a-Lena, de Ronnie Self. Jorge vivia cantando o refrão e ganhou, na Turma do Matoso, o apelido de Babulina. Essa turma reunia os rapazes cariocas que gostavam de ouvir rock, como Erasmo Carlos, Roberto Carlos, Tim Maia e os irmãos Paulo César e Renato Barros (que formariam o Renato e Seus Blue Caps).

Jorge também era fã de João Gilberto. E a capa do seu primeiro disco, sentado em um banquinho imaginário e tocando um violão, pode ter dado a entender que se tratava de mais um seguidor do baiano de Juazeiro tentando tocar bossa nova. No entanto, Samba esquema novo, em 1963, assim como Chega de saudade, de João Gilberto, em 1959, foi um disco que apresentou um músico com estilo próprio. O novato Jorge Ben surpreendentemente, em meio à bossamania, trazia uma batida particular em seu violão, algo que ele aprimoraria de tal forma ao ponto de se tornar inimitável. 

O guitarrista Lúcio Maia teve a chance de ver pessoalmente a mágica da munheca de Jorge Ben, numa passagem de som, um dia antes de o artista e a banda pernambucana se apresentarem juntos no Prêmio Multishow, em 5 de julho de 2005: “Ele pegou a guitarra e começou a fazer a levada dele. E eu fiquei prestando atenção e tentando fazer igual. E vou te falar que é um trabalho de vida, tem que levar uma vida toda para fazer aquilo. Muita gente pode achar que tipo: 'Ah, isso aí não é nada', e, velho, aquilo ali é tudo, entendeu? Aquilo ali é a história da música, essa mão direita dele é a história da música”, disse Maia à jornalista Kamille Viola.

A força criadora beniana era tamanha que passou não somente a inspirar e influenciar, mas também a intimidar outros artistas. Gilberto Gil chegou a confessar para Caetano que pensava em parar de compor e passar a apenas tocar as músicas de Jorge Ben. Gil, inclusive, praticamente fez um plágio de Jorge, na música João Sabino (registrada no Ao Vivo, de 1974), que é um decalque da levada de violão da versão de Mas que nada, apresentada por Jorge Ben no programa MPB Especial, de 1972.

Caetano considerou uma loucura a ideia de Gil de desistir da carreira de compositor e o dissuadiu do pensamento. Mas depois entendeu o conterrâneo quando Jorge Ben lançou, em 1967, Bidú: silêncio no Brooklin, pelo selo Artistas Unidos, da Rozenblit. O disco antecipou e pôs em prática o que era apenas uma teoria na cabeça dos baianos, o Tropicalismo. O movimento seria inaugurado no ano seguinte. E o fato de Jorge Ben ser convidado para participar, ao mesmo tempo, de O Fino da Bossa, da Jovem Guarda e do Divino Maravilhoso, os três programas musicais mais importantes da TV na época, demonstra como ele era admirado e transitava pelos campos mais díspares da música brasileira de então.

Quando surgiu no mercado fonográfico, Jorge Ben cantou, na primeira faixa de seu disco, Mas que nada: “Esse samba, que é misto de maracatu / É samba de preto velho / Samba de preto tu". No entanto, a alquimia do estilo de Jorge Ben arregimenta vários componentes. Um trecho de Mas que nada, até hoje seu primeiro e maior sucesso mundial, traz no “ôôôôô, ah, iá, ah, aiô". Essa é a mesma melodia de um canto de terreiro de candomblé. Esse canto aparece em dois registros, em um disco que acompanha o livro Casa de Oxumaré: os cânticos que encantaram Pierre Verger, em gravação feita pelo fotógrafo e pesquisador francês, e na faixa Nanã Imborô, no disco Tam... tam... tam...!, lançado pelo maestro pernambucano José Prates em 1958. O pesquisador Luiz Antonio Simas afirma que a batida do violão de Jorge Ben é inspirada no toque de candomblé agueré. “Não é samba, não é balanço, não é jongo, não é maracatu. É tudo isso, mas é fundamentalmente o agueré. (…) Isso é a memória ancestral codificada.”

Na música popular brasileira, Jorge Ben foi pioneiro em trazer e reforçar a temática da exaltação da africanidade e da negritude. Em 1967, lançou a música Nascimento de um príncipe africano. Em 1968, se apresentou no IV Festival da Canção, com o famoso gesto dos Panteras Negras, sendo vaiado pela plateia. Em 1969, gravou Charles anjo 45, na qual aborda, sob a ótica da favela, o impacto da prisão de seu amigo Charles Antonio Sodré, dono de ponto de bicho, boca de fumo e de uma pistola 45. Se, para a justiça, o detido era um fora-da-lei, para os vizinhos e amigos, era o “Protetor dos fracos e dos oprimidos, Robin Hood dos morros, Rei da malandragem.” Em outra estrofe, canta: “E uma tremenda bagunça / O nosso morro virou / Pois o morro, que era um céu / Sem o nosso Charles, um inferno virou.” Em 2018, uma entrevista com Nem da Rocinha, ao El País, revelava como a prisão do traficante tornou a favela mais violenta. Caetano, que a regravou, com participação de Jorge Ben no backing vocal, afirmou, para o apresentador Flávio Cavalcanti, que essa era a música mais importante já feita no Brasil. 

Em 1971, na época do black is beautiful, Jorge intitulou seu disco de Negro é lindo, numa época em que a ditadura militar afirmava que havia democracia racial no Brasil e suprimia a pergunta sobre cor/raça no censo. E as regravações mais rentáveis de Jorge Ben ficaram na voz de seu amigo Wilson Simonal, o cantor negro de maior sucesso no Brasil, que interpretou Zazueira, Silvia Lenheira, Que maravilha e País tropical.

A alquimia de Jorge Ben inclui samba, jongo, maracatu, toque de terreiro, bossa, rock, soul, funk e até influência da música árabe. O toque percussivo dele nas cordas de nylon ou aço pode ser explicado pelo fato de ter aprendido a tocar pandeiro (13 anos) antes de tocar violão (18 anos). Essa batida alcançaria outros degraus de singularidade no disco A tábua de Esmeralda (1974), sua obra-prima. Nela, traz uma de suas mais belas canções, Zumbi

Naquele mesmo ano de 1974, dois jantares na casa de André Midani trariam a Jorge Ben mais dois discos. Em um evento, para recepcionar Eric Clapton no Rio de Janeiro, um dueto com Gil gerou o convite para a gravação disco Gil & Jorge: Ogum, Xangô. E, em outro jantar, recebeu o convite de Chris Blackwell, produtor que lançara Bob Marley, para gravar um disco em Londres. Foi a primeira vez que Jorge gravou em uma mesa de 16 canais. A intenção do produtor era transformar o brasileiro no novo Bob Marley. “O Chris Blackwell falou pra mim: adoro todo mundo do Brasil, adoro o Gil, adoro o Caetano, mas quem tem condição de fazer sucesso no mundo inteiro é o Jorge Ben”, contou o baixista Dadi, no livro. No entanto, por conta de uma festa surpresa mal-sucedida que o produtor britânico organizou na cidade inglesa, que incluiria uma não-combinada apresentação de Jorge Ben, a relação entre ambos desandou e Blackwell abandonou a intenção de investir no artista brasileiro. O disco Tropical (1975) foi lançado, mas sem interesse da gravadora.

Após essa gravação em Londres, Jorge Ben descobriu as possibilidades que um estúdio equipado com uma boa infraestrutura oferece para o bom resultado de um disco. “Ele chegou na minha sala, trancou a porta. Supersticioso, ele ficou olhando no corredor para ver se tinha alguém na outra porta, pra ver se estava trancada. Aí, falou: 'Eu queria fazer um projeto assim, com a bateria, isso assim, com uma mistura, o estúdio aqui não tem condições'”, lembrou Marco Mazzola, no livro. 

O produtor afirmou que ninguém queria encarar a missão de gravar um disco com duas baterias, dois contrabaixos e mais um monte de músicos. Mazzola foi, então, fazer um curso de especialização nos Estados Unidos e pediu para Jorge esperar sua volta ao Brasil e a importação de uma mesa de 16 canais. Acabou cumprindo, também, o papel de técnico de som, pois o profissional designado não conseguia dar conta do novo equipamento.

Lançado em 1976, África Brasil, seu 14º álbum de estúdio, mostra Jorge Ben experimentando uma nova sonoridade, apresentando músicas inéditas marcantes (Camisa 10 da Gávea e Xica da Silva) e regravações definitivas, como a de Taj Mahal. Ele, que já havia trocado o violão acústico por um plugado por conta da amplitude sonora nos shows, pela primeira vez, fazia um disco inteiro tocando guitarra. É um disco que mistura guitarra, baixo, bateria a cuíca e tambores, apresentando influência do soul e do funk. Embora o artista tenha trazido as mesmas temáticas anteriormente já apresentadas (amor, futebol, medievalismo e negritude), ele explora, nos arranjos, novas possibilidades. Não se pode negar que, logo na abertura do disco, Umababarauma: Ponta de lança africano soa como uma música absolutamente contemporânea. 

A faixa de encerramento, África Brasil, é uma poderosa, arrasadora e emocionante versão da já sublime Zumbi – e nos faz pensar em como um gênio consegue superar a si próprio. Nessa gravação, foi a única vez que ele apareceu com uma interpretação raivosa. Essa performance pode ter influenciado muita gente e pareceu um grito de guerra, como escreveu a autora do livro, mas, na entrevista concedida ao programa Roda Viva em 1995, ele afirmou que era raiva mesmo, porque a gravadora retirou o produtor Mazzola ainda na metade da gravação. Embora José Roberto Bertrami, do Azymuth, tenha sido o arranjador de orquestra, e Mazzola, dos vocais, segundo Dadi, Jorge foi o grande maestro de todo o disco.

Encerradas as gravações, Jorge teve que viajar para fazer um show. Na volta, encontrou o disco totalmente pronto, sem o seu aval. Ele não havia gostado da mixagem e da capa. Indignado, saiu da Philips e foi para a Som Livre. Continuou a fazer sucesso, se tornando mais pop. No início dos anos 1990, renovou, mais uma vez, o seu público, desta vez com os sucessos de W/Brasil e Engenho de dentro. E passou a fazer mais e mais shows. Sempre que alguém quer animar um evento, ele é convocado. Embora muitas de suas músicas sejam feitas em tom menor, uma possível herança do período no seminário e que evoca a tristeza, Jorge não gosta de fazer música triste. Como cantou Caetano, no final de Podres poderes, Jorge Ben é um daqueles que vão mais fundo em velar pela alegria do mundo. 

DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente e colunista da Continente Online.

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