Resenha

A vida do homem que esteve lá

Biografia de Samuel Wainer, fundador da cadeia de jornais ‘Última Hora’, mostra bastidores da imprensa e da política brasileiras em momentos cruciais do século XX

TEXTO Bruno Mazzoco

26 de Fevereiro de 2021

O repórter Samuel Wainer, que virou um dos poderosos da imprensa nacional

O repórter Samuel Wainer, que virou um dos poderosos da imprensa nacional

Foto Acervo Ana Chafir. Reprodução de Jaime Acioli

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Pode parecer uma realidade distante para quem lê hoje, geralmente acostumado com a primazia da internet e das redes sociais, mas a política brasileira, durante boa parte de sua história, teve nos jornais seu principal veículo de difusão e embate. Há não muito tempo, o jornal era a tribuna por excelência para a construção ou a destruição de reputações, a difusão de narrativas heroicas, as disputas de poder e denúncias de incontáveis conspiratas, mamatas e golpes – reais ou inventados. Por isso, as histórias dos homens que estiveram à frente de grandes publicações costumam ser tão interessantes.

Entre as biografias de magnatas da comunicação do país, estão as de Assis Chateaubriand (Chatô, o rei do Brasil, de Fernando Morais) e Roberto Marinho (Roberto Marinho: o poder está no ar), escrita por Leonêncio Nossa. Sobre Carlos Lacerda, a bibliografia é farta, com destaque para os dois volumes de Carlos Lacerda: a vida de um lutador, de John Dulles. E para 2021, o escritor Mário Magalhães prepara o que pode vir a ser a obra definitiva sobre a vida do jornalista e político da Guanabara. Diante disso, o vir à luz, pela Companhia das Letras, de Samuel Wainer: o homem que estava lá (Companhia das Letras, 2020, 576 páginas), de Karla Monteiro, completa a lista das narrativas de fôlego sobre o que pode ser chamado de primeiro quadrunvirato da grande imprensa brasileira .

 
A jornalista Karla Monteiro e sua biografia. Fotos: Divulgação

Para compor essa biografia, a autora precisou de um mergulho de cinco anos na história recente do Brasil. “Meus primeiros meses de pesquisa foram muito mais sobre o país do que sobre Samuel Wainer. Eu precisava entender o Brasil daquela época”, conta em entrevista à Continente. Ironicamente, o projeto surgiu em um momento de desencantamento da autora com a profissão. “Na época, eu estava olhando para a cobertura da imprensa indignada sobre como podiam estar apoiando um golpe parlamentar com aquele discurso hegemônico”, lembra Karla Monteiro, em alusão ao processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. A ideia da biografia surgiu de uma brincadeira com um colega de redação, João Wainer, fotógrafo e neto de Samuel. “Ele brincou, disse para eu fazer a biografia”, afirma a repórter, que levou a brincadeira a sério.

ÓLEO LUBRIFICANTE, TAPETES E JORNALISMO
Nascido em 1912, na Bessarabia (atual Moldávia), Samuel Wainer veio com sua família ao Brasil aos oito anos, em 1921, fugindo do antissemitismo. Ao chegar, instalaram-se no Bom Retiro, reduto da comunidade judaica na capital paulista.

No início da década de 1930, Samuel transferiu-se para o Rio de Janeiro. Na então capital federal, ganhou a vida vendendo de óleos lubrificantes e tapetes-persa de origem duvidosa, na região da Praça Onze – atividade que alia à sua coluna no jornal do Club Juventude Israelita. Esse seria seu cartão de visitas para chegar à grande imprensa, como colunista do Diário Israelita, no Diário de Notícias. Três anos depois, em dezembro de 1933, ingressaria na Revista Brasileira. Nas duas ocasiões, conta com a ajuda de um patrício abastado: o industrial Wolf Klabin. Inicia também o relacionamento com Bluma, sua primeira esposa. Bonita, culta, feminista e independente, seria sua companheira por quase 20 anos. Na nova casa, conhece Azevedo Amaral e Carlos Lacerda. O primeiro, influência decisiva, porém breve, aguça nele o espírito empreendedor. Já o segundo, de companheiro fraterno, virá a se converter em antagonista para toda a vida.


Bluma e Samuel. Foto: Acervo Ana Chafir. Reprodução de Jaime Acioli

A PRIMEIRA AVENTURA COMO PUBLISHER
No início do Estado Novo, o ano de 1938 começou com a imprensa respirando por aparelhos. Mas não para Samuel Wainer. Azevedo Amaral acabara de arranjar um subsídio da Light para fundar uma revista e o convidou para dividir a empreitada. Embora discordasse politicamente do sócio – Wainer contra e Amaral a favor do regime autoritário de Getúlio Vargas –, topou o convite na hora.

Com o passar do tempo, a equipe da Diretrizes foi amealhando um belo time de colaboradores. No expediente, nomes como Jorge Amado, Joel Silveira e Rubem Braga recebiam visitantes ilustres como Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos e Mário de Andrade. Para livrar-se do equilibrismo editorial que vinha causando cada vez mais rusgas entre os sócios, Wainer valeu-se do ardil de registrar o título apenas em seu nome. Em português claro: deu uma rasteira no amigo. O escalado por Wainer para ajudar no departamento comercial foi Rubem Braga. De tão parecidos, os dois podiam passar por irmãos. Coincidência nefasta: para suprir as ausências constantes do marido, sempre tão focado na atividade jornalística, Bluma acabou caindo nos braços de Braga.

A reação de Wainer: mergulhar ainda mais fundo no trabalho. Dessa imersão, surgiram ideias que fizeram a revista multiplicar sua tiragem, como as reportagens – publicadas em capítulos – sobre a vida do poeta Castro Alves e o homicídio de Euclides da Cunha. Sem o contraponto do sócio getulista, Wainer aprofundou as críticas ao regime. Em represália, a censura varguista apertou o garrote até estrangular a publicação com o corte da cota de papel, que dependia de autorização do governo. Depois de denunciar publicamente o empastelamento, só restava sair do país.


Imagem: Acervo Fundação Biblioteca Nacional – Brasil

DO EXÍLIO À ÚLTIMA HORA
O primeiro destino do casal foi o Uruguai, depois a Argentina, o Chile, os Estados Unidos e, finalmente, a Europa. Para bancar parte das despesas, conseguiu de Roberto Marinho um salário de 300 dólares como correspondente de O Globo. Por onde passavam, Wainer, charmoso e com faro jornalístico aguçadíssimo, aumentava sua rede de contatos na imprensa internacional. Time, Chicago Daily News, BBC e o jornal francês Ce Soir, onde publicou reportagens sobre o regime de Franco na Espanha. O grande furo, porém, foi a cobertura do julgamento dos oficiais nazistas em Nuremberg. Wainer era o único jornalista da imprensa brasileira no local.

Com o fim do Estado Novo, o casal podia voltar ao Brasil. Mas Bluma preferiu ficar em Paris. Estava lançado o germe da separação. De volta ao Rio, Samuel assume, convidado pelo todo-poderoso Chateaubriand, a direção de O Jornal, principal publicação dos Diários Associados. Fica pouco tempo no cargo. Diferenças com o patrão fizeram com que Wainer pedisse para voltar à reportagem. Como repórter, consegue o furo que abrirá os caminhos para seu próprio jornal.

Enquanto isso, recolhido em sua fazenda em São Borja, no Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas planejava voltar por cima depois de um longo silêncio, desde que fora apeado do poder pelos militares, em 1945. A história que entraria para os anais do jornalismo é que Wainer estaria na região para fazer uma reportagem sobre o cultivo de arroz. Ao sobrevoar a propriedade do caudilho, resolvera descer para ver como estava o ex-presidente e voltou com uma entrevista exclusiva e capa do Diário da Noite de 3 de março de 1949. No livro, Karla Monteiro mostra que a história não foi bem assim, o repórter saíra do Rio de Janeiro já sabendo da pauta.


Getulio Vargas e Samuel Wainer, Santos Reis, junho de 1949.
Foto: Acervo Iconographia

Depois da entrevista com o ex-ditador, Wainer foi o único repórter da grande imprensa a cobrir sistematicamente a campanha de Getúlio Vargas nas eleições de 1950. Contra o retorno do “pai dos pobres” ao Catete, toda imprensa adotou o silêncio como tática de oposição. Mesmo depois de eleito, o boicote na cobertura persistia. Apelidado de profeta pelo presidente, por ter sido o único a acompanhar a campanha vitoriosa, Samuel Wainer ouviu de Vargas a singela pergunta: “Por que tu não fazes um jornal?”

Um mês e meio depois da conversa, em 21 de junho de 1951, a Última Hora estava nas bancas. Para apoiar o governo, claro. Se toda a imprensa existente no país até ali escondia seu conservadorismo sob o véu de uma pretensa imparcialidade, a Última Hora veio ao mundo desfraldando a bandeira do trabalhismo. Jornalismo chapa-branca? A autora olha o copo meio cheio. Pelo menos havia mais transparência ao assumir posições. “Independência ninguém tinha. Estava todo mundo defendendo o seu pedaço. Estadão com a UDN, o Globo com o lacerdismo”, analisa ela.

Mostrar abertamente seu posicionamento ideológico não foi a única novidade trazida pela Última Hora. Outras inovações foram a diagramação moderna, com letras garrafais nas manchetes e fotos “estouradas” na primeira página, o destaque para temas nacionais e a valorização dos profissionais de imprensa, chegando a dobrar os salários pagos pela concorrência. Montava novamente uma redação estelar, e masculina, como de costume: Nelson Rodrigues, Paulo Francis, Joel Silveira, Otto Lara Resende e Moacir Wernek de Castro, para citar alguns.

Tanta novidade na praça, os cofres do poder abertos…. Muita gente ficou desagradada. Já dono de seu próprio jornal – A Tribuna de Imprensa, fundada em 1949 – e agarrado ao credo conservador, Carlos Lacerda lançou a campanha mais virulenta já vista contra um veículo de imprensa por estas terras.

LACERDA VERSUS WAINER
O afastamento entre os dois (ex)amigos não era recente. O imbróglio inicial surgiu quando, na época da Diretrizes, Lacerda recebeu a encomenda de uma reportagem para a revista Observatório Econômico sobre a história do Partido Comunista Brasileiro. A matéria caiu como uma bomba. Quando o expurgo pareceu inevitável, Samuel Wainer tirou o corpo fora. Dali em diante, a relação degringolou.

Em seus artigos, chamava Wainer de “aventureiro” e denunciava as relações escusas do concorrente com as autoridades. Chegou até a forjar uma entrevista para ventilar a notícia de que a empresa do arquirrival estava sob intervenção do Banco do Brasil. Fake news. Samuel conseguiu cooptar o repórter do suposto furo de reportagem e desmascarou a tramoia. Mesmo com o desmentido, não escapou de uma CPI que devassou as contas do jornal e questionava sua nacionalidade. Pela lei da época, estrangeiros não poderiam ser donos de jornal.

Dia após dia, Lacerda continuava sua campanha contra a Última Hora. Mais do que derrotar Wainer, seu objetivo era derrubar Getúlio Vargas, o que acaba acontecendo depois da implicação de sua guarda pessoal no famoso atentado sofrido por Lacerda na Rua Tonelero, em Copacabana.


CPI da Última Hora. A libertação de SW é a manchete do jornal. Foto: Acervo Pinky Wainer

OS GOLPES: 1964 E A NOVA FALÊNCIA
Depois do suicídio de Vargas, Wainer continuou tendo assento nas varandas do poder. Seu jornal encampou animadamente o projeto de construção de Brasília, a nova capital erguida por Juscelino Kubistchek. O negócio se expandiu. Em seu auge, chegou a contar com sete edições, abrangendo Rio de Janeiro e Guanabara, São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul.

Em seguida, a relação com Jango – como era conhecido o presidente João Goulart, deposto pelo Golpe de 1964 – foi ainda mais próxima, a ponto de seu nome constar em lista de conselheiros do presidente enviada ao governo dos Estados Unidos pela embaixada deste país. A proximidade foi tanta, que Wainer chegou a ajudar o presidente a arrecadar fundos para seu partido (o PTB), que se preparava para o golpe, com a promessa de receber um milhão de dólares para manter seu jornal ativo. Ele bem que tentou influenciar o presidente a buscar uma conciliação que evitasse a queda. Em vão.

Com os tanques nas ruas e a redação carioca da Última Hora destruída, partiu para um novo exílio. Em Paris, aproxima-se de Violeta Arraes, com quem passa a se corresponder com frequência. Seu filho mais novo, Bruno – o terceiro que teve no casamento com Danuza Leão –, chega a ficar sob sua tutela estudando na capital francesa, além de passar um tempo na Argélia com Miguel Arraes.

Atolado em dívidas e sem o milhão prometido, a saída foi repassar, em 1971, seu jornal para a família Frias, da Folha de São Paulo. Encerra sua carreira como colunista na prestigiosa página dois do jornal paulistano, com “amplíssima repercussão", nas palavras de Boris Casoy, diretor de redação à época.


Wainer e João Goulart durante visita do presidente ao pintor Di Cavalcanti, no Rio. Foto: Acervo Pinky Wainer

Com uma vida de luxo e glamour, nunca utilizou a proximidade do poder para fazer fortuna. Todo o dinheiro a que teve acesso foi aplicado em seus empreendimentos jornalísticos. Tanto que terminou a vida morando de aluguel. Sua única propriedade era uma linha telefônica, que usava para se comunicar com os filhos, as incontáveis fontes e os amigos, segundo a autora.

Admirável esforço de reportagem, o livro de Karla Monteiro conta a história do homem que estava lá, participando do jogo de conveniência dos donos do poder por quase cinco décadas e, ao mesmo tempo, defendendo, a seu modo, a causa do trabalhismo. A prosa límpida, em alguns momentos, é entrecortada por diversas citações das publicações da época. Se o expediente altera, por vezes, a cadência envolvente da trama, traz em seu benefício o cotejar das prosódias dos diferentes veículos. Afinal, esse é um livro sobre um homem de imprensa.

No mais, o tratamento dado é honesto, despojado de julgamentos morais, sem romantizar ou vilanizar o biografado, como convém aos personagens de carne e osso. Adentrar na caracterização psicológica seria dar mais spoilers do que o texto já deu, privando o leitor da descoberta. Ao final da leitura, depois de ser enaltecido por uns e execrado por outros ainda em vida, parece ter valido para Samuel Wainer, falecido em 1980, uma das máximas cunhadas por Tom Jobim de que, no Brasil, sucesso é uma ofensa pessoal.


SW e seu jornal. Foto: Acervo Bruno Wainer

BRUNO MAZZOCO, jornalista e diretor audiovisual com especialização em escrita criativa. Acumula passagens por redações de TV, impresso e online, produtoras e agências de conteúdo. Cobre educação desde 2013. Em 2105, foi indicado para o Prêmio Esso na categoria educação pela reportagem Foco na aprendizagem.

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