A sombra de nossos monstros
Segundo filme de Gabriela Amaral Almeida traz, no horror, um olhar intimista acerca das condições humanas e seus traumas na pós-modernidade
TEXTO Manu Falcão
08 de Maio de 2019
Foto Divulgação
[conteúdo exclusivo Continente Online]
No cinema, debruçar-se ao horror para tratar das fissuras de uma sociedade tem sido uma recorrência. No cinema de Gabriela Amaral de Almeida, especificamente, sua predileção pelo gênero vai um pouco mais a fundo; espreita o recôndito. O recém-lançado A sombra do pai, longa que sucede seu filme de estreia – O animal cordial, de 2017 – fricciona o sobrenatural com as mais íntimas e tétricas questões das relações humanas.
Sob um prisma de inocência, tal como Vitor Erice e seu O espírito da colmeia (1973), o filme titubeia na linha um tanto tênue que estabelecera entre o real e o fantástico, a vida e a morte, testificando, na busca pelo ponto de interseção da fantasia, misticismo e um irresistível estranhamento, o caminho mais etéreo para apreensão da pós-modernidade. Uma espécie de zona crepuscular já versada por Rod Serling – no abismo dos temores do homem e o cume dos seus conhecimentos.
O horror, aqui, é evocado a partir da ausência. Na casa onde residem Sara (Luciana Paes), seu irmão Jorge (Julio Machado) e a sobrinha Dalva (Nina Medeiros), os três personagens introjetam seus respectivos vazios. Sara, ingênua, anseia por um amor correspondido, recorrendo às simpatias populares para conseguir casar; ao passo que Jorge, morosamente dilacerado por um mundo envolto ao capital e seu ofício de trabalhador braçal, sente a perda da esposa falecida e de um amigo próximo, morto na obra em que trabalhavam. Os dois são observados pelo filtro infantil de Dalva, que, por sua vez, também lida com a falta da mãe, deslocada no espaço fatigado dos adultos – tornando-se, aos poucos, uma amálgama do que presencia.
Dalva, então, reconhece nas crendices místicas da tia o ensejo de situar-se no mundo que não lhe parece seu, de ajudar o pai zumbificado pelo cansaço e de, sobretudo, reter a presença materna. Isso a acomete como um novo conhecimento secreto – a possibilidade de um “superpoder” que permite a travessia da ponte intangível entre a desolação do lar e o lugar oculto, assombrosamente atraente, no qual a sua mãe e outras inexistências palpáveis se encontram.
Foto: Divulgação
A DIRETORA
“Para a criança, o mundo pode ser hostil, pois não lhe pertence”, reflete Gabriela, em conversa à Continente. “É natural que ela tente acessá-lo ao seu modo, através do que parece lúdico, mas, no processo, acaba por dimensionar algo de fantástico que não é necessariamente positivo. Este superpoder, a ponte com o sobrenatural, é, de certa forma, a própria infância achando meios de resistência, mas, ao tentar conjurar os fantasmas mais literais, cuja presença se faz pela ausência da qual não pode acessar – como a personagem da mãe –, encontra outros fantasmas, aqueles não quistos da consciência humana.”
Acerca da construção tortuosa que paira sobre os três personagens, Gabriela fala do processo de criação como algo que fora assombrado pelas obras que a sensibilizaram e estão arraigadas em seu imaginário. Refere-se, inclusive, ao cinema de Erice como uma de suas principais referências. "Carrego O espírito da colmeia comigo desde a primeira vez que o vi, ainda estudando cinema", conta. "É um filme que segue me inquietando. Nesse sentido, há uma confluência entre Dalva e a personagem de Ana Torrent. O encantamento das duas crianças que passam a conhecer a morte e assimilá-la com seus olhares potentes, de frescor juvenil, me movem, até então, a querer transpor esse sentimento, a fim de entendê-lo através das imagens que faço."
Ao ser questionada sobre o quão autobiográficas essas narrativas que surgem como um fio condutor em seu cinema ainda conciso são, Gabriela diz que: "Toda obra é autobiográfica. Muito do que me perturba acaba inevitavelmente nos meus filmes. Por exemplo, sou baiana, cresci rodeada por artes sacras e ritos populares, reconhecendo neles a dimensão bonita, mas também perturbadora que ganharam em A sombra do pai. E, claro, desde a infância sou atraída pelo horror, bem como fui uma leitora assídua de Stephen King e Carson McCullers – duas pessoas que encontravam na literatura um meio de confrontar suas próprias violências internas e a sequência de absurdos da vida. Porque viver é absurdo, não é?", conta. "É justamente isso que me interessa nesse cinema de gênero e estas ferramentas de se contar uma história: materializar os monstros que se tornam maior que a existência ela mesma, para, enfim, enfrentá-los. Os monstros nascidos na solidão, no luto, e no cruel modus operandi de uma sociedade hipercapitalista."
A sombra do pai encontra esse caminho. Em comunhão com sua contemplação formal, à medida que cada ação, cada fala e movimento dos personagens imersos em suas rotinas extenuantes parecem insustentáveis, aqui, o Frankestein de Vitor Erice torna-se gradativamente humano – no distanciamento, no silêncio e na manutenção da memória que segmentam os laços afetivos.
O filme segue em cartaz no Cinema da Fundação/Derby e em outras salas do país.
MANU FALCÃO é estudante de jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.