Resenha

A primeira aparição de ‘Retratos fantasmas’

Novo filme do cineasta Kleber Mendonça Filho é exibido como hors concours na seleção oficial de Cannes este ano. Trazemos nossas impressões em primeira mão

TEXTO Luciana Veras

19 de Maio de 2023

O São Luiz é o único em atividade no centro do Recife, apesar de fechado há um ano para reparos

O São Luiz é o único em atividade no centro do Recife, apesar de fechado há um ano para reparos

Foto João Carlos Lacerda/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Quatro anos após vencer o Prêmio do Júri do Festival de Cannes com Bacurau (Brasil/França, 2019), filme que codirigiu com Juliano Dornelles, o cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho volta ao tapete vermelho, ao alarido da Croisette e a um dos maiores eventos cinematográficos do planeta. Retratos fantasmas (Brasil, 2023), seu quinto longa-metragem e segunda incursão pelo gênero documental, está sendo apresentando nesta sexta (10), na mostra Special Screenings, com uma sessão noturna – correspondendo, considerando 5h de fuso horário a mais, ao início da tarde no nosso Hemisfério Sul – na Sala Agnès Varda.

Uma produção de Emilie Lesclaux e CinemaScópio Produções e Silvia Cruz e Felipe Lopes da Vitrine Filmes (que lançou todos os longas ficcionais do realizador e agora envereda para além das trincheiras da distribuição), viabilizada com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), do Banco Regional do Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) e da Agência Nacional de Cinema (Ancine), Retratos fantasmas entrou como hors concours na seleção oficial de Cannes este ano. Porém, mesmo fora da competição, é um dos candidatos ao prestigiado troféu L’Œil d'Or (Golden Eye ou Olho de Ouro), dedicado ao melhor documentário em exibição em todas as mostras do festival.

Aquarius, em 2016, e Bacurau, em 2019, disputaram a Palma de Ouro com dezenas de outros títulos, proporcionando a Kleber a experiência de estar em Cannes como realizador, ele que, durante muito tempo, cobriu o festival para o Jornal do Commercio. Inclusive, foi também na condição de jornalista a circular pelo Brasil e pelo mundo que captou dezenas de entrevistas e momentos singulares e os enfeixou em Crítico (2009), seu primeiro documentário.

Para seu segundo longa documental, ele parte de uma paisagem que conhece bem. “Retratos fantasmas tem o centro da cidade do Recife como personagem principal, sendo um espaço histórico e humano, revisitado através dos grandes cinemas que serviram como espaços de convívio durante o século XX. Foram lugares de sonho e de indústria, e a relação das pessoas com esse universo é um marcador de tempo para as mudanças dos costumes em sociedade”, assinala o release enviado pela Primeiro Plano Comunicação,  parceira de longa data - todos os seus longas foram divulgados pela assessoria capitaneada por Anna Luiza Müller.

Aliás, é interessante notar que Retratos fantasmas se ancora em alicerces afetivos recorrentes ao diretor. Tanto sob o prisma da equipe – Pedro Sotero na fotografia; a Vitrine e a Primeiro Plano; Emilie, sua parceira de vida e arte, mãe dos seus filhos e produtora de todos os seus longas; e Matheus Faria, que montou o documentário Bacurau no mapa –, como pelo viés da paisagem que lhe é cara desde sempre. “Eu adoro cidade, sou uma pessoa de cidade. Gosto de ir ao campo, mas eu não sou do campo. Sou da cidade. E eu gosto muito do centro do Recife. Meu pai me mostrou o centro da cidade e, com ele, veio um pacote de cinemas. Veio a Livro 7, que era uma visita semanal que eu fazia no sábado de manhã ou de tarde, com meu pai, ou com minha mãe, mas nunca com os dois juntos... A rua suja, as pessoas, a música alta, o cheiro de lixo, de jaca. Um centro vivo”, rememorava Kleber em uma conversa com a Continente, uma semana antes de embarcar para Cannes.


Cartaz para o Festival de Cannes feito por Clara Moreira sobre fotografia
de Wilson Carneiro da Cunha. Imagem: CinemaScópio/Divulgação

Dois dias antes, Retratos fantasmas havia sido exibido em uma sessão teste no Cinema do Museu, emocionando as cerca de 20 pessoas presentes, incluindo a equipe da Continente. Era um dia de perdas – o deputado federal carioca David Miranda havia falecido e, tão logo a projeção acabou, chegou a notícia da morte de Rita Lee. O documentário é, também, uma meditação sobre perdas – o desaparecimento das salas de cinema que tanto caracterizam o centro do Recife; a ausência daqueles marcos arquitetônicos em um centro que se esvai em intervenções urbanas que parecem afugentar cada vez mais os cidadãos; a falta das referências que nos constituíram imageticamente e afetivamente e, hoje, só podem ser vistas e acessadas justamente por meio de imagens antigas – seriam estas imagens os tais “retratos fantasmas”?

No entanto, o filme é, também e sobretudo, sobre memória, sobre o nosso dever, a nossa missão, de não esquecer e, assim sendo, sobre a possibilidade de ganhos – o que ganhamos quando nos lembramos? O que ganhamos ao recordar? Em 1993, instado a responder sobre As cidades invisíveis, livro que lançara em 1972, o escritor italiano Ítalo Calvino assim discorreu: “Aquilo que está no coração de meu Marco Polo é descobrir as razões secretas que levaram os homens a viver nas cidades, razões que poderão valer para além de todas as crises. As cidades são um conjunto de muitas coisas: de memória, de desejos, de sinais de uma linguagem; as cidades são locais de troca, como explicam todos os livros de história da economia, mas estas trocas não são apenas trocas de mercadorias, são trocas de palavras, de desejos, de lembranças”.

Em As cidades invisíveis, Calvino nos conduz pelas localidades inventadas nos escritos que o viajante Marco Polo endereça ao imperador mongol Kublai Khan. Em Retratos fantasmas, Kleber se dispõe a tornar visível a acelerada decadência do centro da sua cidade, e o ocaso dos cinemas que lhe marcaram a juventude. Mas o faz com delicadeza e bom humor, homenageando tanto os outros realizadores que registraram o Recife (Kátia Mesel, Amin Stepple, Cláudio Assis, Jomard Muniz de Brito, Fernando Spencer) quanto aderindo à sua gramática imagética – com a narração feita em primeira pessoa, em tom confessional, e sua própria voz, ele constrói sua plataforma para o intercâmbio de “palavras, desejos, lembranças”, auxiliado por imagens luxuosas como o registro da visita de Tony Curtis e Janet Leigh à capital pernambucana. Imaginem os dois de mãos dadas na Ponte Duarte Coelho… Pois esta sequência inacreditavelmente cinematográfica está lá, como de resto estão outras imagens garimpadas pela minuciosa e caprichada pesquisa a cargo da dupla Cleodon Pedro Coelho e Karina Nobre.

“Você vai ficando mais velho, vai vendo as mudanças acontecendo na sua frente e percebe que são mudanças. Quando você é jovem, não tem certeza que está vendo uma mudança. Quando abriram os cinemas do shopping (as salas Recife 1, 2 e 3, inauguradas em 1988, em um prédio vizinho ao Shopping Recife), houve uma queda clara nos cinemas do centro”, lembra Kleber, já naquela época um frequentador assíduo do Veneza, do São Luiz, do Moderno, do Art Palácio e do Trianon, para citar cinco das salas antigas cujas histórias se fundem na fronteira borrada entre memória e reinvenção da qual se erige Retratos fantasmas. Hoje, apenas o Cine São Luiz está operacional e, mesmo assim, fechado desde maio de 2022 para reparos.


Cine Veneza, no Recife. Imagem: CinemaScópio/Divulgação
 

“Meu trabalho de formatura em Jornalismo, na Universidade Federal de Pernambuco, foi feito a partir de vídeos e fotografias dessas salas que eu tirei na época. Porque ali eu já via que estávamos no final de um momento. As salas grandes, inauguradas nos anos de 1940, 1950 e 1960, estavam fechando. Isso era no final dos anos 1980, início dos anos 1990. Eu me formei em 1992. Entre 1990 e 1992, fotografei e filmei todas aquelas salas. Já tinha a certeza de que, quando ia ao Art Palácio ver um filme, aquilo ali era uma coisa incrível, porque estava intacto, e havia sido construído nos anos 1940. Mas também sabia que aquilo devia ter tempo para terminar, porque nada ficaria ali daquele jeito para sempre”, observa o cineasta. 

Casa de imagem (1992), dirigido por Kleber e Elissama Cantalice, e Um homem de projeção (1992), em que o realizador acompanha a rotina e o trabalho do saudoso seu Alexandre Moura, projecionista do Art Palácio e figura generosa que descortinou todo o modus operandi nas apertadas e calorentas cabines de projeção, são espelho e tradução dessa práxis arqueológica. Ao registrar tudo aquilo, sem saber ao certo onde tudo aquilo terminaria, o Kleber de 1992 deu ao Kleber de 2022 a chance de mergulhar num grande arquivo e lapidar uma versão muito particular, mas ao mesmo tempo muito universal, de um “guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife”, parafraseando o livro de Gilberto Freyre (1934). 

“O centro estava em decadência já desde os anos 1970. Ainda peguei um centro mais vivo, que comercialmente ainda estava lá. Na verdade, as pessoas dizem, quase num consenso, que o centro morreu, mas o centro não morreu. Ele está lá, mas a vibe é diferente. Porque o dinheiro estava lá e, quando o dinheiro começou a sair do centro, ele começou a murchar. Mas continua vivo e muito real. E com muitos problemas”, constata o diretor. E justamente talvez porque o centro está vivo e real (em determinado momento de Retratos fantasmas, ele relata que alguém, talvez de fora do país, lhe dizia que o centro do Recife tinha cheiro de “fruta, mijo e maré”), em algum momento dos últimos anos ele entendeu que “não era um filme sobre salas de cinema, mas também a cidade”. E, em sendo sobre o Recife, também é sobre ele, nascido e criado na cidade que aprendeu a representar nas suas ficções, desde os curtas Enjaulado (1993) e Eletrodoméstica (2005).

Dividido em três capítulos, Retratos fantasmas é um ensaio pessoal que nos relembra a máxima shakespeariana que “a vida é feita de som e fúria”, mas ao mesmo tempo sinaliza para a capacidade de, com ternura e delicadeza, revirar nosso próprio baú e propor uma nova iconografia para a cidade, o país e os tempos em que vivemos. “Acontece muito no cinema brasileiro de ter as imagens oficiais, sabe? Quando o cinema brasileiro fala da ditadura, já sei exatamente quais as imagens que vão ser mostradas: tem uma foto do cara caindo, levando porrada (de autoria de Evandro Teixeira), tem umas fotos de cavalo bem boas, na Cinelândia, na Rio Branco, no Rio de Janeiro, tem a passeata… É impressionante como é a mesma imagem. E o Recife também tem isso quando fala do passado em Recife. E eu queria apresentar uma outra coleção de imagens, um outro álbum, algo como ‘olha, mas também tem essa essas imagens, isso aqui também é o passado do Recife’”, situa Kleber Mendonça Filho.


Visão panorâmica do centro do Recife. Imagem: CinemaScópio/Divulgação

O documentário deve estrear no Brasil no final de agosto, segundo Emilie Lesclaux, repetindo a estratégia de encurtar a distância entre a estreia em Cannes e o lançamento comercial (com Aquarius e Bacurau foi assim: première mundial na França em maio e chegada às salas brasileiras em agosto). Ela e Kleber não escondem que adorariam que o filme passasse no São Luiz (equipamento do Governo do Estado) e também no Cineteatro do Parque (da Prefeitura do Recife). Hora de aguardar… Até lá, que Retratos fantasmas, este álbum de família local e global, em que Pernambuco fala para o mundo e as imagens do mundo ressoam no passado, no presente e no futuro do Recife, reverbere muito a partir de Cannes. Como anuncia o título em inglês - Pictures of ghosts - as imagens são de fantasmas vivos, muito vivos, como o centro fétido mas ainda incrivelmente fértil desta cidade.

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.

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