PROVOCAÇÕES MISÓGINAS
Ao penetrar na mente do assassino vivido por Matt Dillon, o diretor, notório por abraçar polêmicas, mas não sem embasamento nas razões para levantá-las em seus filmes, cria uma profunda análise da mente doentia e perversa de um serial killer. Sim, o filme esbarra em um aspecto misógino, uma vez que as vítimas aleatórias que o personagem-título escolhe no contar de sua história são todas mulheres em um estado de estupidez e de ingenuidade que incomodam. Mas, conhecendo as personagens fortes e femininas dos filmes anteriores do cineasta, não é de se espantar encontrarmos uma irônica e proposital inserção da fragilidade na construção dessas presenças.
Jack, em certo momento, é questionado acerca dessa sua exclusividade feminina, em que a possibilidade de uma retração sexual é inserida. Ao rechaçar tal fato, o mesmo afirma já ter matado homens. Porém, nenhuma dessas mortes é exibida no filme (as únicas são impedidas em seu clímax), confirmando a ideia de uma provocação, principalmente quando o lugar de vítima feminina é colocada na roda, diante de um argumento um tanto ridículo de que “a culpa é sempre masculina”. Impossível não pensar na recente leva de denúncias contra figurões em Hollywood quanto a acusações de assédio. Mas isso é Von Trier apenas provocando. A profundidade dos temas que seus filmes trazem é bem mais atrativa, ressalto.
Uma Thurman faz uma das vítimas do protagonista. Foto: Divulgação
RIQUEZA VISUAL E AUTO-AVALIAÇÃO
Muito parecido em sua estrutura com o anterior, Ninfomaníaca, ao penetrar em diversos assuntos atrelados à condição psíquica de seu protagonista, o cineasta dinamarquês abrange um vasto leque de elementos culturais, dentre estes a arquitetura, afinal essa é a profissão que Jack afirma possuir. Além disso, a rima temática e visual que a explicação acerca da construção dos telhados, como o da tal casa que ele constrói no final, fascina, principalmente ao ouvirmos o protagonista comparar a entrada da luz pelo telhado e os pontos cegos que a mesma não alcança como algo relacionado ao olhar divino. Sendo assim, desde o começo, percebe-se algo mais profundo do que somente provocações misóginas em seu roteiro.
O título, além de uma referência à profissão de Jack, vem do poema homônimo escrito por W.W. Denslow, que também escreveu o conto de Chapeuzinho Vermelho, algo que o diretor faz questão de referenciar no último ato. Porém, distante de um ato simplório com a tal relação visual entre figurino e temática, o cineasta instiga o público, ao inserir os conflitos psicológicos de Jack em sua derrocada, como uma visita guiada ao purgatório, aonde é levado por Virgílio (Bruno Ganz) – não por acaso personagem homônimo da obra de Dante Alighieri, nos arcos do purgatório. As recriações das imagens, ao mostrar, por exemplo, a Barca de Dante, enchem os olhos.
Sádico em sua proposta, mas justificável em seu resultado final, A casa que Jack construiu traz também uma espécie de autoavaliação do próprio Von Trier, quando, diante das diversas polêmicas que trouxe com seus filmes no decorrer dos anos, resolve revisitá-los em uma condição de autoanálise. Um cinema como autoanálise provocativa e necessária, mas sagaz na construção profunda de um personagem que fascina por suas camadas.
JOÃO PAULO BARRETO é jornalista, curador e crítico de cinema. Membro da Abraccine, assina o blog Película Virtual. A resenha acima é uma segunda versão de texto publicado originalmente pelo autor no jornal A Tarde.