Resenha

A nova provocação de Lars Von Trier

Sádico em sua proposta, mas justificável em seu resultado final, 'A casa que Jack construiu' traz também uma espécie de autoavaliação do próprio cineasta dinamarquês

TEXTO João Paulo Barreto

06 de Novembro de 2018

Matt Dillon vive um serial killer de muitas camadas

Matt Dillon vive um serial killer de muitas camadas

Foto Divulgação

É curioso observar como, em sua trajetória, o cineasta dinamarquês Lars von Trier evoluiu e abraçou um estilo de cinema que utiliza os limites humanos como um estudo não somente psicológico de seus personagens, passando também a utilizar estes seres e situações onde se veem inseridos como uma colcha de retalhos de fatos culturais e científicos. Assim, observando um recorte recente de sua carreira – o uso das metáforas de peixes e processos de acasalamento com a relação de uma garota e sua descoberta pelo sexo em Ninfomaníaca (2013), ou, ainda, o desespero da depressão sendo colocado em perspectiva com a pintura Ofélia, de John Everett Millais, em Melancolia (2011) , percebemos um domínio de suas intenções na criação dessa colcha, pareando referências, aprofundando sua trama, mas não sem criar provocações.

Do mesmo modo, o diretor, que se orgulha em afirmar nunca ter pisado nos Estados Unidos, oferece um estudo eficiente da violência do povo do país em questão com o minimalista Dogville (2003) e sua continuação direta, Manderlay (2005). Nas obras, lembrando também Dançando no escuro (2000), o crítico ferrenho da potência imperialista dialoga com seu espectador de modo direto, abordando a cultura da violência norte-americana sem nenhum pudor ou insegurança.

Assim, o que ele propõe em seu novo filme, A casa que Jack construiu (no original, em inglês, The house that Jack built, 2018), em cartaz no Brasil, é algo que penetra ainda mais nessa violência, fazendo-se valer de diversas referências culturais oriundas do país como ilustração daquela realidade. Assim, não é com surpresa que, por exemplo, o vemos recriar Subterranean homesick blues, clássico de Dylan, em imagens do seu protagonista a separar os tomos de sua saga assassina com placas semelhantes às do videoclipe.

PROVOCAÇÕES MISÓGINAS
Ao penetrar na mente do assassino vivido por Matt Dillon, o diretor, notório por abraçar polêmicas, mas não sem embasamento nas razões para levantá-las em seus filmes, cria uma profunda análise da mente doentia e perversa de um serial killer. Sim, o filme esbarra em um aspecto misógino, uma vez que as vítimas aleatórias que o personagem-título escolhe no contar de sua história são todas mulheres em um estado de estupidez e de ingenuidade que incomodam. Mas, conhecendo as personagens fortes e femininas dos filmes anteriores do cineasta, não é de se espantar encontrarmos uma irônica e proposital inserção da fragilidade na construção dessas presenças.

Jack, em certo momento, é questionado acerca dessa sua exclusividade feminina, em que a possibilidade de uma retração sexual é inserida. Ao rechaçar tal fato, o mesmo afirma já ter matado homens. Porém, nenhuma dessas mortes é exibida no filme (as únicas são impedidas em seu clímax), confirmando a ideia de uma provocação, principalmente quando o lugar de vítima feminina é colocada na roda, diante de um argumento um tanto ridículo de que “a culpa é sempre masculina”. Impossível não pensar na recente leva de denúncias contra figurões em Hollywood quanto a acusações de assédio. Mas isso é Von Trier apenas provocando. A profundidade dos temas que seus filmes trazem é bem mais atrativa, ressalto.


Uma Thurman faz uma das vítimas do protagonista. Foto: Divulgação

RIQUEZA VISUAL E AUTO-AVALIAÇÃO
Muito parecido em sua estrutura com o anterior, Ninfomaníaca, ao penetrar em diversos assuntos atrelados à condição psíquica de seu protagonista, o cineasta dinamarquês abrange um vasto leque de elementos culturais, dentre estes a arquitetura, afinal essa é a profissão que Jack afirma possuir. Além disso, a rima temática e visual que a explicação acerca da construção dos telhados, como o da tal casa que ele constrói no final, fascina, principalmente ao ouvirmos o protagonista comparar a entrada da luz pelo telhado e os pontos cegos que a mesma não alcança como algo relacionado ao olhar divino. Sendo assim, desde o começo, percebe-se algo mais profundo do que somente provocações misóginas em seu roteiro.

O título, além de uma referência à profissão de Jack, vem do poema homônimo escrito por W.W. Denslow, que também escreveu o conto de Chapeuzinho Vermelho, algo que o diretor faz questão de referenciar no último ato. Porém, distante de um ato simplório com a tal relação visual entre figurino e temática, o cineasta instiga o público, ao inserir os conflitos psicológicos de Jack em sua derrocada, como uma visita guiada ao purgatório, aonde é levado por Virgílio (Bruno Ganz) – não por acaso personagem homônimo da obra de Dante Alighieri, nos arcos do purgatório. As recriações das imagens, ao mostrar, por exemplo, a Barca de Dante, enchem os olhos.

Sádico em sua proposta, mas justificável em seu resultado final, A casa que Jack construiu traz também uma espécie de autoavaliação do próprio Von Trier, quando, diante das diversas polêmicas que trouxe com seus filmes no decorrer dos anos, resolve revisitá-los em uma condição de autoanálise. Um cinema como autoanálise provocativa e necessária, mas sagaz na construção profunda de um personagem que fascina por suas camadas.

JOÃO PAULO BARRETO é jornalista, curador e crítico de cinema. Membro da Abraccine, assina o blog Película Virtual. A resenha acima é uma segunda versão de texto publicado originalmente pelo autor no jornal A Tarde.

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