Resenha

A juíza pop

Aos 86 anos, Ruth Bader Ginsburg vira um dos símbolos mais populares dos Estados Unidos na luta por direitos progressistas e é tema de documentário que estreia no Brasil

TEXTO Bruno Albertim

24 de Maio de 2019

Cena do documentário 'A juíza'

Cena do documentário 'A juíza'

Foto Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Ruth Bader Ginsburg
não é Madonna, Lady Gaga ou outra divindade ruidosa nas redes sociais das celebridades. Seu rosto ternamente enrugado, entretanto, estampa camisetas, brincos, canecas, bonecas e até tatuagens entre jovens norte-americanos. A senhora Ginsburg tem 86 anos, segue em plena atividade e, como juíza da Suprema Corte Americana, é hoje um dos símbolos pop mais recorrentes dos Estados Unidos.

“Pode parecer senso comum, até banal, se falar que homens e mulheres devem ter o mesmo tratamento da lei. Mas, na década de 1970, isso era uma ideia radical. Havia leis que usavam o pretexto da proteção para discriminar as mulheres, tidas como cidadãs de segunda classe”, disse a americana Betsy West, codiretora, ao lado de Julie Cohen, do documentário A juíza, em cartaz desde esta quinta (23/5) no circuito brasileiro de cinema (no Recife, ainda não estreou, mas na internet é possível ter acesso ao filme, como neste link).

Depois da bem-aclamada estreia no Sundance Festival do ano passado, o documentário sobre a magistrada que moldou a paisagem legal norte-americana em favor dos direitos de mulheres, negros, LGBTs e outras minorias pode ser, enfim, visto pelo grande público do país. Jornalista tarimbada, dona de 21 prêmios Emmy por sua atuação na ABC News, Betsy West esteve no Brasil na última semana de abril, durante a Rio 2C. Na ocasião, a Continente conversou com a documentarista após a pré-estreia do filme na conferência internacional do mercado de criação e entretenimento que acontece uma vez por ano no Rio de Janeiro. “Juízes da Suprema Corte são muito discretos, o mais difícil foi ganhar confiança e acesso à sua rotina”, comentou West.



Como era de se esperar, no filme temos acesso à mulher por trás do mito, hoje um dos grandes símbolos do novo feminismo nos Estados Unidos. Em planos que alternam sua atividade nos tribunais aos raros momentos em que relaxa assistindo a espetáculos de ópera, sua paixão, ou ainda fazendo flexões nas sessões diárias de musculação, temos acesso a um retrato hiper-realista de uma mulher incomum. Cada fotograma magnetiza com mais intensidade nossa impressão sobre a juíza. Saímos da sessão como se íntimos de uma avó ou tia incrivelmente notável.

“Não é possível entender a ascensão da igualdade de direitos sem entender sua trajetória”, sintetizou a realizadora. A paciência conciliadora e estratégica, que sublinha o discurso estruturador da narrativa, foi e tem sido a grande arma da juíza Ginsburg. “Ela costuma dizer que mudanças duradouras só acontecem a um passo de cada vez”, disse West. Inspiração das ruas, Ginsburg é o oposto simétrico do ativismo ruidoso do asfalto. “Sua estratégia nunca foi desfilar a raiva pelas ruas, mas trabalhar internamente o sistema jurídico para garantir os direitos de forma legal. Sua mãe lhe ensinava que a raiva nos tira o melhor de nós”, comentou.

Depois de muitas abordagens para credenciar a confiança da personagem, as diretoras começaram a acompanhar a magistrada em 2015. “Nem sempre foi fácil acompanhar sua agenda”, contou West, ciente da ruptura com a pretensa isenção jornalística em sua abordagem. “No jornalismo, precisamos ser mais formalmente neutros. Num documentário, abrimos uma janela para um mundo particular.”



DOCUMENTÁRIO
Produção da divisão de documentários da CNN com distribuição da Magnólia Filmes, além de reverenciar o ícone pop incomum, o filme lança novas luzes sobre o mercado de narrativas “da verdade”. “Hoje, alguns documentários já possuem orçamentos de mais de US$ 10 milhões nos EUA. Isso não existia antes. Há mais interesse do público também. Os documentários estão nas salas comerciais.” A juíza teve pouco mais de US$ 1 milhão em custos. “O que não significa que não tivemos dificuldades de orçamento, tivemos sim”, lembrou.

Em seu livro mais clássico, O espírito do tempo, o sociólogo e antropólogo francês Edgard Morin estrutura a tese de que determinados produtos da indústria cultural emergem atrelados a um corpo específico da psicologia social. Mesmo que por antítese. Quando o filme começou a ser feito, Trump ainda não era presidente. Com o acúmulo dos fatos oficiais, a figura de Ginsburg foi ganhando musculatura como voz dissonante, progressista e democrata. As controvérsias do presidente acabariam por gerar mais interesse sobre a Suprema Corte e seu poder de veto aos projetos de lei presidenciais.

Sua atuação na suprema corte ganhou ampliação pelos canais hoje obrigatórios para a popularização de discursos. Há uns pares de anos, surgiram memes na internet associando a figura da juíza a do barulhento norte-americano Christopher George Latore Wallace, o Notorius B.I.G, assassinado em 1997, em Los Angeles, aos 24 anos, depois de classificado pela Billboard como o mais contundente rapper de todos os tempos. Nos EUA, o documentário sobre a juíza teve o título original de Notorius R.B.G. Calma, de voz branda e firme sobre a toga indefectivelmente adornada pela gola bordada, a juíza Ginsburg estava lá.

“O filme tocou num nervo. Ginsburg inspirava e estabelecia um padrão renovado de decência”, observou a diretora. Não demorou para que ocupasse o posto de símbolo do novo feminismo, com salas lotadas para ouvir sua falas. A juíza Ginsburg foi motivo de debates em centros de referência como a Women's March Detroit, a Harvard School Law, NYU School of Law e Columbia Law School.

No Brasil, além da exibição na Rio 2C sucedida de um debate, houve outra audiência especial. Enquanto esperavam a liberação da licitação para compra de lagostas, vinhos premiados e outros artigos de primeira necessidade no serviço de bufê estimado em mais de R$ 1 milhão, os ministros do Supremo Tribunal Federal tiveram, na primeira semana de maio, em Brasília, uma
sessão do documentário A juíza.

Recentemente, os cinemas do Brasil foram ocupados por Suprema, a bioficção estrelada por Felicity Jones. Dona de um Oscar de melhor atriz pela atuação em Theory of everything e protagonista de Star Wars: rogue one, a estrela deu corpo à trajetória da jovem Ruth Ginsburg ainda nos tempos da advocacia. Um dos documentários mais vistos nos EUA no ano passado, este ano A juíza recebeu duas indicações ao Oscar: melhor documentário e melhor canção original. Tornou-se um produto inesperadamente rentável. Estreou em 34 cinemas e, na semana seguinte, já ocupava 150 salas. Na posterior, 300 salas. Os Estados Unidos tinham, enfim, um novo ícone para chamar de pop.


Cena de Suprema, a bioficção. Foto: Divulgação

“Após meia hora de conversa com ela, tinha a certeza de que precisava nomeá-la”, diz, no filme, o então presidente Bill Clinton. Em 1993, Clinton usou a caneta para oficializar sua nomeação como a segunda mulher a entrar na Suprema Corte Americana.

BIOGRAFIA
Ruth Bader Ginsburg nasceu no distrito nova-iorquino do Brooklin, em 15 de março de 1933. Aos 21 anos, se casou com o advogado Martin D. Ginsburg, homem cujo humor, leveza e dedicação seriam fundamentais como reserva de força em sua trajetória. “Eu não teria chegado aonde cheguei se não tivesse tido a parceria de um homem que sabia que eu deveria chegar”, diz ela no filme. Com ele, teve dois filhos: Jane e James.

Diplomada pela Universidade de Cornell, frequentou a Escola de Direito da Universidade de Harvard e fez doutorado na Escola de Direito da Universidade de Columbia. Entre 1959 e 1961, seria assistente do juiz nova-iorquino e admirado progressista Edmund L. Depois, sócia-diretora do Projeto da Escola de Direito de Columbia sobre Processos Internacionais.

Não é acaso que o documentário tenha sido indicado também ao Oscar de melhor canção original. A música, levemente emotiva, está sempre lá para sublinhar as vitórias de Ginsburg. Enquadrada na ideologia da winners culture, ou “cultura dos vencedores”, a juíza Ginsburg é retratada sempre através de suas conquistas. “Não é que tenha evitado colocar as derrotas da juíza Ginsburg no filme”, explicou West. “Ao final de quilômetros de material captado, nossa tarefa era eliminar o material chato.”

Closes, silêncios e momentos de humor são alternados para humanizá-la. Como quando, em casa, aparece dando gargalhadas de sua caricatura feita pela comediante Kate McKinnon's no programa Satudays Night Life. No filme, mesmo quando cochila numa sessão da corte diante das câmeras, Ginsburg é incansável.

Entre os anos de 1960 e 1970, por exemplo, Ginsburg usou seu poder de persuasão em diversos casos para flexibilizar a constituição em favor das mulheres. Obrigou uma multinacional a equiparar o salário de executivas a executivos. Forçou uma conservadora escola militar do Sul a admitir mulheres em suas bancas – ao final do filme, numas das cenas mais lacrimosas, ela aparece como homenageada por homens e mulheres compartilhando a farda da mesma escola. Num gesto aparentemente controverso, atuou para que o jovem viúvo tivesse direito à licença “maternidade” após a morte da esposa durante o parto. Suas vitórias gerariam jurisprudência.

Exemplo do consenso como comportamento estratégico é sua amizade com o ultraconservador Antoni Scalia na Suprema Corte. Pelo impacto causado na paisagem legal norte-americana, inspiração para outros corpos legislativos no mundo, Ruth Ginsburg aparece no documentário como uma das figuras mais influentes do séculoXX que vai moldando o XXI. Um retrato sensível, íntimo, assumidamente parcial e, em quaisquer aspectos, magneticamente informativo de uma grande mulher de um metro e meio de estatura.



BRUNO ALBERTIM, jornalista, antropólogo e escritor. Autor da biografia Tereza Costa Rêgo: uma mulher em três tempos.

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