Resenha

A humanidade de 'Vidas secas' em forma de bonecos

Espetáculo reexperimenta, no palco da Caixa Cultural, o clássico da literatura brasileira escrito por Graciliano Ramos, investindo em elementos como o silêncio e a plasticidade

TEXTO Paula Mascarenhas

18 de Janeiro de 2019

Montagem da Caravan Maschera Teatro se inspirou na série de pinturas 'Retirantes', de Portinari

Montagem da Caravan Maschera Teatro se inspirou na série de pinturas 'Retirantes', de Portinari

Foto Tamirys Zago / Divulgação

Os badalos agudos do sino e a catingueira murcha anunciam a seca. Com ela vem a sede, a fome, a impotência. A seca chega, e tudo o que é vivo se vai. O movimento de fuga revela uma esperança, talvez um consolo para a aridez da vida. No Sertão, a natureza torna-se paradoxal: dá e tira, embrutece e humaniza.

E é assim, essencialmente humano, que o espetáculo de bonecos Vidas secas, da companhia Caravan Maschera de Teatro se desvela. Inspirada na clássica obra de Graciliano Ramos, publicada em 1938, a peça recorre a um tema que se comprova inesgotável e também atual: a vida do retirante que enfrenta as agruras da estiagem severa no semi-árido nordestino.

A partir de um hibrído entre o teatro de bonecos e as artes plásticas, a montagem se apropria esteticamente da complexidade poética e simbólica de Graciliano e, propositalmente, a desapropria. O silêncio é escolhido como o elemento transformador. Os diálogos, que já são escassos no livro como um efeito da brutalidade da seca naquela família de retirantes, foram totalmente deixados de lado no espetáculo. As dores de Fabiano, Sinhá Vitória, seus dois filhos e de Baleia são representadas sob o silêncio, capaz de realçar a inocência e a dureza de seus atos.


Foto: Tamirys Zago/Divulgação

Inspirados pela série de pinturas Retirantes, de Candido Portinari, os bonecos são raquíticos, têm as costelas salientes e barriga d’água. A ausência de palavras da peça se contrasta com a intensificação do seu aspecto visual. Embora tenha um cenário simples (para realçar a pobreza e a simplicidade da vida sertaneja), os bonecos, as máscaras e as marionetes não só ganham vida com a atuação singular de Giorgia Goldoni e Leonardo Gonçalves, criadores e produtores do espetáculo, como também se potencializam com a iluminação árida e crua e o constante contraste entre luz e sombra – baseados na obra do fotógrafo Sebastião Salgado.

Assim, as passagens marcantes da trama de Vidas secas, como a dificuldade em lidar com o sustento familiar em meio a desejos e sonhos interrompidos pela extrema situação de miséria, são narradas exclusivamente através da arte dos bonecos, encorpada pela luz, pelo movimento corporal e pela quase ausência de sonoplastia.

São estes personagens, com suas texturas ásperas, seus olhares desesperados e suplicantes e seus gestos surpreendentes que nos relembram, a todo momento, aquele sentimento angustiante causado pela história original. Entre as inúmeras sensações possíveis de serem vivenciadas com o espetáculo, a angústia é certeira. É o poético retrato da impotência humana, cuja espera por alguma ação piedosa, ou por uma trégua da natureza, torna-se a única opção de vida.


Foto: Tamirys Zago/Divulgação

Nesse sentido, Giorgia Goldoni e Leonardo Gonçalves, que criaram Vidas secas em 2015 e já viajaram o Brasil e a Europa com o espetáculo, reforçam, em entrevista à Continente, que a intenção da montagem é reviver a obra de Graciliano a partir de novas sensações, sentimentos e memórias. “Queremos que o público se despoje de qualquer pensamento lógico ou racional sobre o espetáculo, de modo a permitir que a sua subjetividade interprete não só as experiências sensoriais vividas pela seca e pela miséria, mas, principalmente, pela beleza da complexidade humana”, destacam eles.

O espetáculo está em cartaz na Caixa Cultural Recife, de quinta a sábado (24/1 a 26/1), às 18h e às 20h. Mais informações no site da instituição.

PAULA MASCARENHAS é graduada em Letras pela UFBA, estudante de Jornalismo pela UFPE e estagiária da Continente.

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