Desde sempre, Otto procurou conceituar seus discos. Em geral, com temas humanos, mais universais. Em Canicule sauvage, o “mote” não se concentra no que diz o disco, mas, sim, nesse processo de feitura. Parafraseando e adaptando Glauber Rocha: “Um GarageBand na mão e muitas ideias na cabeça”. Dessa forma, Otto conta que compôs, durante o período pandêmico, quase 300 músicas. Dessas, 10 (mais a vinheta de uma delas) entraram em Canicule sauvage.
Canicule é uma expressão francesa e refere-se a “canícula”, um fenômeno climático que, no Hemisfério Norte, ocorre entre julho e agosto, no verão. É um período de ondas de calor intenso, que, entre severo desconforto térmico e desidratação, pode até mesmo causar óbitos. Trazendo para a língua portuguesa – e ainda mais para o bom e velho “pernambuquês” –, é o que chamamos de “calor do cão”. “É a chapa da Terra esquentando”, conta Otto. “É esse fenômeno do Planeta Terra, a Terra esquentando”, continua. “Mas é também a chapa quente da política, da política do mundo, a guerra que tá lá fora e também aqui no Brasil, com esse desgoverno. É um panorama do mundo, hoje.”
PROCESSOS
“O GarageBand é meu pandeiro, agora”, anuncia o músico. “Eu não toco instrumento físico (exceto percussão), mas no GarageBand eu mando ver. Nele, eu fiz os beats, toquei guitarra, baixo, sintetizadores”, conta Otto à Continente sobre o processo de composição de Canicule, que ele já vinha pensando em produzir há, pelo menos, três anos, quando já dava seus primeiros passos no manuseio do aplicativo. “Eu fiz músicas desse disco em avião, fiz música deitado na minha cama, em casa”.
Para contribuir com esse laboratório inventivo, Otto convidou o velho amigo e produtor Apollo Nove, o que acabou sendo, também, um reencontro entre ambos. Apollo produziu o supracitado Samba pra burro, além de Condom black e Sem gravidade (coproduzido com Pupillo), os três primeiros álbuns de Otto. Coube a Apollo dar um panorama, burilar o conjunto de ideias trazidas por Otto e, também, criar junto ao pernambucano, lançando mão de um arsenal eletrônico poderoso, com Korgs, Rhodes, Arps, DX5, Hammond, Minimoogs etc. Canicule sauvage tem, então, sua produção assinada por Otto e Apollo Nove.
CONVIDADES
Dentro desse processo, Otto conta que 60% de Canicule sauvage foi feito no GarageBand. Há faixas – como Você prá mim é tudo, Candura e Há tanta gente que se abre – em que todo o instrumental é tocado apenas por Otto e Apollo. Mas a sonoridade do álbum não se concentrou apenas neles. Há diversos músicos convidados para dar seu “molho orgânico” ao disco. Alguns, como Pupillo, são velhos conhecidos de Otto. O baterista – que também acompanhou e produziu os discos do galego desde Sem gravidade – está presente em quatro faixas e, segundo Otto, já tem cadeira cativa para o próximo álbum, mal acaba de sair este.
Capa do álbum. Imagem: Divulgação
Outro pernambucano que participa de Canicule sauvage é o cada vez mais onipresente Juliano Holanda, com violões nas faixas Tinta e na vinheta de Anna. Também compõem o instrumental do álbum os músicos Malê e Michelle Abu, nas percussões das faixas Canicule e Anna, que também contam com a bateria de Samuel Fraga. Em Canicule, quem também deixou sua marca foi o baixista Douglas Couto.
Nas vozes, são muitos os convidados... especialmente, convidadAs. Um verdadeiro time feminino divide os vocais com Otto. Ana Cañas canta em Menino vadio, composição em parceria com o pernambucano. Tulipa Ruiz é também coautora e participa da faixa Tinta. Brasiliense radicada em Londres, Nina Miranda – nome à frente do grupo londrino Smoke Citty – está em Anna e na vinheta desta música. Kenza Said e Anais Sylla são as vozes em Canicule. E a cantora e atriz baiana Lavínia Alves, companheira de Otto, canta em quatro faixas: o single Peraí, seu moço, e, também, Você prá mim é tudo, Decidez e Há tanta gente que se abre. “Eu tenho o maior respeito às vozes femininas, de interpretação, de carga emocional. Musicalmente, a mulher é porrada! A voz feminina é maravilhosa e eu tenho a sorte de ter essas pessoas por perto”, declara Otto. A parcela masculina nas vozes coube a Lirinha, que tece sua poesia em Candura, e ao caruaruense Junio Barreto, em Bole mexe.
SONORIDADE HÍBRIDA
Canicule Sauvage abre com ares de Serge Gainsbourg. Os versos em francês “Canicule tu vas me rafraîchir/ Canicule tu ne vas pas me brûler/ Canicule sauvage”, da faixa Canicule, são falados/sussurrados por Otto, ornado pelas vozes de Kenza e Anais. “Já é uma homenagem à influência francesa na minha vida. Gosto muito da França, morei lá de 1989 a 1991. O francês é minha segunda língua. E eu gosto de Gainsbourg também. Canicule é uma chanson française, é assumidamente Gainsbourg.”
Canicule é a música do disco com mais “elementos humanos” tocando instrumentos, praticamente uma banda completa, diferente das outras músicas, em que o caráter eletrônico/digital é bem mais proeminente, porém, sem soar como “música eletrônica” ou algum de seus subgêneros. “Eu nunca colei em algum estilo. Eu sou um cara que, musicalmente, gosta de fazer tudo: um rap, um samba, uma ciranda. Cada música tem um caminho próprio. Quanto mais simples eu penso, mais flui”, explica Otto, que faz seus sambas, suas cirandas e seus rocks independente do instrumento que empunhe. Um exercício de liberdade e experimentalismo que ele “impôs” mais radicalmente neste disco.
Vale aqui destacar que Apollo Nove foi essencial para dar a liga a este híbrido entre o digital e o orgânico. “A gente tem uma conexão criativa muito boa. Precisei muito dele neste disco, e a gente criou muito. Dos sintetizadores, a gente criou coisas juntos. E Apollo sabe tudo: sabe cantar, produzir, editar, a porra toda”, exalta Otto o coprodutor e parceiro de longa data.
Ao longo do disco, podemos ouvir uma balada, como é o caso de Você prá mim é tudo, ou uma música “oitentista”, Decidez; podemos trafegar por paisagens mais etéreas, a exemplo de Menino vadio, ou dançar na pista, ao som dos beats de Candura e Há tanta gente que se abre, e do agito pop de Bole mexe, que encerra o álbum.
Canicule sauvage já estava nos palcos antes mesmo de ser lançado. O artista estreou o show no início de março, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. Também já passou pelo Circo Voador, no Rio de Janeiro. A banda que ele montou para o projeto é Maurício Fleury (teclados), Meno Del Pichia (contrabaixo), Michelle Abu (percussão), Malê (percussão), Gui (guitarra), Samuel Fraga (bateria) e Lavínia Alvez (voz/vocais). “Eu já faço o disco pensando no show. Eu vou pro groove, pro batuque, pro balanço. As percussões, mesmo as que não têm no disco, se adaptaram muito bem no show”, celebra Otto.
Aos 54 anos – idade que relembrou por diversas vezes durante nossa entrevista –, Otto orgulha-se de estar conectado com o que ele prenuncia como a nova forma de se produzir música no mundo, pela juventude. “Esse disco é pancada. Eu tocando vários instrumentos... é a minha música mais pura, minha música mais real. É um novo começo”. Do pandeiro para o GarageBand, em um mergulho sem medo de criar e de arriscar o que lhe é novo, Otto sentencia, em tom metafórico: “O Deus agora é digital”.
LEONARDO VILA NOVA, jornalista e músico.