Resenha

'Fevereiros', um discurso a favor do respeito

Ao unir Maria Bethânia, Carnaval, Mangueira e religião afro, Marcio Debellian lança luzes, em seu novo documentário, à tolerância e à beleza de uma identidade brasileira pautada pelo Nordeste

TEXTO Mateus Araújo

19 de Fevereiro de 2019

A cantora Maria Bethânia em 'Fevereiros'

A cantora Maria Bethânia em 'Fevereiros'

Foto Divulgação

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Em 1º de fevereiro de 2015
, Maria Bethânia subiu ao palco montado na praça central de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, para cantar. Era uma noite movimentada na pequena cidade de 61 mil habitantes, véspera do dia da padroeira Nossa Senhora da Purificação. Naquele mesmo ano, no dia 13 de fevereiro, Bethânia completaria 50 anos de carreira – data de sua estreia no espetáculo Opinião, no Rio de Janeiro.

A apresentação na cidade natal tinha um repertório especial, improvisado para a ocasião, no qual ela compilava clássicos de cinco décadas mais outras músicas que a comoviam, como ela diria. Era como se Bethânia tivesse pegado o microfone na festa de casa e assumido o show. “Fui fazendo com a vontade de cantar ali; não pensei em efeito. O que eu queria dizer em Santo Amaro eu disse”, contou em entrevista que eu fazia para o Jornal do Commercio, dois dias depois.

Àquela época, também estava em Santo Amaro fazendo matéria sobre a efeméride da carreira de Maria Bethânia, e acompanhei a apresentação. De todas as vezes que a vi cantar, aquele momento foi, sem dúvida, o mais marcante. Bethânia estava cantando em casa. E como num ciclo de quem volta às suas origens, cantava para seus conterrâneos, para sua família e, sobretudo, para sua mãe, Dona Canô.



“Minha mãe é uma mulher tão especial. O espírito dela se mantém com a aquela luminosidade. Viveu 105 anos com lucidez, educando, ensinando e aprendendo”, contou Bethânia, durante a conversa. “Particularmente, se eu respirar, junto vem a saudade que eu tenho dela. A falta. Mas aprendi com ela que a vida é dádiva e que não se pode tratar com menosprezo seus amores, alegrias. Há um elo muito maior que tem que ser antes de tudo vivido. Aceitei fazer o show em Santo Amaro, mesmo ela não estando fisicamente ali. Mas ela estava no meu desejo de que ela me ouvisse. Estava dentro de mim. Eu saí do seu ventre e hoje ela habita dentro de mim.”

Ao assistir a Fevereiros, documentário dirigido por Marcio Debellian, em cartaz nos cinemas brasileiros, incluindo o São Luiz, no Recife, revisitei a lembrança daquele momento tão singular de Maria Bethânia em Santo Amaro da Purificação. Não que o filme resgate aquela apresentação, mas retrata, de forma até então inédita, a relação da cantora baiana com a família, as suas origens e a fé, à luz do sincretismo, da festividade e do Carnaval. Relação esta que passa, invariavelmente, pela cidade-clã dos Velloso.

Com imagens emotivas e entrecortado por músicas, o documentário constrói-se em camadas. A mais superficial delas é a abordagem do desfile vencedor da Mangueira de 2016, no qual a escola de samba carioca homenageou Bethânia com o samba-enredo A menina dos olhos de Oyá. O diretor nos oferece um apanhado do trabalho de criação e confecção das alegorias, o desenho das alas e o meticuloso processo criativo do carnavalesco Leandro Vieira, então estreante na Mangueira. Afora a curiosidade dos bastidores, como o fato de a própria Maria Bethânia ter escolhido o figurino que usaria na Sapucaí, a abordagem se torna logo subjacente.

É na linha da subjetividade que o filme encontra poesia e se revela potente. Ao nos apontar o novelo que une o Carnaval, Bethânia e a Mangueira, o diretor lança luz para a identidade do Nordeste do Brasil e a religiosidade do nosso povo. Existe um elo forte entre a Estação Primeira e o povo nordestino, que inspirou, por exemplo, Caetano Veloso a escrever: “A Mangueira é onde o Rio é mais baiano”. Também pudera. Desde 1932, a agremiação carioca fez ao menos oito sambas-enredos com referência direta à cultura nordestina – inclusive, a última vez que havia ganho o Carnaval, antes de 2016, fora em 2002, com o tema Brazil com 'Z' é pra cabra da peste, Brasil com 'S' é nação do Nordeste.



Com Maria Bethânia, porém, a Mangueira toma outros rumos. Adentra no sincretismo, ambiente de convívio harmônico entre as religiões de matriz africana, as tradições indígenas e o catolicismo. Devota de Nossa Senhora, consagrada a Iansã e descendente de índios pataxós, a cantora personifica o Brasil de muitos credos num só. Em casa Bethânia cresceu com formação católica, mas convivendo com os toques e cerimônias de candomblé, com a cura através das folhas e plantas medicinais, e até mesmo cantando a poesia crente do irmão ateu, Caetano. Ele, por sinal, sintetiza a irmã, em entrevista logo no início do documentário, como a “textura que veicula sentimentos e inteligência intensos e imediatos”, e diz que, com o passar dos anos, ela “virou culta de si mesma”. Os depoimentos de Caetano, aliás, são extremamente preciosos. Ele transita entre as memórias de família a intimidades religiosas, como o fato de ter feito, junto com a irmã, os preceitos religiosos de iniciação no candomblé, porque, segundo a yalorixá Mãe Menininha do Gantois, os dois são a mesma pessoa.

O diretor encontra unidade no próprio título que deu ao documentário. “Fevereiros”, no plural, dá sentido à amplitude de um mês que acolhe festas profanas e religiosas, bem como interliga o país continental através das variadas manifestações populares do Carnaval. Assim – pelo santo e pela festa – o Rio se liga à Bahia, e não dificilmente achamos também o elo entre as dores e dissabores que se é viver na favela ou na aridez dos tempos difíceis sem deixar de lado, porém, a capacidade de se reinventar e sorrir. É também fevereiro o mês em que todos os filhos dos Velloso voltam a Santo Amaro para a festa da padroeira, uma tradição que Maria Bethânia explica no documentário como sendo regra do seu pai, José.

Marcio Debellian tem definido o filme como um olhar sobre o Brasil tolerante às religiões, contraposto ao crescente e exacerbado fundamentalismo cristão que nos segura as pernas. A fidelidade de Bethânia à sua fé reforça a beleza de um discurso a favor do respeito.

MATEUS ARAÚJO é jornalista, pesquisador, crítico de teatro e mestrando em Artes Cênicas pela Unesp.

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