Trecho de Angels in America, de Tony Kushner.
Sucesso do teatro noventista norte-americano, Angels in America, peça de Tony Kushner, levou mais de duas décadas para ser montada no Brasil em sua forma completa. Em 1995, dois anos após a estreia nos Estados Unidos, uma adaptação brasileira da primeira parte do texto, O milênio se aproxima, fora encenada em São Paulo sob a direção de Iacov Hillel, levando à cena atores como Cássio Scapin, João Vitti, Luís Miranda e Lúcia Romano. Agora é a vez da Armazém Companhia de Teatro empreender sua montagem, acrescendo a segunda parte da obra, Perestroika, que estreou na capital paulista, em maio, no Sesc Vila Mariana, e cumpre temporada até 28 de julho, no Rio de Janeiro, no Teatro Riachuelo.
Angels in America está inserida num fenômeno do teatro mundial chamado por pesquisadores de Aids Drama. Com a epidemia da síndrome imunológica que devastou a comunidade gay nos anos 1980, dramaturgos passaram a retratar tal temática em textos que se tornaram símbolos de uma era. “[A] Aids surgiu como uma provação para a comunidade gay, solicitando organização e posicionamento”, escreve o autor Newton Moreno, em pesquisa sobre o teatro e homossexualidade no Brasil, e um dos exemplos dessa tendência, no país.
Em Angels in America, por sua vez, Tony Kushner retrata a Aids articulada a outros temas como política, ética, religião e racismo. Na trama ambientada em 1985, o jovem gay Prior Walter (Jopa Moraes), infectado com o vírus HIV, é abandonado pelo namorado Louis Ironson (Felipe Leprevost), judeu e dito progressista. Enquanto convalesce com dores e marcado pela “mancha”, como o próprio personagem se refere às lesões da pele causadas pelo sarcoma de Kaposi, Prior recebe a visita do Anjo (Marcos Martins) que o anuncia como “mensageiro” e “arauto” de um novo tempo. Aquilo que a princípio nos parece uma alucinação, tão logo se transforma no dispositivo narrativo do espetáculo, a costurar, direta e indiretamente, diversos personagens que se cruzam em sonhos ou nas ruas e parques de uma Nova York com ares de Babilônia.
O drama de Prior, comum a muitos outros gays daquele período, se interliga a um tempo marcado pelo moralismo conservador nos Estados Unidos, àquela época governado pelo republicano Ronald Reagan – do mesmo partido do atual presidente Donald Trump. Apoiado por uma base eleitoral de cristãos fundamentalistas, Reagan ignorou o fato de uma epidemia de Aids assolar seu país, preferindo associar tal síndrome a um “castigo” divino à sodomia.
A Armazém criou uma encenação atenta a sublinhar as palavras do autor, enfatizando o caráter épico da obra. Assim, o diretor Paulo de Moraes dispõe de uma cena desnuda de grandes elementos cenográficos, com apenas dois bancos inseridos no palco e uma tela de projeção sobreposta ao centro, na qual são exibidas imagens que nos ajudam na contextualização das situações menos realistas. Na segunda parte da peça, os bancos, que a princípio estavam apenas no fundo do cenário, são reorganizados em paralelo, deixando o vácuo entre eles como espaço para se desenvolver a encenação – ampliando ainda mais as aproximações das subjetividades.
A engenhosidade como cada cena é costurada deixa evidente a teatralidade da peça, colocando em alguns momentos os atores a assistirem uns aos outros ou; noutros momentos, evidenciam a interligação entre as condições de sofrimento dos personagens abandonados e agonizantes.
Não se trata de um texto fácil; carregado, inclusive, de ironias. Decerto uma característica que, por um descuido, pode escorregar do sarcasmo para o humor desmedido. E se o ridículo do preconceito não é lido de forma contextualizada, como aquele das falas homofóbicas do advogado Roy Cohn, vira motivo de riso. Isso aconteceu, por exemplo, durante a apresentação da segunda parte do espetáculo, em cuja sessão à qual assistimos, na plateia, ouviram-se inúmeras e estridentes gargalhadas – inclusive de uma integrante da própria produção do teatro.
O deslocamento do tempo e a possível “falta de memória” que nos acomete com relação à epidemia da Aids, hoje uma síndrome com tratamento estabilizador, talvez justifique a apatia para com aquela realidade.
Embora fiel ao texto original, não à toa, percebemos as aproximações entre o tempo narrado por Tony Kushner e a nossa contemporaneidade – o que é um dos axiomas do épico, ao justapor presente e passado de forma a construir, através do arcabouço histórico político-social, reflexões sobre concepções de mundo. Isso é, o retrato distópico da era Reagan feito por Kushner soaria tão anacronicamente atual como no Brasil de Jair Bolsonaro: um país governado por uma coalizão de neoliberais e religiosos conservadores; um presidente que declara que o bem e o mal existem e que seu governo é um desígnio divino; o mundo à beira de um irreversível colapso ambiental e as minorias políticas e sociais assombradas pela desesperança, pelo estigma e pela sombra da morte. Justificativa potente para que tal montagem venha à baila neste momento azedo, em que o progresso se desfaz no conservadorismo.
A ligação entre os personagens se dá pela doença, vícios, política ou por afetos extremos. Foto: Mauro Kury/Divulgação
A preocupação de Tony Kushner nesse épico alegórico é não se esgotar a um campo interpessoal individual das personagens, como o faz o drama convencional, mas lançar luz sobre contextos imbricados no conjunto de todas as relações sociais. A ligação entre os personagens se dá pela doença, vícios, política ou por afetos extremos. A dialética dessas relações é o motor da narrativa, que aborda uma constelação de temas caros à civilização ocidental, como a teodiceia, as insanáveis contradições entre a lei e a justiça e o preço devastador do progresso.
A Aids e o buraco na camada de ozônio – este último uma preocupação recorrente da personagem Harper, viciada em ansiolítico – tornam-se metáforas de um mundo ciclicamente em desintegração, governado por uma plutocracia hipócrita e corrupta. Roy Cohn, figura histórica do macartismo – e retratado por Kushner como um homossexual enrustido e assolado pela Aids – é o zeitgeist da sua época e serve de antípoda para as demais personagens.
Embora igualados na condição de soropositivos, Conh e Prior ocupam lugares opostos em perspectiva subjetiva. Enquanto o profeta luta pela sobrevivência, apesar dos pesares, o advogado encara sua doença como mais um dos seus lobbies de poder.
No espectro político oposto, Louis é a personificação de um esquerdismo verborrágico e impotente, cheio de grandes discurso sobre o amor e a natureza da justiça, mas incapaz de lidar com o sofrimento e a decadência física do próprio companheiro. Nos diálogos com Belize, bicha negra e enfermeira, que enxerga no hospital em que trabalha o microcosmos cruel da América, ecoam as tensões identitárias da nossa época e a urgência de uma compreensão holística (ou intersecional) das opressões.
Diante do colapso iminente do mundo, o Anjo revela a Prior que a humanidade deve deter a marcha do seu progresso; parar de migrar e de se mesclar e assim destruir o vírus do tempo. A humanidade não avança, diz o Anjo, ela tropeça, sempre produzindo novas desgraças e afastando Deus da sua própria criação.
Essas palavras parecem vir diretamente da boca do Anjo da História, que Walter Benjamin descreve – a partir de um quadro de Paul Klee (Angelus Novus) – como uma criatura com o rosto permanentemente virado para o passado e com os olhos e boca escancarados diante das ruínas que se amontoam sob os seus pés. O Anjo gostaria de parar e reconstruir o que foi destruído, mas é arrastado com as asas abertas por um vendaval chamado progresso.
Ainda que seja também o retrato de uma época, Angels in America dialoga com o universal e com o momento presente ao questionar a própria humanidade diante de tempos sombrios. A história não tem um freio de mão, e o girar do mundo é irrefreável, responde Prior ao Anjo. Ele não nega que o futuro pode guardar apenas chamas e destruição, ou que o fim possa estar próximo. Aos anjos, reunidos em assembleia, tem apenas para dar o testemunho de resiliência, graça e esperança de incontáveis bichas que, sobrevivendo ou padecendo, enfrentaram a morte e o sofrimento de frente. E aí compreenderemos que ali o gay portador do HIV é o profeta dos novos tempos, a anunciar outras ordens sociais possíveis.
MATEUS ARAÚJO é jornalista, pesquisador, crítico de teatro e mestrando em Artes Cênicas pela Unesp.
PAULO MALVEZZI é advogado, mestrando em Filosofia pela Unifesp, atua com direitos humanos e justiça criminal.