FOTOS MARLON DIEGO
11 de Fevereiro de 2022
Pisar na areia é uma das experiências de quem visita o espaço de Lia de Itamaracá (acima), um museu que tem barulho de ondas e cheiro de maresia
Foto Marlon Diego
[conteúdo exclusivo Continente Online]
Há mais de seis décadas, a arte de Maria Madalena Correia do Nascimento leva o nome de Itamaracá para os quatro cantos do mundo. Seja em Pernambuco, no Rio de Janeiro, na Bahia ou até mesmo fora do Brasil, Lia de Itamaracá, com suas performances, interpela seu público a conhecer a ilha onde nasceu, foi criada e se fez artista. Mas, por muito tempo, quem visitasse o local por causa das músicas dela e procurasse um espaço que servisse de referência para conhecer profundamente a trajetória da artista, não encontrava. Agora isso mudou. Para a alegria de seus fãs e admiradores, desde novembro de 2021, a Embaixada da Ciranda tem sido esse lugar de encontros e conexão na ilha do litoral norte pernambucano. Funcionando de sexta a domingo, das 10h às 17h, o espaço agrega memórias e objetos que atravessam a carreira da rainha da ciranda, além de servir de palco para experiências artísticas e pesquisas em torno do gênero que faz parte da vida de Lia.
Ao chegarmos à casa onde está instalado o museu orgânico, na Praia de Jaguaribe, somos convidados a conhecer um tanto da intimidade de Lia de Itamaracá, através dessa que é a primeira exposição permanente dedicada à cantora, um dos nomes mais importantes da cultura brasileira. Não só a Embaixada, que fica próxima à beira-mar, como a presença do azul compondo o ambiente de fora a dentro, nos dá a certeza de que ali é o espaço dedicado à Lia e suas artes.
Com curadoria assinada pela artista visual Lia Letícia, pelo produtor Beto Hees e pela própria homenageada, a mostra é composta por vários elementos que aproximam o fazer artístico e a vida de Lia de Itamaracá não só aos que a visitam, mas também aos moradores de seu entorno. Afinal, foi no bairro de Jaguaribe que a artista se criou e onde tem maior envolvimento com a ilha. Tanto que é possível encontrar, na exposição, material de pesca utilizado por trabalhadores do mar recolhido perto dali e que faz parte da paisagem afetiva de Jaguaribe. A presença de um utensílio de um pescador, por exemplo, evidencia o constante diálogo da artista com a população local.
“A ciranda não tem preconceito. Dança preto, dança branco, dança pobre, dança todo mundo”, nos disse Lia de Itamaracá. Ela conversou com a Continente no terraço que fica do lado de fora da exposição, nas cadeiras de ferro e espaguete. Marlon, fotojornalista responsável pelo ensaio que acompanha esta reportagem, aguardava um casal completar sua visita para que pudesse fotografar a artista em meio ao acervo.
Assim que chegamos à Embaixada, fomos logo avisados pela própria Lia de que ela permaneceria de máscara durante todo o nosso encontro e, em mais de um momento da conversa, chamou atenção para o fato de que a pandemia ainda não acabou e ainda são necessários cuidados. Essa insistência não soa estranha para aqueles que acompanham sua trajetória, que, afora as várias formas de arte, também passa pelo ativismo político.
Além do cheiro de maresia, que chega à casa vindo da orla de Jaguaribe, outros sentidos são acionados durante a visita. Ao tirar nossos sapatos e pisar descalços na areia da praia, que colore o chão da exposição, nosso corpo é provocado a experimentar, de forma sinestésica, as memórias do que é se aproximar do mar. Durante todo o tempo em que estamos na sala, escutamos o barulho das ondas sendo transmitido pelos alto-falantes. Navegando pelas diferentes experiências que a visita nos instiga, somos transportados para a intimidade da artista, tanto em vídeos que compõem parte de sua história quanto naquela que talvez seja a parte mais intimista de toda a mostra.
Ainda no coração da sala, com nossos pés sentindo a areia da praia, temos a oportunidade de encontrar peças trazidas da própria casa de Lia, como uma imagem de Iemanjá e fotos de seu companheiro, Toinho, e de sua mãe, dona Matilde. Em outros momentos da mostra, estão presentes também alguns dos belíssimos figurinos utilizados pela artista em suas apresentações.
Quem acompanha a carreira de Lia de Itamaracá sabe que os vestidos confeccionados para ela são parte fundamental de sua performance e costumam, junto à sua voz e às suas canções, encantar o público toda vez que ela sobe ao palco. Aliás, as peças expostas ainda são utilizadas hoje em dia pela artista em seus shows, o que reforça o caráter vivo do acervo.
PROJETO
Essa ideia, de pensar num local que fosse vivo, em movimento, sempre esteve presente no projeto, desde a sua inauguração – inicialmente no Forte Orange, construção feita em pedra que remete aos tempos coloniais e é um dos pontos turísticos mais conhecidos de Itamaracá. As dificuldades que surgiram na utilização do prédio que, por sua condição de patrimônio histórico, restringia as possibilidades de intervenção para a montagem do material, também alimentaram a criatividade da curadoria. Em contraponto ao peso das pedras e da história que se faz presente através delas, surgiu a leveza de um material expográfico móvel, que carrega a fluidez da trajetória da artista e surge também, de acordo com a curadora Lia Letícia, como uma forma de materializar um contraponto à colonialidade arquitetônica.
“A expografia foi pensada enquanto uma ativação constante. Tanto por Lia de Itamaracá, essa artista que está sempre se desafiando enquanto artista, mas também pelos artistas que vierem a compor essa exposição a partir da obra de Lia. Tem esse desafio, de tentar mudar esse espaço, de ele nunca ser a mesma coisa”, afirmou Lia Letícia, em entrevista à Continente. “Tudo que a gente pensou tem a ver com essa multiplicidade de Lia e o nosso desafio foi criar peças e uma expografia que pudessem também ter esse dinamismo.”
A natureza móvel do acervo foi fundamental quando a exposição teve de ser deslocada do Forte Orange em direção a Jaguaribe, na casa-sede da produtora que acompanha o trabalho de Lia de Itamaracá há mais de duas décadas. Apenas 10 dias após sua inauguração, a Embaixada da Ciranda foi retirada do forte, numa decisão conjunta de Lia e equipe, em meio às dificuldades estruturais do prédio histórico e à falta de patrocínio e apoio logístico – todos os custos da elaboração da exposição foram bancados pela artista e por sua equipe.
Essa decisão, no entanto, também serviu para colocar Lia perto de onde tudo começou: Jaguaribe, bairro no qual a artista mora até hoje e onde fincou suas raízes na Ilha de Itamaracá e na cultura pernambucana. Além de não precisar mais lidar com as adversidades impostas por uma rígida e burocrática construção histórica, trazer Lia para Jaguaribe foi também como voltar para casa.
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Percorrendo o museu, conferimos ainda revistas das quais ela foi capa, e títulos como os de Patrimônio Vivo de Pernambuco, de Comendadora da Ordem do Mérito Cultural do Brasil e de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal de Pernambuco. Esses elementos expográficos dividem espaço com murais onde pode-se observar ainda atividades realizadas por Lia em escolas do Rio de Janeiro e de Pernambuco.
O reconhecimento de Lia aparece, na Embaixada da Ciranda, não como letra morta no papel, mas como potência de uma artista que é também educadora popular e realiza suas atividades pedagógicas expandindo sua história e seus saberes para gerações futuras. De acordo com a própria artista, essa é uma maneira de se manter conectada com as crianças, que nem sempre têm o entendimento e a dimensão da importância dos mestres da cultura popular. Agora que o espaço foi inaugurado, Lia pretende receber visitas de instituições de ensino.
Após caminhar pela areia e pela história da artista, é possível também contribuir com o espaço adquirindo CDs, além de camisas e ecobags com a imagem de Lia, confeccionadas em parceria com a artista visual Catarina Dee Jah. As vendas desses objetos, inclusive, contribuem para a manutenção do museu que, enquanto não encontra patrocinadores, segue sendo financiado pela própria produtora de Lia. Além disso, a própria venda dos ingressos (a R$ 20, inteira, e R$ 10, meia) ajudam nesse sentido.
Assim como a ciranda, que é parte fundamental da cultura de Pernambuco, a embaixada de Lia surge como um espaço que também acolhe todos os que chegam querendo fazer parte dessa roda. Ela é de Lia, sua equipe e de todos nós. A ideia é fazer do seu espaço um laboratório para pensar e viver a ciranda, junto ainda a outras cirandeiras e cirandeiros. A exposição evidencia o quanto a cultura popular não se distancia de nossas vidas; na verdade, ela está presente e viva enquanto existirem pessoas dispostas a costurar, celebrar e espalhar a sua história.
ANTONIO LIRA é jornalista, músico, pesquisador e mestre em Comunicação pela UFPE.
MARLON DIEGO é fotógrafo e videomaker formado em jornalismo pela UFPE
Extra | Assista a Lia falando sobre ciranda: