Os bastidores de O Agente Secreto
Filme pernambucano que consolida apuro técnico de Kleber Mendonça Filho, escolhido para representar o Brasil no Oscar, está em campanha de divulgação e exibição por vários festivais até sua aguardada estreia em 6 de novembro
TEXTO Luciana Veras
11 de Setembro de 2025
Foto CinemaScopio/Divulgação
Aquele que “faz ou traz”, do latim agens, ēntis a partir do verbo agĕre, de sentido “fazer, impelir, conduzir”, um agente pode ser quem “atua, opera, agencia” e “produz ou desencadeia ação ou efeito”, na definição do dicionário Houaiss. Na locução a intitular o mais recente filme do pernambucano Kleber Mendonça Filho, é alguém “encarregado de missão secreta” ou ainda um “espião”. Em todas as acepções, literais ou metafóricas, O agente secreto (Brasil/França/Holanda/Alemanha, 2025), escolhido pela Academia Brasileira de Cinema para representar o país na corrida ao Oscar, é a mais esperada estreia desta temporada nos cinemas brasileiros e, como tal, desembarca no país produzindo ação e desencadeando efeito: quatro meses após aclamação e láureas no Festival de Cannes, teve duas sessões de pré-estreia – com ingressos esgotados rapidamente – no Recife, no Cinema São Luiz e no Cineteatro do Parque, na quarta, 10 de setembro.
Foram as duas primeiras exibições públicas de O agente secreto em território nacional, depois de prêmios na França, aplausos em Portugal, Polônia, Austrália e mais troféus em Lima – mas não exatamente as sessões pioneiras em solo pátrio, posto que o realizador recifense e sua equipe foram recebidos por Luiz Inácio Lula da Silva e pela primeira-dama Janja da Silva na primeira semana de agosto para uma noite no Cine Alvorada, na residência oficial do presidente da República em Brasília. “Acredito que a escolha das primeiras salas ajuda a construir o caráter do filme”, argumenta Kleber Mendonça Filho em conversa com a Continente. “Com Retratos fantasmas (2023), o São Luiz estava fechado e fizemos a primeira sessão no Parque. Em Aquarius (2016) e Bacurau (2019), fizemos no São Luiz. O Recife tem essas duas salas espetaculares do passado, que fazem parte da nossa vida afetiva, e elas ainda estão a uns 250m de distância. É impressionante”, acrescenta o diretor.
O São Luiz não foi apenas o epicentro afetivo do qual há de se irradiar esta quarta ficção do cineasta (contando Bacurau, codirigido com Juliano Dornelles): o icônico patrimônio inaugurado pelo grupo exibidor Severiano Ribeiro nos anos 1950 é locação de O agente secreto. É lá que o protagonista Marcelo (Wagner Moura), que chega ao Recife em 1977, é recebido por Seu Alexandre (Carlos Francisco, de Bacurau), projecionista da sala e avô do seu filho, que lhe possibilita um espaço seguro para uma reunião com Elza (Maria Fernanda Cândido) e Waldemar (Thomás Aquino) sobre possibilidades de fuga do país: pesquisador, homem da Ciência, ele é perseguido por um status quo que lhe vê como ameaça. São anos de “pirraça”, na palavra escolhida por Kleber para ilustrar na ficção o que nossa História define como os “anos de chumbo” da ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985.
Marcelo é acolhido por uma comunidade na capital pernambucana onde Dona Sebastiana (Tânia Maria, figura luminosa também presente em Bacurau) é peça fundamental numa engrenagem de resistência. Ao menos lá, entre flertes com Cláudia (Hermila Guedes, de O céu de Suely, de Karim Aïnouz) e reflexões sobre exílio com Tereza Vitória (a atriz portuguesa Isabél Zuaa, de Joaquim, de Marcelo Gomes), ele se sente protegido. “O nosso é um grupo de refugiados políticos. São pessoas diferentes que se unem naquela vila. Em momentos distópicos, o sentido de coletividade talvez seja o mais bonito de todos”, comentou Wagner Moura na coletiva do Festival de Cannes. “É curioso que, no filme, aquelas pessoas, sobretudo o personagem que eu faço, só querem se manter fiéis aos seus valores de dignidade de caráter. Eu dirigi Marighella (2019), um filme sobre uma pessoa que lutou contra a ditadura, mas em O agente secreto o Marcelo só quer viver com os seus valores… Que isso vire um perigo de vida, e que a ameaça emane do poder, é muito triste e terrível”, elaborou o ator baiano radicado há muito nos Estados Unidos.
Na entrevista que deu à Continente ainda em Cannes, Kleber Mendonça Filho sustentou que o enredo do seu “thriller político”, como o filme vem sendo divulgado pela distribuidora Vitrine Filmes, foi concebido e lapidado para Wagner Moura: “Foram quatro anos trabalhando no roteiro, que escrevi com ele em mente”. No festival que lhe rendeu o prêmio de melhor diretor e deu a Wagner o troféu de melhor ator, ambos os feitos inéditos no cinema brasileiro, a alegria da dupla era perceptível. “Se Kleber fosse fazer Chapeuzinho Vermelho, eu iria fazer com ele”, brincou Wagner. “Nossa aproximação começou menos pela arte e mais pela política. Nós nos conectamos como artistas para poder se posicionar e ajudar um ao outro a dar uma resposta quando a academia, a universidade, a imprensa e os artistas eram atacados no Brasil. É maravilhoso e libertador voltar ao Brasil e atuar em português, algo que desde 2012 eu não fazia. Depois de viver Pablo Escobar em Narcos, de Marighella, da pandemia e de um governo fascista, este é o filme mais brasileiro possível para mim”.
Dividida em três capítulos - O sonho do menino, Institutos de identificação e Transfusão de sangue – e estruturada com o domínio técnico que caracteriza o cinema de Kleber, a narrativa de O agente secreto empolga, surpreende, captura e mobiliza o público a mergulhar em um tour de force no qual elementos pernambucanos ao extremo (Carnaval no centro do Recife, tubarões, a Perna Cabeluda) se mesclam a aspectos indissociáveis do passado recente do país (policiais com licença para matar, corrupção institucionalizada) e a temas recorrentes na obra do realizador: a memória e o que fazemos dela, as insubordinações possíveis em tempos de opressão, a coragem de se rebelar e buscar conexões afetivas mesmo diante da mais inominável das violências. “Ainda estou tentando entender o filme, mas sei que tem uma personalidade forte”, resume o diretor.
Um dos aspectos marcantes desta “personalidade forte” é a sintonia do elenco. Embora Marcelo seja motor e catalisador das ações, e para tanto Wagner confere peso, gravidade e por vezes bom humor na dose apropriada, há diversos satélites em sua órbita, movimentando o fluxo dramático ao seu redor. Gabriel Leone, Robério Diógenes, Ítalo Martins, Buda Lira, Suzy Lopes e Alice Carvalho, entre outros, criam um ecossistema do qual brota, e se mostra crível, não apenas o Recife de 1977 (com destaque para o apuro da composição imagética e da reconstituição de época decorrentes do trabalho da russa Evgenia Alexandrova na direção de fotografia e de Thales Junqueira e Rita Azevedo, respectivamente, à frente dos departamentos de arte e figurino) mas também pessoas em suas encruzilhadas e contradições.
Em uma participação crucial, Alice Carvalho vive Fátima, cuja fibra remete a outras mulheres altivas que ela interpretou, a exemplo de Joaninha no folhetim Pantanal, Otília na novela Guerreiros do sol e Dinorah na série Cangaço novo. “Todas essas personagens só foram grandiosas pelas parcerias: Irandhir Santos e Vladimir Brichta, Alinne Moraes e Isadora Cruz, Allan Souza e Thainá Duarte. No filme, tive a sorte de encontrar um outro grande parceiro e também depositar nele um pouquinho da minha devoção. Tenho devoção por trabalhar em grupo, só sei andar de mão dada. Fátima se faz grande na nossa frente num momento em que defende as pessoas que ama e essa característica dela fica forte em mim. Ela é uma intelectual, idealista, mas antes de tudo é a parceira de pesquisa de Marcelo e mais uma grande brasileira naqueles tempos de pirraça”, comenta a atriz potiguar, que passou pouco tempo no set (“adoraria ter tido mais, ficar perto, jogar muito junto”) mas imprimiu uma presença firme na tela. “Quis marcar com tintas fortes a presença dentro e fora da cena para também sublinhar o peso da ausência”, afirma à Continente.
Em Cannes, tanto Maria Fernanda Cândido como Isabel Zuáa e Gabriel Leone enfatizaram o “sentimento de pertencer” e o compasso “no mesmo tom” do elenco. “Achei que tinha feito uma participação, mas sinto uma democracia na participação e um balé muito democrático na montagem. Todas as pessoas ajudaram a contar a história do personagem principal”, destacou Isabel, ressaltando o trabalho de edição de Eduardo Serrano e Matheus Farias, parceiros habituais do diretor. Já para Thomás Aquino, revelado para o cinema como Pacote em Bacurau, o filme há de ser “estudado”. “É um filme que representa a cultura nacional e que mostra o que somos capazes de fazer. Espero que seja visto, estudado e discutido e que seja um caminho de olhar com um olhar outro para a história que foi vivida. Acredito que temos muito a aprender sobre sociedade e política social”, opina o ator pernambucano.
O agente secreto é uma produção da CinemaScópio assinada por Emilie Lesclaux, parceira de Kleber Mendonça Filho na arte e na vida, mãe dos gêmeos Tomás e Martin e a condutora de uma orquestra de números superlativos. Quando a Continente visitou o set em agosto de 2024, numa noturna rodada no Hospital Evangélico, na Torre, havia centenas de pessoas na locação. “Foram 14 semanas de trabalho, 10 semanas de filmagens com toda a equipe e o elenco, e cenas em que tínhamos muitos figurantes, às vezes até com 150 pessoas para vestir. Fora os carros de época e as sequências de parar tudo para filmar no centro do Recife. Tivemos o apoio do poder público e de instituições como a Universidade Federal de Pernambuco”, detalhou a produtora.
Sobre o orçamento, ela opta pela reserva, mas diz que os recursos no Brasil vieram do Fundo Setorial do Audiovisual e que os coprodutores estrangeiros – MK Productions (França), Lemming (Holanda) e One Two Films (Alemanha) – entraram com verba e serviços, como a garantia de lentes específicas da Panavision, escolhidas a dedo pelo realizador para criar textura e subjetividade. “A cor de O agente secreto você não vê muito nos filmes hoje, não é? Queria trabalhar com lentes de 60 anos de idade, que trazem um certo look, uma certa distorção. Muita gente jovem não usa porque acha que é ruim. Não, ela não é ruim. Ela tem personalidade”, constata Kleber Mendonça Filho.
De novo ela, a “personalidade”: de uma filmografia; de um modo de produção; de uma maneira de enquadrar o Recife e pensar o Brasil; da trilha sonora composta por Mateus Alves e Tomaz Alves de Souza; da condução do elenco nos ensaios e nas filmagens também pelos diretores assistentes Fellipe Fernandes e Leo Lacca; do som direto captado por Pedrinho Moreira e Moabe Filho; da edição de som por Tjin Hazen; e da mixagem por Cyril Holtz, que também equalizou o som em Bacurau. E também na forma de imaginar o melhor cenário para gerar expectativa e cativar a audiência daqui até 6 de novembro, quando O agente secreto estreia oficialmente nas salas de todo o Brasil.
A Vitrine Filmes trouxe 100 exibidores e donos de sala para assistir ao filme no São Luiz na manhã do dia 10. “Além de ser histórico, é uma locação do filme e de Retratos fantasmas e um cinema que faz parte da cinematografia do diretor. Depois, o grupo todo visitou locações de O agente secreto, Aquarius e também dos curtas de Kleber, em um roteiro bem cinematográfico, e também participa da sessão para o público e da festa. É a primeira vez fazemos um evento dessa grandeza no Recife, totalmente de acordo com o que o filme pede e merece. Daqui para a estreia vão ser mais de dez exibições: o filme abriu o Festival de Brasília, depois vai para o Maranhão, para o Ceará e também para Minas Gerais”, afirma a distribuidora Sílvia Cruz.
Na segunda-feira (15), a Academia Brasileira de Cinema anunciou o longa-metragem que vai representar o Brasil na disputa por uma vaga entre os 15 indicados ao Oscar de Melhor Filme Internacional. O agente secreto estava na lista de 16 pré-selecionados, ao lado de O último azul, do diretor pernambucano Gabriel Mascaro, vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Berlim, e também de Manas, da cineasta pernambucana Mariana Brennand Fortes, que ganhou o principal prêmio da Giornate Degli Autori no Festival de Veneza. Para se qualificar na concorrência, precisa passar ao menos uma semana em cartaz. “Vamos fazer em Salvador e em Curitiba, uma cidade muito cinéfila, mas onde talvez ainda existam barreiras para um filme do ‘Nordeste’. Bem, acho que agora O agente secreto seja visto como um filme ‘brasileiro’”, observa o diretor.
Nos Estados Unidos, a estreia comercial, com distribuição da Neon, é 6 de novembro, mas, até lá, o percurso inclui os festivais de Telluride e Nova York, com uma incursão por Toronto, no Canadá. O lançamento está confirmado em 94 países das Américas do Norte e Latina, Europa, Ásia e Oceania, incluindo China, México, Coreia do Sul, Índia, Nova Zelândia e Finlândia, de acordo com a MK2, que comercializa os direitos de exibição lá fora. Em Cannes, ante à explosão do frevo no grupo Guerreiros do Passo e nos acordes da Orquestra Popular do Recife, tanto Kleber Mendonça Filho como Emilie Lesclaux eram comedidos em relação a eventuais prêmios. Agora, com o circuito de viagens já mapeado e o nome de Wagner Moura aparecendo em todas as previsões para o Oscar de Melhor Ator, Kleber, que por décadas foi crítico de cinema e se mostra cada vez mais à vontade como realizador, opta pela discrição de um típico agente secreto: “Cannes jogou um holofote no filme e tudo está sendo muito especial. Vamos esperar o que ainda vai acontecer”.
LUCIANA VERAS, jornalista