“O Brasil tem muitas particularidades. Uma delas é que a grande estrutura do governo federal para a área da cultura foi criada na ditadura Vargas e depois na ditadura militar. Porém, foram instituições que conseguiram ter práticas democráticas”, historiciza a pesquisadora Isaura Botelho, com pós-graduações, incluindo doutorado e pós-doutorado, em políticas culturais. No livro Políticas culturais no Brasil (Edufba, 2007), Isaura Botelho assina um texto no qual reflete três momentos diferentes da história brasileira igualmente importantes para as políticas culturais: as décadas 1930, 1970 e 2000, a partir de figuras-chave, como Mário de Andrade, Aloísio Magalhães e Gilberto Gil, respectivamente. Nessa época, o país viveu a fundação de equipamentos e mecanismos culturais, como a criação do Conselho Nacional de Cultura (1938) e a sistematização do documento Política Nacional de Cultura (PNC, 1975), por exemplo, como os primeiros instrumentos de sustentação institucional da cultura em âmbito federal.
Esses “três brasis”, de acordo com Isaura Botelho, se conectam por uma visão longitudinal da cultura e isso teria sido responsável por lançar as bases para uma atuação pública à altura da complexidade das expressões populares, eruditas e de massa, presentes no caldeirão cultural brasileiro, de Norte a Sul. Essa “constelação de ideias” tem como matriz intelectual o olhar do escritor e agente cultural influente Mário de Andrade, que atuou como gestor cultural na São Paulo dos anos 1930, participando da elaboração do anteprojeto da criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Nesse período, contribuiu com gestões e políticas culturais, tendo ajudado a fundar a Sociedade de Etnografia e Folclore e enviado, em 1938, sua famosa expedição de registro de manifestações populares do país, importante fonte de pesquisa até hoje.
“Na área de cultura, a institucionalidade é algo muito importante; em qualquer área é, mas posso falar da minha. Destruí-la é rápido e construí-la é muito lento”, atesta Isaura com a experiência de quem acompanhou, de dentro, a criação do Ministério da Cultura. “Ninguém fala disso, mas desde que o neoliberalismo galopante ocupou também a Europa, o Ministério da Cultura francês está mal das pernas. Setores importantes estão sendo deixados à míngua, funcionários se aposentando e não tem concurso para recolocá-los”, mostra a pesquisadora, enfatizando que a política cultural é uma área da cultura que “temos que conhecer, para não falarmos ingenuidades”.
Em conversa com a Continente, durante passagem da turnê de OK OK OK no Recife, Gilberto Gil disse que a questão não está em existir um Ministério da Cultura, mas “sem dúvida alguma, uma instituição, uma autoridade cultural central no governo federal que responda diretamente ao presidente da República, ou a um conjunto ministerial que tenha afinidades com a cultura”. “E mais importante do que tudo isso é que essa instituição tenha realmente políticas culturais e uma noção, a mais extensa e profunda possível, do que seja cultura no Brasil e no mundo, porque a cultura brasileira tem que se voltar para si e para fora, tanto do ponto de vista institucional, incluindo outros governos, quanto no sentido da realização de uma ação política constante com estados, municípios, entidades culturais do setor privado, institutos culturais, enfim, que não estão necessariamente atreladas ao Estado, mas que devem estar afinadas com uma política cultural geral”, pontuou. “Afinado” não é bem a palavra destes tempos.
A despeito de se considerar otimista, mesmo na ditadura, Gil confessou se sentir incomodado e lamenta o “déficit de institucionalidade” atual, especialmente para “os campos culturais brasileiros que, nas últimas duas décadas, pelo menos, se beneficiaram de uma noção mais aprofundada de cultura, com traços antropológicos e sociológicos mais nítidos”. E então a música OK OK OK externa, como só a arte sabe fazer, seu sentimento sobre a situação: “penúria, fúria, clamor, desencanto, substantivos duros de roer”.
“Essa nova realidade me impõe a construção de novos paradigmas. O momento é extremamente grave, difícil, mas convoca a nossa criatividade, no sentido de pensarmos novas formas de intervenção. Se a gente tentar fazer alguma projeção, são catástrofes. E ainda é cedo para fazer uma projeção. Na verdade, tudo isso nos provoca a sermos mais criativos e buscarmos novos caminhos”, alumia Isaura Botelho. “Eu digo muito a amigos que estão nesta militância (em prol da cultura): esqueçam o varejo, que é terrível. A cada dia, nós temos notícias que vão de encontro a tudo que a gente deseja”, recomenda ela, aconselhando aos agentes a olharem além do horizonte.
Tanto para ela quanto para Silvana Meireles é chegado o momento de reforçar o caráter federativo do país e unir forças junto a Estados e municípios. “Precisamos deixar de esperar que o nível federal seja a grande vanguarda e transformar esses pontos positivos que existem pelo país. E esses pontos, veja só, não são políticas formuladas pelo poder público, necessariamente. Você pode ter movimentos culturais que tenham uma tal vivacidade e importância no local onde estão enraizados, e isso é transformador, porque provoca outras instâncias.”
O mesmo pensa a secretária Silvana Meireles: “Precisamos fazer valer a nossa condição de Estado federativo, para ocupar os vácuos do governo federal”. A Comissão de Cultura da Câmara Federal, ainda pouco acessada pela classe cultural; o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, e os municipais; os coletivos de arte que têm surgido pelo país; as conferências estaduais e municipais; os debates presenciais, tudo isso deve ser, segundo ela, instâncias ainda mais importantes na articulação e pressão nos próximos anos. E como sabemos, temos um legado participativo importante, mesmo que maculado ou um tanto enferrujado, dos últimos anos, que certamente ajudarão a cultura a reverter alguns processos.
“Temos que falar com essa juventude que não votou em Bolsonaro e, como artistas e programadores culturais, temos que nos engajar em movimentos transformadores. É da dor que nasceu muita coisa no Brasil, e existe um poder catalisador na cultura. Queremos discutir não para destruir, e, sim, para construir. Vamos tentar construir um futuro melhor, porque agora deu ruim”, vaticina o produtor Lucas Manga, do Bananada, da capital goiana, que assume uma postura de não ser “contra o governo especificamente”, mas “a favor da cultura”.
“O Nordeste tem uma função importante neste momento, porque votou massivamente pela oposição e temos governos progressistas praticamente da Bahia para cima, em todos os estados nordestinos. O setor cultural e os gestores culturais da região têm uma grande responsabilidade, que talvez não estejam utilizando na plenitude, com uma força política e uma capacidade de alavancar, até pela diferenciação, uma outra política. Há muito o que fazer e as possibilidades são enormes”, sugere o secretário Juca Ferreira, baiano de nascença.
Com sensibilidade e consciência política, ele vai além: “A intenção é que a roda da história gire para trás e, para isso, eles vão fazer um esforço gigantesco para destruir todas as conquistas. Nós temos que resistir, reduzir o máximo possível o impacto das loucuras que eles pretendem fazer. Sou otimista: acho que a sociedade brasileira não cabe dentro do projeto deles. As mulheres não vão voltar para casa, belas e recatadas, para se submeterem aos machos; a comunidade LGBT não vai concordar em voltar para o armário; os negros não vão abrir mão dos direitos conquistados e dos que precisam conquistar. Toda maneira de resistência é como amor: válida”.
Distante 2.626 quilômetros do secretário de Cultura de Belo Horizonte, a quilombola maranhense Anacleta Pires dá sua contribuição neste horizonte: “O momento é de remendar, consertar, criar o novo e ampliar, uma oportunidade que se estreita cada vez mais com a tecnologia. Precisamos analisar de boa-fé o que estamos vendo e aprofundar. Tirar alguém da zona de conforto e trabalhar no convencimento de pessoas, que atualmente passam por um processo de desumanização”.
E assim transmite sua sabedoria: “Com a separação do campo das grandes cidades, as novas gerações passaram a conhecer histórias mentirosas de que quilombolas e indígenas são violentos. Isso forma a mente das pessoas pelo medo. Nós temos as mazelas de megaempreendimentos, mas somos felizes. O mais forte é o cuidado com a vida. No tambor, a primeira coisa que vem é o prazer de ser feliz, de estar próximo do outro e esse é o grande trabalho de mudança: a reumanização pela afetividade familiar, sem distinção de cor, raça e crença. Um projeto com esse objetivo surte muito efeito e a gente gostaria tanto de dizer isso para mais pessoas: que nas cidades se ouve e se vê, mas aqui a gente sente”.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente. OLÍVIA MINDÊLO, editora da Continente Online e mestre em Sociologia. THIAGO LIBERDADE, designer, ilustrador e artista do teatro.