Reportagem

O eclipse da cultura no Brasil? | Financiamento

TEXTO LUCIANA VERAS E OLÍVIA MINDÊLO

ILUSTRAÇÕES THIAGO LIBERDADE

05 de Agosto de 2019

Ilustração Thiago Liberdade

[conteúdo na íntegra | PARTE 2 | ed. 224 | agosto de 2019]

contribua com o jornalismo de qualidade

Um dos pontos-chave (ou principal alvo)
da política de financiamento do governo federal, como sabemos, tem sido a famosa Lei Rouanet (Lei Federal de Incentivo à Cultura, nº 8.313), cujo nome fantasia faz alusão a Sérgio Paulo Rouanet, secretário de Cultura de Fernando Collor à época de sua sanção, em 1991. Apesar de ter entrado em vigor em sua gestão, a lei-mãe do sistema de mecenato brasileiro – que incentiva o patrocínio de projetos culturais por meio de renúncia fiscal para empresas privadas e cidadãos que desejem abater seu investimento no imposto de renda – é como o MinC: fruto do processo de reabertura política do país, restabelecendo princípios da Lei nº 7.505, de 2 de julho de 1986, que instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), o grande guarda-chuva onde estão previstos também o Fundo Nacional de Cultura (FNC), de aporte direto (como o Funcultura, em Pernambuco), e os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficarts), que nunca saíram do papel.

Desde que foi promulgada, a Rouanet se mostrou um importante instrumento de sensibilização para as empresas privadas investirem em cultura no Brasil da Nova República. Não por acaso, influenciou diferentes governos estaduais e alguns municipais, sobretudo de capitais, a criar legislações nos mesmos moldes. Mas não tardou para a classe cultural e artística do país começar a perceber que, como a propaganda das marcas patrocinadoras é, nesse caso, a grande contrapartida para as empresas, somente projetos e artistas de grande visibilidade passaram a ser beneficiados. Daí, a estupidez de atacar diretamente os artistas e seus projetos, esquecendo-se dos patrocinadores, que, por fim, decidem se vão ou não repassar os recursos. O saldo foi um ciclo vicioso, a ponto de o incentivo se concentrar no eixo Rio-São Paulo, deixando o restante do país desidratado.

Os próprios agentes começaram a propor a rediscussão da lei de incentivo e isso se deu com maior intensidade a partir dos anos 2000, em reuniões como a da Conferência Nacional de Cultura, cuja primeira edição ocorreu em 2005 e a terceira e última, em 2013. Alguns gestores culturais, como os do Rio de Janeiro, por exemplo, propuseram, em seu estado, reduzir o percentual do desconto final no imposto pago pelas empresas, forçando-as a tirarem o restante dos seus próprios departamentos de marketing. Um desses exemplos esdrúxulos da Lei Rouanet, que geraram uma discussão mais qualificada, à época, foi a árvore natalina da Bradesco Seguros na Lagoa Rodrigo de Freitas, que, em 2007, se ergueu graças aos R$ 2 milhões de incentivo fiscal. Equívoco do governo e conveniência da empresa.

Se em 2017 a CPI da Rouanet, na Câmara, revelou irregularidades e apontou melhorias, no ano passado uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV), encomendada pelo MinC, apresentou um balanço positivo da Lei Rouanet para a economia do país nestes 27 anos: a cada R$ 1 investido por patrocinadores, no total de 53.368 projetos culturais, R$ 1,59 retornaram por meio da cadeia produtiva de cultura. Resultado: R$ 49,8 bilhões foram injetados na economia brasileira, desde 1991, por meio da lei.

No dia 23 de abril deste ano, o Ministério da Cidadania publicou, no Diário Oficial da União, uma instrução normativa que altera o encaminhamento administrativo da lei de incentivo. Entre as decisões, está a redução do teto de projetos homologados de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão, no caso dos “empreendedores individuais”, e de R$ 60 milhões para R$ 10 milhões, no caso das empresas, o que repercutiu mal no setor. Além disso, o governo fez da norma – e, desde então, nem menciona o termo Lei Rouanet – instrumento político para afirmar que vai promover descentralização de recursos, permitindo acréscimo dos limites de captação de até 50% “para novos projetos a serem integralmente executados na Região Sul e nos estados de Espírito Santo e Minas Gerais”, e “de até 100% nas Regiões Norte, Nordeste ou Centro-Oeste”.

“O governo se apropria de um discurso construído, historicamente, pelo segmento cultural em relação ao incentivo fiscal, como um mecanismo concentrador, excludente, que privilegia os grandes centros do eixo Rio-São Paulo, para justificar a alteração de uma lei, como se uma mudança de valor, teto etc. fosse resolver essa questão central. Enquanto isso, ignora a política do Cultura Viva, que, esta sim, é um instrumento construído de forma participativa, das bordas para o centro, para descentralizar, democratizar e articular em rede. Quando a gente vê os recursos disponibilizados, é que vemos as contradições”, comenta o assessor parlamentar Leonardo Lessa.

Sobre questões da política atual, Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, avalia: “Com a crise econômica e o questionamento da sociedade sobre o perfil das prioridades no investimento orçamentário das políticas públicas, há um refluxo no apoio público da arte e da cultura, não só no Brasil, como em inúmeros países desenvolvidos e em desenvolvimento. O que estamos vendo no nosso país, nestes seis meses, a meu ver, é que, aqui, não se trata apenas de uma restrição orçamentária, mas de uma incompreensão do papel estratégico da arte e da cultura no desenvolvimento socioeconômico”.

Apesar de o Itaú Cultural não fazer uso da lei de incentivo fiscal, mas de aportes diretos do Itaú Unibanco, ele defende que a instrução normativa de abril seja revista: “A instrução normativa segue garantindo projetos ligados a corpos estáveis, museus, planos anuais, ações educativas e, também, referentes à constituição da memória da arte e da cultura brasileiras. No entanto, é preciso que seja novamente aprimorada, pois, independentemente do apoio do Itaú para projetos, há segmentos que foram fortemente impactados. Por exemplo, os musicais, que contribuem para o desenvolvimento da cultura e da nossa economia”.

Aída Queiroz é uma das quatro idealizadoras e codiretoras do Anima Mundi, o maior festival de animação da América Latina. Quando ela conversava com a Continente, na primeira semana de julho, faltavam poucos dias para a 27ª edição. Em 23 das 27 temporadas, incluindo filmes, debates e atividades educativas, a logomarca da Petrobras aparecia entre os patrocinadores. Em 2019, sumiu. “Em abril, faltando pouco tempo, a Petrobras divulgou que não patrocinaria. Nosso orçamento estava previsto para R$ 1,2 milhão, do qual R$ 750 mil sairiam da estatal. Sem esse aporte, teríamos menos da metade dos recursos previstos”, narra Aída.

A saída foi arrecadar via crowdfunding: a meta era R$ 430 mil, a arrecadação foi de 439 mil. “Conseguimos mobilizar muita gente e agitar inúmeras parcerias que nos possibilitaram realizar a edição deste ano. Foi muito bom também perceber como o festival é querido.” Ela conta que, em 2018, a FGV procurou o festival para aferir o retorno que o Anima Mundi trazia para o Rio de Janeiro. “Nosso orçamento foi de R$ 2,4 milhões e a FGV usou sua expertise científica para constatar que o retorno para a cidade, via impostos, turismo e indústria criativa, tinha sido de R$ 24 milhões. Ou seja, 10 vezes o valor gasto. Como podem insistir nessa ideia de que quem faz cultura é vagabundo?”

Além do Anima Mundi, outros dois importantes festivais cinematográficos, o Festival do Rio e Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, foram alijados dos projetos aquinhoados com recursos da companhia que, desde 2003, injeta milhões de reais por meio do programa Petrobras Cultural. Por conta disso, foram postergados para novembro. Nada é por acaso. Em fevereiro, o presidente da República começou a gestão informando que todos os patrocínios da Petrobras estavam sob revisão, “objetivando enfoque principal dos recursos para a educação infantil e manutenção do empregado à Orquestra Petrobras”. Naquela época, ele alardeava uma cifra astronômica em seu Twitter: “A soma dos patrocínios dos últimos anos passa de R$ 3 BILHÕES. Determinei a reavaliação dos contratos”. Em abril, sublinhou que essa revisão permanecia para “saber o que fazem com bilhões da população brasileira”.

Bilhões são hipérbole bolsonarista. Em resposta ao nosso pedido de informações, a estatal redarguiu: “A Petrobras segue realizando apoio a projetos culturais. O orçamento para patrocínios, assim como diversas outras áreas, sofreu redução à luz do Plano de Resiliência, divulgado em março de 2019. O plano compreende ações visando redução de gastos operacionais gerenciáveis e despesas discricionárias, que incluem os patrocínios. Por esta razão, alguns projetos nas áreas de audiovisual e artes cênicas, já concluídos, não foram renovados. Os contratos vigentes estão em andamento e com seus desembolsos em dia. O orçamento previsto para patrocínios pela Petrobras em 2019 é de R$ 128 milhões”.

Há três anos, o Bananada, festival de música de Goiânia, já não contava com verba pública - durante um bom tempo, teve o selo da Petrobras – e assim será este mês, em sua 21ª edição. “Não tivemos suporte algum do governo. Mesmo com apoio da lei estadual em 2015 e 2016, ainda não recebemos o valor. Para este ano, fomos até a quarta etapa do programa da Petrobras, mas a verba foi cortada”, conta o produtor Lucas Manga, um dos coordenadores do evento que, em 2018, atraiu 21 mil pessoas em quatro dias. “Aprendemos, a duras penas, que contar somente com a iniciativa pública não dá. Por um lado, isso foi bom, pois pudemos desenvolver um modelo de negócio com grandes marcas, como Devassa, Sympla, Spotify. Por outro, a mudança de data foi estratégica. Não por conta de Bolsonaro, mas já existia uma animosidade no mercado e nenhuma das marcas queria se comprometer antes da virada do governo. Tinha uma grande nebulosidade.”

Ao responder sobre a difusão da ideia de que “artistas mamam nas tetas do governo”, o secretário Henrique Medeiros Pires começou assim: “É importante que setores de produção cultural, com mais apelo comercial, possam se tornar independentes do apoio estatal. Esse é um ponto. Isso, no entanto, não indica corte de verba ou de recursos. Esses setores devem ter mais esforço para atrair mais público e ter mais renda. O cinema é um caso. Os realizadores não podem abrir mão do público esperando apenas a subvenção estatal”.

Enquanto o secretário insinua que a falta de público é uma responsabilidade das escolhas dos realizadores, convidamos o leitor a um mergulho na questão. A começar, por exemplo, pela nossa educação, que nos dá subsídios para consumir ou fruir determinados bens culturais, e não outros. Isso não é simétrico, haja vista os estudos realizados com o público de arte dos museus europeus pelos sociólogos Pierre Bourdieu e Alain Darbel, que demonstraram o grau de escolaridade como diretamente proporcional ao hábito de ir a museus – e isso é Europa. No Brasil, outras pesquisas já apontaram uma tendência semelhante, além de o país enfrentar, no caso do cinema, a força econômica e simbólica da indústria cinematográfica norte-americana, como também acontece em outros países.

Se as pessoas mal veem filmes nacionais desde a sua infância, como vão passar a considerá-los como parte de seu repertório cultural afetivo? Trata-se de uma árdua construção coletiva. A questão educacional vem tentando ser corrigida por ações de formação dos projetos culturais, mas estas, inevitavelmente, encontram empecilhos que também são de responsabilidade do Estado, como a elevação do nível de escolaridade nacional, o investimento na qualidade do ensino e o estímulo a hábitos culturais na população.

Um dado recente, apresentado pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados neste ano de renovação do Plano Nacional de Cultura, refere-se a um balanço dos últimos 10 anos, e o resultado é que a única meta alcançada integralmente pelo PNC foi o número de filmes brasileiros lançados nas salas de cinema do país. O objetivo era atingir 150 estreias anuais e o cinema brasileiro seguiu em curva ascendente, chegando ao fim de 2018 com 185 obras, o que representa um salto, na última década, de 120%. Apresentando um gráfico flutuante, o público desses filmes, por sua vez, saiu de 16,1 milhões, em 2009, para 24,2 milhões em 2018, atingindo, em 2016, um pico de 30,4 milhões de espectadores, de acordo com dados do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA), da Agência Nacional de Cinema (Ancine).

Continua:

PARTE 3 | O eclipse da cultura no Brasil? | Audiovisual
PARTE 4 | O eclipse da cultura no Brasil? | Guerra ou debate?
PARTE 5 | O eclipse da cultura no Brasil? | Perspectivas

Publicidade

veja também

Cangaço S.A.

Expandindo a forma de fazer teatro

Onde as memórias se encontram