FOTOS ROBERTA GUIMARÃES
06 de Novembro de 2019
No Terreiro de Xambá, as iabassês Maria do Carmo de Oliveira e Luana Oliveira
Foto Roberta Guimarães
[conteúdo na íntegra | PARTE 2 | ed. 227 | novembro de 2019]
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CURIQUINHA DOS NEGROS
Dona Marina acorda cedo. Acordou muito cedo neste dia. É um sábado de agosto, o céu oscila seus humores entre o sol terno e a chuva rápida, sobre o verde-claro das montanhas de Curiquinha dos Negros, comunidade quilombola de 700 habitantes – estabelecida, segundo pareceres oficiais de titulação e a própria memória muita viva de seus moradores, após a diáspora da destruição do grande Quilombo dos Palmares, nos arredores de Garanhuns.
O sol subia no horizonte quando dona Marina varria o terreiro que une sua casa, como numa aldeia, às de seus vizinhos em Curiquinha. Nesses dias, pouca gente precisa sair para a “rua”, termo com o qual os quilombolas designam, genericamente, as configurações urbanas vizinhas de Garanhuns ou Brejão, onde estudam ou trabalham no comércio, no serviço público ou em casas de famílias mais abastadas no agreste pernambucano. Sobre o terreno limpo de dona Marina, grandes pencas de banana verde dependuram-se como totens. São fontes de prazer e, sobretudo, reconhecimento. O sábado é o dia em que a comunidade está reunida.
Dona Marina Barbosa de Brito vive na comunidade desde que nasceu, há 70 anos. Ela lembra como a banana nunca faltou a quem dela precisou. “Quem era escravo acabou ficando por aqui, com um pedacinho de terra. A gente plantava mandioca e macaxeira e trabalhava nas fazendas de café, ganhava por lata de café colhido. Mas não tinha essa coisa de comprar comida, não”, ela lembra. “Nem tinha onde.” Além de animais, como as galinhas do quintal, e da mandioca, convertida em beijus e farinha, a alimentação cotidiana dessa comunidade teve sempre esteio no feijão-guandu – arbusto espontâneo que sobe até nas cercas, sendo enriquecida com o potássio da banana, muitas vezes colhida verde.
Hoje rara na alimentação cotidiana, a bananada é o que se pode chamar de prato de resistência em Curiquinha dos Negros. Como a feijoada ou o churrasco, nos contextos gerais do Brasil, ela é preparada nas celebrações da comunidade. Como o feijão-guandu não solta amido suficiente para gerar um caldo grosso, costumava ser engrossado com banana amassada. Hoje, a fruta é cozida em rodelas no feijão.
Processo da preparação da bananada, em Curiquinha dos Negros, cozido feito à base de banana, feijão-guandu, verduras, linguiça e charque
“Antes, era só feijão e banana mesmo”, diz ela, sobre a receita original com que alimentou oito filhos, 22 netos e quatro bisnetos de uma família onde sempre “tem vaga para mais um”. “Com o tempo, o prato foi ganhando linguiça, verdura, charque. Não é a mesma coisa, mas é mais gostosa, né?”. Durante muito tempo, os antepassados viviam isolados. “Minha avó era cabocla, quando via gente, saía correndo. Tinha medo de ser capturada, mesmo meu bisavô já não sendo escravo. Comia muito beiju puro com feijão. Aí, foram botando banana amassada para aumentar o feijão”. Além das galinhas, a carne oscilava entre preás, tatus e coelhos caçados nas matas.
No dia do nosso encontro, era a sobrinha Joelma Vicente de Brito, 31 anos, quem comandava o preparo da bananada para dona Marina e mais de uma dezena de vizinhos. Recém-separada e com um bebê de dois meses no colo ao lado dos dois filhos maiores, ela está de volta à comunidade depois de anos vivendo no Cabo de Santo Agostinho. “A vida aqui é mais tranquila. Lá, muitas vezes, escondia minha origem. Tinha preconceito. Hoje, tenho orgulho de ser do quilombo. Toda vez que a gente se reúne, faz bananada. Bananada é o prato do quilombo.”
De cócoras no terreiro, dona Judite, mãe de Joelma, curva o corpo de 70 anos para cortar em rodelas as bananas. Eventualmente, interrompe a tarefa para dar um golinho na cachaça em copo americano: “Ah, meu filho, lavo uma bacia inteira de roupas de cócoras”. No entra e sai da casa para o terreiro, mulheres picam cebolas, tomates, coentro. Aferventam charque em pedaços, desfazem linguiças, soltando nacos de carne de porco moída com gordura. Uns poucos homens ajudam.
Crianças brincam no terreiro. Ainda que tímidas, duas meninas percebem o grupo conosco reunido. Aproximam-se curiosas. Anara Barbosa, 9 anos, neta de dona Marina, quebra a timidez com versos lembrados à medida que são recitados com os olhos brilhantes: “Meu nome é Anara, menina guerreira/ Sou quilombola, jogo capoeira/ Amo meu cabelo, minha história e minha cor/ Essência e raiz, daquilo que sou/ Aline, Gisele, Milene e Eduarda, unidas na guerra, a gente se arma/ Como quem municia, o corpo e a mente/ Se vocês são racistas, saiam da frente/ Sou a capoeira do passado, em minha consciência, presente”. Um silêncio emocionado segue-se a algumas palmas depois da apresentação de menina.
Nem sempre Anara exibia o orgulho em versos. Antes, diz, tentava alisar os cabelos para ficar parecida com as meninas da televisão. “Hoje, se alguém fala mal do meu cabelo, da minha cor, eu arengo. Tenho orgulho de ser do quilombo, do meu cabelo, da minha cor e das minhas poesias.”
Os versos recitados por Anara e outras crianças da comunidade são, na verdade, do educador e poeta César Monteiro, um homem de 43 anos que, aos 12, ficou órfão. O pai foi assassinado em circunstâncias nunca esclarecidas. Poucos meses depois, um tio achou que teria, por uma lógica torta de herança machista, direitos sexuais sobre a viúva. Ao se defender, a mãe de César acabou também assassinada pelo irmão do marido morto.
O poeta transforma a dor em impulso para manter sua comunidade íntegra. Através do coletivo Poétnico, ele organiza oficinas e rodas de capoeira, poesia e teatro com as crianças e jovens de Curiquinha dos Negros. A cada primeiro sábado do mês, o terreiro reúne moradores locais e visitantes em torno do Luau das Pretas. “A poesia ajuda muito na afirmação da identidade”, diz César, que é autor do livro Poétnico – Um poema para Preta.
Como na Festa da Mãe Preta, realizada no começo de cada semestre nos quilombos de Pernambuco em homenagem à mulher mais antiga do lugar (e como forma simbólica de também homenagear as antigas amas de leite, mulheres escravizadas e obrigadas a negligenciar os próprios filhos para amamentar os filhos das mulheres brancas às quais pertenciam), o terreiro se enche de festa. Poesia, samba de coco, forró e, naturalmente, bananada.
Família reunida para refeição em Curiquinha dos Negros
Anara se faz sempre presente. As falas da menina mais parecem ilustrar as conclusões de um antropólogo americano de estudos clássicos sobre a relação entre a monocultura da cana-de-açúcar e a escravidão, responsável pelo martírio de vários de seus antepassados. Ao explicar como a comida revela a cultura em que cada um está inserido, Sidney Mintz constata que “nossos padrões de gosto são apreendidos cedo e muito rapidamente a partir de adultos afetivamente potentes”. “Quando eu crescer, vou aprender a fazer bananada igual à minha avó, é um prato que ela aprendeu a fazer com a avó dela”, afirma, com um prato do alimento sobre o colo, a pequena Anara.
Sua prima Gisele de Brito Garcia, 12, emenda: “Algumas pessoas sabem fazer melhor que as outras. Mas acho que, aqui no quilombo, todo mundo tem que aprender a fazer bananada”. Entre risos e olhares de cumplicidade, o cheiro do ensopado de feijão com banana, carnes e embutidos corta o vento em Curiquinha dos Negros.
CAFÉ MORTO NO PAU
Naquele sábado, um dos poucos homens ajudando na lida da cozinha era Cícero. Antigo trabalhador das fazendas que davam a Brejão a fama de melhor produtora de café do Brasil, Cícero Vicente de Brito, 38, também acordou cedo. Tinha que preparar o café para depois do almoço – uma tarefa que deve começar muito antes de se colocar a chaleira para a água ferver no fogo. “Antigamente, não tinha esse negócio de café pronto pra comprar. A gente fazia o café de cada dia.”
Agricultor, Cícero é um dos últimos homens em Curiquinha a preservar a tradição do chamado “café morto no pau”. Depois de seco no alpendre e despolpado a mão, o café é moído num antigo pilão de baraúna – ou seja, morto no pau. Bem-triturado à mão até virar pó, o café torra por cerca de uma hora num tacho grande de alumínio. Torrado com grandes quantidades de açúcar, formando uma espécie de caramelo de café, depois é quebrado novamente.
"Café morto no pau" é moído por Cícero de Brito em antigo pilão de baraúna
O açúcar, ele diz, melhora o sabor torrado do café, com um resultado levemente adocicado, e, desde um tempo perdido na memória, tem sido acrescentado para aumentar o aporte energético dos grãos. O método, ele aprendeu com dona Quitéria, sua falecida mãe. “Mãe dizia que esse café tinha ajudado os antigos escravos a chegar até aqui.” Na memória dele e da comunidade, está a certeza: com uma boa provisão de café “morto no pau” a tiracolo, homens e mulheres aumentavam as forças para fugir e se estabelecer em novos sítios depois da destruição do Quilombo de Palmares.
COMO COMIAM OS ANCESTRAIS
A Constituição de 1988 regulamentaria o direito à posse da terra de comunidades quilombolas dispersas pelo Brasil. De forma geral, no Nordeste, comunidades descendentes da dissolução do enorme Quilombo dos Palmares, situado na Serra da Barriga, em Alagoas, um estado paralelo dentro do Brasil colonial, com organização política e liberdade religiosa baseadas nas práticas sociais africanas. Algumas dessas comunidades, bordeadas pela expansão das cidades, acabariam por ser reconhecidas como quilombos urbanos. Um deles está na periferia de Olinda.
De forma geral, Xambá (ou Tchambá) é a designação dos povos oriundos das regiões ao norte dos Ashanti e nos limites da Nigéria com Camarões. Na comunidade de Portão do Gelo, no bairro olindense de São Benedito, o terreiro e quilombo urbano de Xambá é o único oficialmente reconhecido no Brasil como descendente da nação. Os demais são povos de origem nagô.
Para o público menos afeito à presença nos terreiros, o Xambá é mais conhecido como berço do Bongar, grupo musical que atualiza a tradição do coco na comunidade. “O Bongar é um reflexo cultural de nossa história, de Mãe Biu, é um reflexo de toda a resistência histórica aqui na Xambá”, diz Guitinho de Xambá, vocalista do grupo que tem se apresentado dentro e fora do Brasil. Quando estão em casa, os músicos do Bongar procuram se alimentar, ritualisticamente, como se alimentavam os ancestrais.
A história registrada da comunidade é recente. No início dos anos 1920, o babalorixá Artur Rosendo Pereira foge da repressão às casas de culto em Maceió e passa a morar no Bairro de Água Fria, no Recife. Dentre os muitos iniciados por Rosendo estaria Maria das Dores da Silva, a Maria Oyá que, em 1930, estabeleceria seu culto aos orixás na Rua do Limão, em Campo Grande.
Com a morte de Oyá, em 1939, os tambores são calados até que uma filha de Ogum e Oyá, Mãe Biu, reabre o terreiro na Estrada do Cumbe, em Santa Clara, Recife. Com sua morte em 1993, Mãe Biu é sucedida pelo filho de santo e sobrinho Adeildo Paraíso da Silva, o Pai Ivo de Xambá como babalorixá, e pela tia dele, Donatila Paraíso do Nascimento, a Mãe Tila. Consagrado a Ogum, Ivo fora iniciado aos 10 anos de idade. Hoje, aos 65, permanece firme na manutenção dos costumes de Xambá. Não permite, por exemplo, o consumo de álcool nas festas rituais.
“Álcool não é permitido”, explica Pai Ivo, “porque com ele se perde consciência. Eu tenho uma cópia de um estatuto de 1930 que já proibia a ingestão de bebida no salão. Essa prática existia em vários lugares e foi se perdendo. Aqui, nós mantemos”. Além da interdição ao álcool, Xambá procura comer como se comia na década de 1930.
Por exemplo, quem chega para uma brincadeira de coco no terreiro dificilmente sairá sem comer uma porção de munguzá. O brinquedo está na comunidade desde o início nos anos 1930. “Mas, em 1964, quando Mãe Biu fez seu aniversário de 50 anos, uma criança caiu por acidente num poço”, conta Guitinho. “Ela fez uma promessa aos mestres para que, se nada de mal acontecesse à comunidade, todo dia 29 de junho, ela faria um coco em homenagem aos mestres”. Em 1938, auge da intolerância religiosa da Era Vargas, o terreiro havia sido fechado pela polícia. O incidente trouxe a memória da repressão.
Nos anos 1950, a comunidade estava dispersa. “As pessoas vinham caminhando e o munguzá era ofertado para que aguentassem o trabalho que seguisse pela madrugada”, continua ele. “A todas as pessoas que chegam aqui para visitar as festas, a gente sente a obrigação de oferecer um munguzá, não é apenas um caldo com milho, mas uma oferta de acolhimento. Sair daqui sem comer nosso munguzá é quase uma ofensa.” Como nos terreiros de origem xangô, no Xambá a comida é o elo entre os humanos e os orixás. De origem africana, o óleo de dendê conduz a energia espiritual chamada de axé.
Estivemos no terreiro num sábado. De saias largas, rodadas e coloridas, panos sobre a cabeça, uma dezena de mulheres estão reunidas na ampla cozinha com luz natural do Terreiro de Xambá. A contadora aposentada Maria do Carmo de Oliveira, 66 anos, conhecida como Cacau de Xambá, é uma das iabassês – cozinheiras responsáveis pelo preparo dos alimentos que serão ofertados aos orixás.
Compenetradas, as mulheres cortam centenas de quiabos em pedaços miúdos. Uma galinha inteira cozinha em água, azeite de dendê e pitadas de sal. Pequenos acarajés, a massa de feijão- macáçar moído cru com pimenta, fritam em tachos com óleo de dendê com uma pedra de carvão. “O carvão impede que o acarajé fique muito escuro”, diz Cacau. No fogo, com sal e dendê, o quiabo vai virando pasta. Caruru. Para Orixalá, o arroz branco é finalizado com leite de coco. “As comidas de dendê podem ser oferecidas a todos os orixás, menos Orixalá, que não come dendê”, explica.
Não há temperos além desses. Diferentemente de terreiros de tradições distintas, nos quais as comidas podem ser retemperadas para o consumo das pessoas depois de ofertadas aos orixás, aqui não há distinção. “Comemos exatamente o que é oferecido aos orixás”, diz Cacau. “E a comida leva apenas água e azeite de dendê. E não tem como não ficar boa, porque é o dendê que tem o axé.”
De pés descalços, todos comem para reforçar a ligação com a terra. Come-se com as mãos ou com aparas improvisadas, como os ossos maiores da galinha. “Alimentamos uma tradição. Desde que Maria Oyá e Artur Rosendo fizeram o primeiro prato de tradição, isso é mantido até hoje”, afirma Cacau.
PANKARARUS
O fogo parecia se recusar a queimar. Na aldeia Brejo dos Padres, a maior e mais central entre os indígenas pankararus do sertão de Pernambuco, um grupo de mulheres falantes, amigas, de sorrisos cúmplices, preparava um café da manhã especial. Era o batizado do filho de uma delas. Muitos ingredientes ocupavam a mesa grande no terreiro da casa. Fubá de milho, tubérculos como batata-doce, inhame e macaxeira, café, bolos, pães, ovos e, de maneira muito esperada, um enorme carneiro recém-abatido. Antes que os convidados chegassem, outras moradoras ajudavam no preparo do banquete matinal.
O ritual de batismo atravessaria as horas seguintes do dia. Talvez, até as primeiras da noite. Com os miúdos separados para encher uma buchada feita com as paredes do estômago do animal, depois de cuidadosamente guisado, o carneiro legaria um caldo denso e perfumado. Engrossado com farinha de mandioca fina e mexido de forma delicada e circular, até virar um pirão. Mas o fogo não fazia o caldo ferver.
Pioneiro nas análises sobre as contribuições da alimentação na constituição das identidades brasileiras, o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre escreveu, ufanisticamente, ainda no final dos anos 1930, que o pirão deveria ser reconhecido como glória do Brasil. Preocupado com a transferência de poder do Nordeste açucareiro, na decadência dos engenhos de fogo morto, para o Sudeste em franca industrialização, Freyre liderava um grupo de intelectuais e artistas da região empenhados em construir um ideário capaz de evidenciar a superioridade simbólica e tradicional do Nordeste através de elementos de sua cultura.
As irmãs pankararus Maria Rosário e Maria Bárbara Oliveira
Símbolo do equilíbrio entre o ingrediente nativo (a mandioca em forma de farinha) e o do europeu colonizador (o guisado de tradição portuguesa), o pirão seria uma espécie de bastião culinário. “Nenhum escritor ou pintor compôs ainda uma obra à sua altura”, diria ele, num dos artigos de jornais que desembocariam no histórico Manifesto Regionalista.
Para os Pankararus, alheios aos jogos de poder entre as unidades da federação e atentos à harmonia da comunidade, o pirão é sagrado.
Cada vez que um bebê do sexo masculino vem ao mundo, em geral, um sábado é reservado ao batismo que, na tradição desse povo, recebe o nome de Festa do Menino do Rancho. No “rancho”, a criança recebe a confirmação de seus padrinhos – vivos e moradores da aldeia, e, sobretudo, espirituais, os seres encantados responsáveis por orientar a vida em comunidade, intermediar a comunicação com o deus Tupã e zelar pela cabeça de cada afilhado. De forma geral, os encantados pankararus são chamados de praiás.
“Para preparar a comida na Festa do Menino do Rancho, a mulher precisa estar limpa”, explica Maria Rosário Oliveira Santos, de cerca de 50 anos, destacada na comunidade como assistente pedagógica na escola indígena local e referência dos saberes tradicionais. “Quando chegamos nesse dia de festa, a carne já estava temperada. Ligamos o fogo, era uma labareda grande, e o fogo não fervia. Tinha alguma coisa errada”, lembra Rosário.
Rosário conta que, então, pegou as raspas da casca da jurema sagrada e acendeu seu cachimbo. “Ofereci a fumaça aos encantados, temperei de novo o carneiro e a água começou a ferver. Quem temperou não podia ter temperado a comida”, ela saberia. Uma das mulheres engarregadas de preparar a refeição ritual, desrespeitando os preceitos religiosos, não guardara o jejum sexual para temperar o carneiro. Com a fumaça aceita pelos encantados no cachimbo de Rosário, a carne guisou.
“Depois de pronto, servimos o carneiro, a buchada e o pirão para mais de 200 pessoas”, afirma Bárbara Oliveira Pankararu, irmã de Rosário e presidente da Associação de Mulheres Guerreiras Pankararus, uma força ativa na manutenção da unidade da comunidade. Naquele, como em outros dias de festa para os Meninos do Rancho, não apenas os homens e mulheres comem, pois a carne e o pirão são também entregues como oferendas aos encantados. “O café da manhã deve ser feito sempre na casa do menino que vai ser batizado. Se a cozinheira não estiver limpa, algo errado acontece. A madrinha adoece, o menino adoece, a comida não cozinha”, prossegue.
“Quando os praiás vêm fazer a festa, não pode ter missa na igreja. Não pode nada, porque a festa é nossa”, pontua Bárbara, lembrando que o nome da aldeia, Brejo dos Padres, não é gratuito. Como muitos grupos indígenas do Nordeste do Brasil, a fixação, quase nunca pacífica, dos pankararus nesse brejo úmido, fértil e verdejante entre as serras dos municípios de Petrolândia, Itaparica e Tacaratu, às bordas do Rio São Francisco, ocorreu em meio a missões catequizadoras e aldeamentos forçados.
Mãe de Bárbara, Rosário e de mais seis filhos, Maria Socorro Ramos conviveu com uma das últimas e mais consistentes missões católicas. “Os padres ocuparam as aldeias em 1940, até Padre Cícero veio fazer catequização aqui”, conta Bárbara. Muitas vezes, os padres eram responsáveis pela intermediação dos conflitos. “Padre Henrique ajudou muito. Os fazendeiros eram violentos. Para ir a Tacaratu, a gente só podia passar calados por essas terras. Era tudo porteira fechada.” Os poucos alimentos produzidos eram vendidos na feira livre de Paulo Afonso, na Bahia, depois da atual barragem da hidrelétrica de Sobradinho. “A gente atravessava o rio e, na feira, chamavam a gente de índios sujos”, relata.
Além de sua presença física, materializada pela igreja fincada no centro da aldeia, o catolicismo deixou outras marcas na comunidade. “Aqui, como eu e minha irmã Maria do Rosário, quase todo mundo tem nome de santo”, comenta Bárbara. “Com os padres, o povo começou também a usar roupas. A ter casamentos. Mas pouca gente aqui gosta de casar, de fazer casamento na igreja. A gente prefere mesmo é se juntar pra viver bem”, diz Bárbara, uma mulher forte, altiva, que no nosso encontro usava calças jeans, camisa branca de malha e um longo cocar de penas sobre os cabelos lisos e retintos.
Além de usar colares de sementes e cocares, sua irmã Rosário também protege a cabeça com panos enrolados como turbantes, à maneira dos povos africanos de origem nagô dos terreiros de Pernambuco. “Tinha muito negro escravo nas fazendas daqui. Lembro minha avó contando que, quando acabou a escravidão, eles fizeram festas noite e dia. Depois, vieram parar aqui. Se misturaram. Todos viraram pankararus. Acho que peguei esse gosto com eles.”
Ali, a terra expressa sua generosidade em frutas e vegetais comestíveis. Ainda no Império, Dom Pedro II havia decretado a demarcação daquele território. Os primeiros contatos com esses povos se deram ainda no século XVII, com padres avançando a partir da cidade baiana de Glória em busca de mais almas nativas para converter ao cristianismo. Os missionários teriam estabelecido um aldeamento à beira do São Francisco, com comunidades deslocadas das ilhas de Surubabel, Acará e Várzea e da localidade de Cana-Brava, atual núcleo urbano de Tacaratu, até o local hoje conhecido como “Brejo dos Padres”.
Segundo registros oficiais do antigo Serviço de Proteção ao Índio, fato presente nas memórias orais da comunidade, o Imperador Pedro II teria determinado a posse de “quatro léguas em quadra”, a partir da igreja central, aos pankararus. Em 1935, a serviço do SPI, o pesquisador Carlos Estevão Brito faz a primeira viagem oficial ao território pankararu. Mas, ao estabelecer a demarcação das terras e o primeiro posto indígena ali, o próprio Serviço de Proteção ao Índio não respeitou o parâmetro das quatro léguas, reduzindo o quadrado para três quilômetros a leste e três quilômetros ao norte da igrejinha. O território oficial seria muitas vezes vilipendiado. Em casas simples e arejadas de concreto, os cerca de quatro mil pankararus convivem hoje com imóveis antigos, alguns seculares, depredados ou incendiados, abandonados.
No final dos anos 1980, com a inundação da cidade vizinha de Sobradinho e a elevação do lago de Itaparica para a construção da hidroelétrica, camponeses voltaram a invadir com violência as terras indígenas. Sem o reassentamento devido por meio da Companhia Hidroelétrica do São Francisco, mais de três mil posseiros se instalaram nas aldeias, segundo relatórios de plataformas como a Povos Indígenas do Brasil, da organização não governamental Instituto Socioambiental. Hoje, casas em ruínas trazem em seus restos numerações com o nome da Funai (Fundação Nacional do Índio) impressos em tinta de parede. Aos poucos, as casas estão sendo recuperadas para a devolução aos indígenas.
Em 2018, a Polícia Federal precisou intervir para expulsar os últimos posseiros. “Mesmo indenizados, vários posseiros preferiram destruir e queimar as casas a ter que entregar para os índios”, comenta Bárbara, enquanto recolhe, por conta própria, através de doações com conhecidos de fora da aldeia, recursos para recuperar as instalações de uma casa antiga onde funciona, desde então, umas das duas escolas indígenas para as crianças instaladas na comunidade. A outra está no centro da aldeia.
Enquanto isso, a vida segue em Brejo dos Padres, reforçada por suas dimensões ritualísticas. Antes de cada menino ter seu guia espiritual consagrado, num rancho de palha em que o pequeno será ungido, duas mulheres são eleitas como madrinhas da criança. Uma delas é a “noiva” do menino, uma garota de 12 ou 13 anos. “Tem que ser virgem até de boca”, diz Rosário. “Antes, eles se casariam. Pode até acontecer; mas hoje, no tempo moderno, isso já não é obrigatório.” Na tradição da aldeia, as meninas não recebem o mesmo tratamento. “São apenas os meninos recém-nascidos que podem ir para o rancho. É assim desde sempre”, diz Bárbara.
No rancho de palha, o menino é escolhido e protegido por um praiá. “Se o menino é prometido para o encantado, ele vai para o rancho para ser escondido. Para outros praiás não aparecerem e quererem ele. Cada menino tem seu praiá.” Ao longo de uma tarde inteira, os padrinhos do menino vão lutar, simbólica e religiosamente, com alguns desses praiás para que a criança possa permanecer no mundo terreno. Ao final, seu encantado receberá o pirão feito no dia.
“O pirão e o carneiro são sagrados. Não posso falar, só quem é pankaruru pode saber, mas faz parte das oferendas junto com o carneiro, que tem que ser capado. E é comido com vinho de jurubeba”, revela Rosário. Muito conscienciosamente, uns goles de cachaça podem embalar a festa. “Mas a comida sagrada é o carneiro e o pirão. E nós come de mão e no prato de barro”, completa.
Paisagem das terras pankararus
“O ritual do Menino no Rancho é uma manifestação em que todos os Pankararus são chamados a participar”, observa o antropólogo pernambucano Renato Athias, professor da Universidade Federal de Pernambuco e um dos autores de maior produção intelectual sobre os povos indígenas do Nordeste do Brasil. “Envolve um considerável trabalho de logística e de organização, e tem um caráter de iniciação. Representa a proclamação pública de uma clara intervenção de um encantado em um menino. Os pais dele precisam buscar uma quantidade muito grande de comida, e oferecê-la a convidados que, às vezes, ultrapassam 500 pessoas”, descreve.
A FLEXADA DO UMBU
Os praiás estão presentes em todas as festas rituais pankararus ao longo do ano. A que mais publicamente evidencia a dimensão ritual e simbólica do alimento é a Corrida ou Festa do Umbu. Depois das esperadas trovoadas de janeiro, as chuvas selam o início das primeiras roças. Os umbuzeiros recuperaram as folhas perdidas durante a estiagem. Abundantes e cultuados em todo o vale, os primeiros umbus começam a frutificar. Um grupo de iniciados sobe as serras para fazer o flechamento do primeiro umbu a aparecer, ou seja, atingir com uma flecha o primeiro umbu a frutificar na serra.
“Enquanto se brinca o Carnaval, nós nos preparamos para as corridas do umbu”, diz Bárbara Pankararu. Nos quatro finais de semana seguintes ao Carnaval, os Pankararus se juntam nos terreiros sagrados da aldeia. Durante os torés, queimam as peles com urtigas conhecidas como cansanção. Nos cortejos coreográficos, fazem movimentos alusivos a humanos e animais, num transe festivo.
“Os praiás são homens que incorporam os espíritos, são como santos para a gente. Intercedem com Deus Tupã por nós”, pontua Bárbara. Em movimentos incessantes, os praiás giram em torno do próprio corpo. Inteiramente cobertos com mantos feitos da palha da palmeira caroá, os corpos, escondidos da cabeça aos pés, lembram o orixá Omolu presente nos terreiros de candomblé do Brasil e da África. Na marcação percussiva, dançam no sentido de rotação da terra. Confirmam novos ciclos de vida.
No ritual, mulheres são escolhidas para dançar com um praiá. “A mulher tem que estar limpa, não pode estar menstruada, e estar em abstinência sexual por, pelo menos, um mês”, explica Bárbara. “Chama-se a dança dos animais porque dançamos como o boi, o sapo, a formiga, o urubu”. A participação das mulheres, contudo, é sempre auxiliar. “Mulher não pode ser praiá. Como é que vai estar no toré, trocar de roupa na cabana, ficar sem roupa. Os homens entram e tiram a roupa para descansar e fumar. Como é que a mulher poderia?”
Provenientes do semiárido brasileiro, os frutos redondos, firmes e ligeiramente aquosos dos umbuzeiros são essenciais. “O umbu faz a ligação direta com os encantados”, ela lembra. A comunhão acontece com a ingestão da umbuzada, às vezes também chamada, por corruptela, de imbuzada. Uma receita bastante simples: “Basta pegar o umbu verde, inchado, tirar os caroços e cozinhar a polpa no leite”, ela diz. “Antes, acrescentava rapadura e comia com farinha de murici”, acrescenta. “Hoje, é só leite e, às vezes, açúcar.”
Na festa, galinhas e carneiros completam o banquete. O cardápio já não conta com rãs do mato, cozidas com temperos elementares nas panelas de barro, ou tejus assados na brasa, o que remete a quando os Pankararus eram pejorativamente apontados como “comedores de lagarto”. “Nossa alimentação vem da mãe-terra, por isso tudo é sagrado. Quando a gente está dançando o toré, até a poeira, a gente acredita, é remédio, é alimento”, diz Bárbara, atualmente moradora na Aldeia Bem Querer, no caminho entre Brejo dos Padres e Paulo Afonso. Ela se mudou para lá ano passado, depois da remoção dos últimos posseiros.
Atrás da sua casa, um imóvel chamuscado em ruínas permanece como monumento dos conflitos recentes. Mas, em breve, ela acredita, novos praiás irão ali comer um pirão de carneiro a cada vez que um menino pankararu vier ao mundo. “Somos escolhidos para ter os ensinamentos dos praiás”, ela lembra. Como em outras comunidades indígenas e quilombolas de Pernambuco dedicadas a seus alimentos sagrados, sem umbu ou pirão, não haverá, portanto, pankararus. Em fogo lento, a comida alimenta a identidade.
BRUNO ALBERTIM, jornalista, antropólogo e escritor. Autor de Tereza Costa Rêgo, uma mulher em três tempos (Cepe) e Nordeste – Identidade comestível (Massangana).
ROBERTA GUIMARÃES, fotógrafa profissional, sócia-proprietária da Imago Fotografia, com vários livros publicados, entre os quais O sagrado, a pessoa e o orixá.