Perfil

Uma rua chamada Nelson Rodrigues

Escritor que preferia a vaia à apoteose nasceu há 105 anos e morreu sem ter recebido um prêmio ou desfrutar de aposentadoria, honrando uma produção incansável à qual sempre deveríamos retornar

TEXTO Débora Nascimento

23 de Agosto de 2017

Nelson Rodrigues e a extensão do seu corpo: a máquina de escrever

Nelson Rodrigues e a extensão do seu corpo: a máquina de escrever

Foto Reprodução

Há 105 nascia o bebê Nelson. Na sua candidez de recém-nascido não poderia jamais supor que, cem anos depois, na mesma Rua João Ramos em que veio ao mundo, no Recife, alguém estaria, de frente a um aparelho eletrônico chamado computador, escrevendo sobre seu nascimento, estando cercada por livros de sua autoria. Entre aquele 23 de agosto de 1912 e este 23 de agosto de 2017, muita coisa mudou na sua rua, no seu Recife, no Brasil, no mundo. E Nelson Rodrigues também não sabia que seria um tanto responsável por algumas mudanças, sejam elas no universo teatral, literário e jornalístico brasileiros e, também, na nossa visão sobre o ser humano, a matéria-prima de sua obra.

Para simplificar o conceito sobre quem teria sido Nelson Rodrigues, basta dizer que foi um homem que quis desvendar (e alterar) o comportamento humano. Toda a sua obra é baseada na tentativa de descortinar segredos inconfessáveis de homens e mulheres. Como um psicanalista que analisa distúrbios psíquicos, emocionais, montou o quebra-cabeça de situações e sentimentos, fez a reconstituição dos crimes cotidianos do pensamento. Como uma psicoterapeuta às avessas, criou os traumas dos seus personagens.

Mas há algo que pulsa de sua criação, como um recorrente desejo do inconsciente: inventar contextos propícios para brotarem suas frases emblemáticas. Parece que cada texto rodriguiano era pensado para extrairmos pequenas e grandes lições acerca do ser gente. Foi assim com suas peças, crônicas e até nas entrevistas que concedeu. Nelson divertia-se lançando máximas lapidadas com humor. Muitas delas são aulas de sabedoria de grão-mestre (“O inimigo é um sujeito abominável que deve ser transformado, o mais depressa possível, em amigo de infância”). Ele foi “talvez o maior frasista da língua portuguesa”, afirmou seu biógrafo Ruy Castro.

Essas frases impactantes certamente ajudaram Nelson Rodrigues a se tornar o único autor teatral nacional que alcançou a proeza de ter seu nome circulando em diversas camadas sociais do país. De um lado, escrevia peças que revolucionaram o teatro brasileiro, chocando muitos e deslumbrando outros; de outro, redigia para o torcedor de futebol, para a dona de casa, para os apaixonados. Enquanto isso, concedia entrevistas no rádio e na TV, que o popularizaram a ponto de ser parado na rua por “desconhecidos íntimos” que o saudavam com abraços.

No entanto, uma de suas principais características, o exagero, também se tornou uma espécie de entrave na sua imagem pública. Um exemplo está na famosa frase “As mulheres gostam de apanhar”, dita à apresentadora Hebe Camargo, que questionou: “Todas, Nelson?”. – “Não, só as normais. As neuróticas reagem”. Essa é claramente uma anedota para provocar as mulheres. A brincadeira trouxe repercussão (negativa) ao autor.

Era esse tipo de humor politicamente incorreto que Nelson cultivava e levava às suas crônicas, e ainda era acrescido de uma dose cavalar de exagero. Por exemplo, costumava dizer que Dom Hélder não acreditava em Deus, só olhava o céu para saber se levava ou não o guarda-chuva. Com o religioso tinha um problema antigo e pessoal, explicado na biografia O anjo pornográfico, de Ruy Castro, que não tinha a ver com o conflitante posicionamento político de ambos.

A paixão de Nelson pelas frases de efeito era tanta que um de seus raros amigos, outro reconhecido frasista brasileiro, virou mote em Bonitinha, mas ordinária ou Otto Lara Resende. “O mineiro só é solidário no câncer”, atribuída a Otto, é repetida em diversos momentos da peça por vários personagens. Tamanha exposição foi o suficiente para o jornalista querer se afastar do dramaturgo, pois o uso excessivo da sentença se torna cômico ao longo da história. Após a estreia, Nelson passou o dia em frente à casa do amigo para tentar falar com ele e reverter o embaraço provocado.

Em entrevista a Clarice Lispector, afirmou não ter amigos, no que a autora indaga, “Mas e o Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende?” (que são citados em dezenas e dezenas de crônicas de Nelson). “Não. Eu que sou amigo de ambos. Hoje, antes de vir à sua casa (de Clarice), almocei com Hélio Pellegrino, como faço todos os sábados. Por causa de uma opinião minha, ele com a sua cálida e bela voz de barítono de igreja, dizia para mim: ‘É mentira, é mentira!’ Nunca me ocorrera nesta encarnação ou em vidas passadas, chamá-lo de mentiroso. (…) O Otto nunca me deu um telefonema. Estou dizendo isso com a maior, a mais honrada, a mais inconsolável amargura”.

Nelson era afetivo com quem gostava, mas se transformou em uma persona non grata para várias pessoas, principalmente por representantes da esquerda e muitos colegas de profissão, afinal não poupava críticas à “festiva”, aos comunistas, aos socialistas e ainda fazia vista grossa ao regime militar – até que seu próprio filho, preso e torturado, se tornou mais uma das vítimas do autoritarismo.

Essa porção reacionária de Nelson foi explicada por Ruy Castro. Para ele, o autor ficou eternamente grato a governos, desde que sua família foi salva da extrema pobreza, graças a Getúlio Vargas. A fome pela qual o escritor passou na sua infância, no Recife e também no Rio, deixou marcas na sua alma e no corpo, gerando um de seus maiores problemas de saúde, uma terrível úlcera (“Nas minhas crônicas, falo de minha úlcera como de uma pessoa da família, uma espécie de parenta velha, de tia surda”).

Esse reacionarismo foi lembrado por Paulo Francis no texto que escreveu após a morte do dramaturgo, em 21 de dezembro de 1980. “Admito que a questão do filho é um atenuante, mas atenuante não é justificativa.” O jornalista afirmou que faria um artigo falando dos defeitos de Nelson, contrariando a onda de elogios, mas cometeu injustiças irreparáveis. Uma delas foi afirmar que o dramaturgo redigira apenas 30 crônicas, e o resto seria repetição.

Os lançamentos dos textos de Nelson, nos anos 1990, trataram de provar exatamente o contrário. Ele escreveu sobre dezenas e mais dezenas de temas, chegava, sim, algumas vezes, a recorrer a frases e pensamentos já elaborados, mas o fazia de forma consciente: “As coisas ditas uma vez, e só uma vez, morrem inéditas”.

Francis também afirmou que, nos três anos em que trabalhou na mesma redação com o veterano jornalista, fez uma descoberta: “Nelson não lera nada, verifiquei nesse período de intimidade”. Outro absurdo, pois Nelson Rodrigues costumava dizer que o importante não era ler, mas reler. Dois de seus autores bastante relidos eram Dostoiévski e Machado de Assis. Ele também mostrou que, para escrever bem, era necessário “escrever, escrever e escrever”. E como escrevia! Apesar de ter feito um teatro baseado em frases coloquiais, seus textos literários comprovam o talento para contar histórias, montar raciocínios, usar metáforas inesperadas, salpicar ironia e humor imprevisíveis.

Se Nelson não devorava livros era porque estava ocupado durante todo o dia diante da máquina de datilografia, produzindo avidamente com os dedos indicadores nas teclas. Segundo testemunhas de redação, ele pegava o papel, colocava no rolo e seguia datilografando direto, sem interrupções e correções, até o texto final. À noite, já em casa, ainda criava suas peças. Um workaholic.

Trabalhava muito porque precisava e não sabia cobrar de acordo com seu talento e reputação. Por diversas vezes, nas décadas de 1950 e 1960, chegou a manter colunas diárias em dois ou três jornais. “É provável que nenhum outro escritor brasileiro tenha produzido tanto”, disse Ruy Castro. Em 55 anos como jornalista, escreveu incontáveis matérias de jornais, artigos e crônicas, que chegam a milhares (só esportivas foram mais de 5 mil), 17 peças, um romance e oito folhetins.

Provavelmente, esse excesso de trabalho, aliado ao fumo de cigarro e ao sedentarismo, foi o fator decisivo para apressar-lhe a morte, por ataque cardíaco, seguindo a mesma sina de seu pai Mário Rodrigues, aos 45 anos, e do irmão Mário Filho, aos 66 anos.

Nelson morreu aos 68 anos, sem ter recebido um prêmio, sem desfrutar de aposentadoria, de descanso e da renovação de sua popularidade, que ocorreria nos anos 1990, com a reedição de livros, lançamento de textos inéditos, biografia, exibição das séries televisivas A vida como ela é e Engraçadinha. Isso o teria deixado realmente feliz, apesar da declaração: “Entre a apoteose e a vaia, não tenho nenhuma dúvida: fico com a vaia”.

Essas reedições só foram possíveis porque Ruy Castro travou uma batalha com a Companhia das Letras para convencer a editora a relançar o autor. Conseguiu porque o seu aclamado Chega de saudade era um best-seller. A fama de reacionário de Nelson maculou seu nome por mais de duas décadas.

O que ainda surpreende nestes mais de cem anos do escritor é o Recife não saber usufruir do fato dele ter nascido na cidade. Na rua onde nasceu e viveu por alguns anos – até 1916, quando seu pai, por questões políticas, foi obrigado a sair de Pernambuco –, não há nenhuma homenagem oficial, como estátua, busto ou simplesmente uma placa comemorativa. Na cidade não há um teatro com seu nome. Mas, simbolicamente, a João Ramos, no bairro das Graças, é daquele anjo que se tornaria pornográfico, a Rua Nelson Rodrigues.

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