Recife é uma cidade que dança, como tantas outras espalhadas por este Brasil continental, nas suas múltiplas idiossincrasias. As cidades se movimentam, sacodem seus habitantes de um canto a outro, desalinham vivências para alinhar avenidas, prédios, pontes, ruas, vielas. As cidades dormem ou permanecem acordadas durante as noites. Nessa dança chamada vida, a coreografia dos corpos que rasgam o tecido urbano encena narrativas que fazem de cada um de nós ser alguém, ou melhor, ser gente, simplesmente.
E, se o Recife dança, o Experimental é um dos grupos que, ao longo de 30 anos de trajetória, transforma e traduz fragmentos de seu lugar de origem. A partir dessa cidade, o grupo diz, através da dança e dos movimentos, o que, muitas vezes, a semântica das palavras não consegue alcançar.
Em 1993, seis jovens artistas – Mônica Lira, Renata Lisboa, Sonaly Macêdo, Ivan Dantas, Ana Emília Freire e Duda Góis – ensaiaram as primeiras configurações do que viria a se tornar o Grupo Experimental. Era 24 de dezembro daquele ano e, durante uma ceia de natal, no antigo Hotel Quatro Rodas, em Olinda, aquela apresentação seria a estreia de uma das principais companhias dedicadas à criação e formação em dança contemporânea do Estado.
O grupo em apresentação no Teatro do Parque.
Foto: Rogério Alves/Divulgação
Hoje, o grupo já assina a criação de mais de 20 obras, entre os quais Zambo (1997), Conceição (2007), Lúmen (2002), Pontilhados (2016), Barro-Macaxeira (2001) e Breguetu (2015). Essas e outras criações nascem a partir de muita pesquisa sobre a cultura do Recife – ou das múltiplas Recifes que habitam esta territorialidade compreendida como cidade. É como se, através do que foi e é construído pelo Experimental, pudéssemos fazer uma cartografia simbólica deste lugar. Porém, sem perder a conexão com o mundo.
Com uma trajetória reconhecida no campo artístico, o grupo conquistou diversas categorias de prêmios da Apacepe, o Klauss Viana, além de circular por por todas as capitais brasileiras, América do sul e Europa levando a dança de Pernambuco. No primeiro semestre de 2023, inclusive, a obra Pontilhados foi apresentada em Medellín, na Colômbia. Ainda no ano passado, pela contribuição e dedicação à dança, a diretora do Experimental Mônica Lira foi homenageada na 26ª edição do Festival de Dança Internacional do Recife, que aconteceu em outubro, com o tema Dança e existência.
INQUIETOS
Como próprio nome sugere, a gênese do grupo nasce da inquietação de artistas que tinham vontade de “experimentar” em outras linguagens, para além das que já vinham trabalhando na Cia. dos Homens, dirigida por Airton Tenório, da qual alguns deles faziam parte. Dali em diante, a identidade estética do Experimental foi sendo talhada e aperfeiçoada.
Com a primeira versão de Zambo, em 1997, assinado por Sonaly Macêdo e Mônica Lira – que traz uma dramaturgia ligada à estética do movimento Manguebeat e inspirada na performance de Chico Science –, o grupo começa a se aprofundar em uma investigação mais própria, “mais personalizada, falando como dança, como esse corpo do Recife.” “As questões da cidade eram o que pulsava, para mim, especialmente como criadora. O que me tocava e o que me toca, até hoje, é o que toca o outro”, sintetiza a bailarina, coreógrafa, pesquisadora, artista da dança e diretora do Experimental Mônica Lira, em entrevista à Continente.
Alguns outros temas que costuram o cotidiano pernambucano – mas, sobretudo, o dia a dia recifense– marcam a história do Experimental. Barro-Macaxeira, por exemplo, obra assinada por Lilli Rocha, Mônica Lira e Valéria Vicente, desde o título faz menção ao percurso que o ônibus de mesmo nome faz ao longo da cidade. Com uma dramaturgia construída em torno de personagens marcantes que costumam se locomover por meio desses transportes coletivos, a obra é bastante lembrada pelo público que acompanha a trajetória do grupo ao longo desses anos.
Conceição (2007), por sua vez, traz uma reflexão sobre a fé, as relações entre o sagrado e o profano e desenvolve uma pesquisa intensa e emocionante em torno da festa de Nossa Senhora da Conceição, que faz parte do calendário anual da Zona Norte da cidade, levando milhares de fiéis e admiradores ao Morro da Conceição, em busca da benção da santa. A partir de uma capital litorânea, não dá para deixar a praia de fora e, aí, o histórico Edifício Holiday, em Boa Viagem, um marco arquitetônico de mais de 470 apartamentos, que se tornou símbolo de resistência sobre a memória local, foi mote da pesquisa e criação que resultou na obra Quincunce (2000).
Espetáculo Pontilhados, apresentado no Bairro do Recife.
Foto: Rogério Alves/Divulgação
TRAJETÓRIAS MARCADAS
Dentre as tantas vozes, histórias e corpos que alinhavam a vida dançante do Experimental, conversamos com alguns dos que costuram a trajetória do grupo. Cada um relata fragmentos marcantes em algum momento nessas três décadas. Um dos artistas da dança que tem sua história circunscrita ao Experimental é Daniel SemSobreNome. Ele nasceu em Paulista e foi criado no bairro do Ibura, com a dança fazendo parte de sua vida desde a infância. Daniel diz que sempre cultivou o interesse pelas danças populares, sobretudo as quadrilhas juninas, mas só foi conhecer o Grupo Experimental, em 2003, numa comemoração dos 10 anos da companhia. Era dia de apresentação dos trabalhos Quincunce e Barro-Macaxeira, no Teatro Armazém 14, e o jovem ganhou o convite da prefeitura. “Quando assisti, aquilo me levou para um lugar… Me abriu um portal que eu disse: ‘é isso que quero fazer da minha vida: dançar.’ A oportunidade de assisti-los me fez entender que aquilo poderia ser o meu trabalho”, relembra Daniel, em entrevista à Continente.
Hoje, Daniel já viajou por vários países levando sua arte. E, no início de seu aperfeiçoamento profissional na dança, procurou Mônica Lira para tentar realizar algumas aulas. Desse modo, em 2004, o artista começou a integrar a primeira turma do Núcleo de Formação em Dança, projeto social do Grupo Experimental, em que jovens participavam de aulas de dança contemporânea, balé clássico, além de receberem atendimento psicoterapêutico, fundamentação teórica e subsídios para se dedicarem à arte da dança. Permanecendo em atividade entre 2004 e 2014, esse importante projeto para a cultura da dança no Estado fez parte da formação de mais de 600 jovens e teve atuação distribuída ao longo de 13 comunidades da Região Metropolitana do Recife.
Posteriormente, Daniel se tornou professor do Núcleo de Formação e pôde compartilhar seus aprendizados. “O que o Experimental me deu, eu pude entrar em vários lugares. É uma potência da consciência corporal, de movimentação, de criação”, comenta.
Outra artista pernambucana da dança cuja vida está ligada ao grupo é Rafaella Trindade. Em 2008, ela integrou o elenco de Quincunce, numa apresentação do Festival de Inverno de Garanhuns. Mas a arte está na vida de Rafa desde criança. Além de ser filha de Mônica Lira, diretora do Experimental, o seu pai, Beto Trindade, trabalha com iluminação teatral. O ambiente artístico já era cenário de suas vivências desde pequena. Chegou a estudar balé clássico por muitos anos, mas, na adolescência, se interessou pela dança contemporânea. Frequentando as aulas no Núcleo de Formação em Dança do Experimental, diz que pôde enxergar “o que a dança é capaz de fazer e transformar.” “O Experimental, para mim, é uma escola de vida, de trocas humanas. Uma escola não só de dança, mas de todos os aprendizados, de transformação, formação, evolução como ser humano”, complementa sobre a sua experiência. Desde 2018, ela colabora com a produção do grupo.
Intervenção de Zambo com o espetáculo Pontilhados, em Medellín.
Foto: Checho/Divulgação
Christianne Galdino – jornalista, pesquisadora, produtora cultural e artista, com pesquisas na área de Antropologia direcionadas às artes cênicas – já acompanhava as criações assinadas pela companhia, mas estreitou sua relação com o Experimental em 2007. “Sou uma pessoa da dança desde sempre. Fui bailarina do Balé Popular do Recife, professora e diretora de grupo e a minha relação com o Experimental, que já era uma referência para mim, se intensificou quando comecei a fazer os primeiros trabalhos, em 2007. Logo em seguida, assumi a produção do grupo. Sempre foi uma produção não só executiva, mas engajada com o trabalho criativo, participando das pesquisas e criação, elaboração e concepção dos projetos. De 2007 a 2010, fiquei trabalhando exclusivamente com o Experimental”, relembra Chris, e complementa: “esses foram anos de muita produtividade no Experimental, porque ele não é só uma companhia de dança, tinha todo um projeto de formação, era uma escola também, um espaço de convergência onde também aconteciam ações, apresentações, atividades relacionadas à dança, quando se tinha a sede. E teve também o projeto social Núcleo de Formação em Dança, foi quando a gente conseguiu um apoio da Secretaria Estadual e Juventude e fizemos o Núcleo de Dança nas Comunidades.”
Compreender a importância de um espaço para o grupo, que atualmente não tem uma sede, traz uma reflexão sobre o que já foi plantado ao longo dessas décadas de trajetória, mas também dos dez anos em que o Núcleo de Formação em Dança fez parte da vida de jovens interessados em participar do projeto. Além disso, um local fixo para os ensaios e pesquisas proporciona a possibilidade do coletivo trocar e desenvolver obras, a partir de investigações de movimento e da linguagem da dança diariamente.
“O Experimental voltar a ter um espaço seria muito importante como reconhecimento (do grupo), claro, mas também como espaço onde a criação e a formação convergem. Tanto o espaço de criação fortalece o espaço de formação, quanto o espaço de formação fortalece a criação. Durante o Núcleo de Formação foi natural que vários bailarinos fossem sendo formados no projeto”, defende Chris Galdino.
Espetáculo Conceição (2007). Foto: Rogério Alves/Divulgação
Embora trace uma espécie de mapa simbólico a partir de seu conjunto de obras, o Experimental encontra no Bairro do Recife o lugar talvez mais marcante em sua trajetória. Pois foi por ali que começou ocupando o edifício onde hoje funciona o Teatro Hermilo Borba Filho, que na época, entre 1997 e 1998, fora cedido pela Prefeitura. O Espaço Experimental passou também pelo edifício, onde atualmente funciona o Paço Alfândega, entre 1998 e 2000, até chegar a sua sede mais conhecida: o espaço na Rua Tomazina, que ocupou de 2000 a 2018.
“Foi onde a gente ficou por mais tempo, 18 anos”, conta Mônica Lira. Desde 2018, no entanto, o Experimental está sem um espaço fixo para ensaios e o desenvolvimento de seus trabalhos. “Um sentimento de ser arrancado de seu local de trabalho, que é como se fosse nossa casa. Igual aos habitantes do Edifício Holiday, que foram obrigados a saírem de suas casas, assim como nós (do Experimental), da nossa”, comenta a diretora Mônica Lira. A saída se deu porque os proprietários do prédio pediram o local para realizar uma reforma e o grupo recebeu a notificação para desocupar o prédio em até 15 dias, com o compromisso de realocá-los após a obra. Porém, até hoje o Experimental não teve nenhum retorno ou resposta sobre a reocupação do prédio.
A artista independente e produtora cultural Lilli Rocha atuou durante 17 anos como bailarina do Experimental e também como assistente de direção de Mônica Lira. Sua chegada converge com o momento em que saiu da faculdade de Artes Cênicas e, na época, decidiu participar das aulas do grupo para aperfeiçoar-se na dança. Em cerca de dois meses, ela já estava fazendo aulas todos os dias. Um ano e meio depois, Lilli entrou para o elenco do grupo, tornando-se uma das professoras do Núcleo de Formação em Dança. Em meio à convivência diária, ela diz que o período foi como uma vivência de “uma família mesmo”.
Espetáculo Caosmose. Foto: Rogério Alves/Divulgação
E entre as parcerias duradouras que fazem parte dessa “família” Experimental, o designer Carlos Moura desenvolveu várias criações no campo visual para diversas obras do grupo, entre os quais Breguetu, Pontilhados e a mais recente Caosmose, além de criar uma das primeiras marcas. “Todo espetáculo do Experimental é baseado em um conceito apresentado por Mônica. Minha paixão (entre os trabalhos) é Lúmen, que fala do cinema, por ser incrível enquanto resultado visual, de atuação do elenco, da luz, da coreografia e também pelo cinema”, conta.
Bailarina, poeta, atriz, dramaturgista, diretora, palhaça, entre outras formas de expressão, Silvia Góes também teve um encontro especial com o grupo.Ela percebe a atuação do Experimental, no cenário da dança, como: “Essencial, entrelaçadamente fundamental, intrínseca, indescritível. Está nas raízes dos pés de muitas bailarinas, bailarines, bailarinos, dançarinas, dançarines, dançarinos, gente que estuda, pensa, discute, filosofa, pesquisa muito, treina, sua, cria, oferta, cuida, dança essa arte por aí pelo mundo como guiança de caminhada.” Em parceria com Mônica Lira, Silvia assina a dramaturgia de trabalhos como Pontilhados e Caosmose. Essa última também conta com Christianne Galdino, Renata Pimental e Mônica Lira na criação dramatúrgica.
Para a artista, escritora e professora Renata Pimentel, que estudou ballet clássico durante 20 anos, o Experimental foi capaz de “alargar” o seu olhar – e corpo inteiro – em torno da dança. “De tanto assistir a todos os trabalhos do Experimental, em algum momento, eu e Mônica nos conhecemos e acabei começando a colaborar com o grupo em algumas criações. Sempre tem pessoas gravitando próximas ao grupo, seja pelo afeto, pela linguagem, formação, pois são gerações e gerações formadas a partir dele”, comenta a pernambucana, que também assina, com Mônica, a dramaturgia trazida no longa Conceição em nós (2021).
A verve coletiva que circunscreve o Grupo Experimental, desde o início, não o limita a ser uma companhia de dança, simplesmente, pois, a cada conversa e pesquisa sobre arquivos que evidenciam a sua história, o que transparece é a memória sobre as trocas e a ampliação do individual para o conjunto, além da importância que o espaço de formação teve para muitos e muitas artistas da dança espalhados pelo Estado – e até pelo mundo, já que “ao mesmo tempo em que entranha nossas raízes no Recife, o Experimental é capaz de olhar do telescópio para outros lugares”, como bem sintetiza Renata Pimentel sobre a trajetória desta importante força criadora.
ERIKA MUNIZ, jornalista com formação também em Letras