Os 60 anos de um coração rebelde
Em 35 anos de carreira, Madonna, que completa seis décadas, transformou a música pop num palco para rebeliões contra preconceitos
TEXTO Débora Nascimento
16 de Agosto de 2018
Madonna
Foto Reprodução
Desde 1977, o 16 de agosto havia se tornado uma data simbólica na história da música. Foi o dia em que Elvis Presley (não) morreu. Naquele mesmo ano em que partia precocemente o Rei do Rock, aos 42 anos, enclausurado em sua mansão em Memphis, um novo gênero musical ocupava um lugar privilegiado nas gravadoras, nas TVs, nas rádios, na preferência dos ouvintes, a disco music. Enquanto isso, no underground, o punk rock rejeitava a ostentação musical do rock progressivo, das opera rock, dos guitar heroes, das parafernálias dispendiosas e apresentava aos pobres mortais a possibilidade de tocarem e cantarem com parcos recursos técnicos e musicais.
No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, impulsionado pela existência de um público que queria continuar dançando, surgia um novo Rei na música, Michael Jackson. O cantor já havia trilhado uma carreira de sucesso com os irmãos no Jackson 5. Agora, em seu trabalho solo, alcançaria voos espetaculares com Off the wall (1979) e Thriller (1982). Em 1983, o artista, então o mais popular do mundo, ainda colhia os frutos de seu disco acachapante, vencedor de oito Grammy`s, quando uma novata chegou ao mercado fonográfico. A cantora despontava com um álbum autointitulado, Madonna, e emplacou alguns hits, Holiday, Borderline, Lucky star, Everybody.
Com um visual que trazia elementos do punk (roupas rasgadas, jeans, jaquetas, cabelos desgrenhados, botas) e uma proposta de botar o público pra dançar a partir de uma ótica feminina, ela destoava bastante do bem-comportado Michael. Embora tenha surgido com uma postura mais palatável que a dos punks, a garota não era menos rebelde. Os detratores, no entanto, imaginavam que fosse apenas um fenômeno mercadológico, midiático. E, como tal, passageiro. Imaginaram em vão...
Assim como Michael Jackson, Madonna beneficiou-se de começar a carreira solo num ambiente em que o rádio ainda era um forte influenciador do público e aliado das gravadoras e o advento de um canal contribuiria para divulgar a imagem dos artistas, a MTV, que estreara em 1981. Três décadas antes, Elvis havia sido beneficiado pela popularização da TV nas residências. Antes de verem o rosto do cantor na televisão, muitos acreditavam que ele, inclusive, fosse negro – isso certamente por conta de seu belo timbre vocal e de sua interpretação cheia de ritmo.
A aparição do Rei do Rock foi importantíssima para que houvesse, num futuro, Michael e Madonna. O seu requebrado insinuante colocou em polvorosa a sala de estar das famílias. Sua famosa dança provocou uma mudança no enquadramento das emissoras de TV. Com essa censura visual, que, do corpo inteiro, passou a focar do peito para cima, as TVs acabaram por aproximar o(s) artista(s) dos telespectadores. Esse tipo de tomada seria bastante utilizada, décadas à frente, no período de popularização dos videoclipes. Basta lembrar de Michael em Thriller e Madonna em Live to tell.
Ela, assim como Prince, conseguiu uma façanha, conquistar um lugar ao sol no pop durante o reinado de Michael Jackson nos anos 1980. Mas ela alcançou uma proeza maior: vencer o patriarcado no topo do gênero musical mais rentável, e que ainda contava com o brilhantismo de George Michael. Poderíamos colocar nesse panteão Whitney Houston, que surgira em 1985. Mas, embora tenha lançado uma grande canção pop, I wanna dance with somebody, Whitney logo demarcou o seu território, o R&B, o qual dominou com sua voz espetacular, priorizando as baladas românticas, influenciando uma infinidade de cantoras, como Christina Aguilera, Adele, Rihanna, Lady Gaga e Beyoncé... Em Madonna, as duas últimas, em particular, se inspiraram para realizar espetáculos grandiosos com dançarinos e videoclipes bombásticos, que provocassem repercussão para além da música.
Antes da efervescência das redes sociais, Madonna movimentava a imprensa com polêmicas, popularizando, com isso, a palavra “marketing”. Seu próprio nome, que significa a representação artística da Virgem Maria, já parecia ser uma provocação. Até cogitou-se que não fosse verdadeiro. Tudo o que ela fazia era – ou parecia ser – meticulosamente calculado para virar notícia. Mas, no meio disso tudo, conseguiu colocar questões relevantes em discussão.
Em 1989, o clipe Like a prayer abordou o racismo. Apresentou um santo negro, que, humanizado, foi acusado injustamente pela polícia de um crime contra uma mulher. Naquele mesmo ano, a artista lançou uma canção que se tornou um manifesto de empoderamento feminino, Express yourself. A música também foi abraçada pela comunidade LGBT como um hino para sair do armário e enfrentar o mundo. Não é à toa que, a partir de então, a quantidade de fãs gays de Madonna aumentou.
Em letras e clipes de músicas como Like a virgin (1984), Justify my love (1990) e Erotica (1992), a cantora explorou a liberdade sexual, causando muita polêmica. Hoje, colocar o sexo nos videoclipes não provoca mais tanto alvoroço. Se, em 2016, Rihanna lançou Work, work, work, deve isso ao caminho traçado anteriormente por Madonna, que pagou um preço.
“Meu muso verdadeiro era David Bowie. Ele personificava o espírito masculino e feminino e isso me agradava. Ele me fez pensar que não havia regras. Não há regras se você é um garoto. Há regras se você é uma garota. Se você é uma garota, você tem que jogar o jogo. Você tem permissão para ser bonita, fofa e sexy. Mas não pareça muito esperta. Não aja como você tivesse uma opinião que vá contra o status quo. Você pode ser objetificada pelos homens e pode se vestir como uma prostituta, mas não assuma e se orgulhe da vadia em você. E não, eu repito, não compartilhe suas próprias fantasias sexuais com o mundo. Seja o que homens querem que você seja, e mais importante, seja alguém com quem as mulheres se sintam confortáveis por você estar perto de outros homens”, disse no discurso para receber o prêmio Mulher do Ano de 2016 da Billboard.
Hoje, 35 anos após o início de sua carreira, as mulheres são as maiores estrelas do mercado fonográfico: Beyoncé, Adele, Taylor Swift, Rihanna, Katy Perry, Lady Gaga, Ariana Grande... Foi destruído o patriarcado do pop e erguido um matriarcado, liderado por Madonna, que ocupa o primeiro lugar na lista dos músicos mais ricos do mundo. É a quarta artista que mais vendeu discos na história (300 milhões) e a mulher que mais comercializou álbuns no competitivo mercado fonográfico dos Estados Unidos (65,5 milhões).
A trajetória dela até se tornar a Rainha do Pop é a própria jornada do herói. Terceira de seis filhos de uma família ítalo-americana da classe operária de Michigan, Madonna Louise Ciccone ficou órfã de mãe aos cinco anos. A mãe, que tinha os seus dois primeiros nomes, Madonna Louise Fortin, morreu de câncer de mama aos 31 anos, evento que marcou a vida da filha. Sem se dar bem com a madrasta e com a rigidez do pai, em 1978, a garota saiu de Detroit para tentar a sorte em Nova York, cumprindo a mesma sina de outros artistas que deixaram suas terras natais com o intuito de vencer na tal metrópole, como Patti Smith e Bob Dylan.
Segundo a artista, ela não conhecia ninguém na cidade, tinha apenas 35 dólares no bolso, chegou a procurar comida em latas de lixo e sobrevivia posando nua para trabalhos artísticos. Queria ser reconhecida como dançarina. Mas, ao receber várias negativas, considerou que, se cantasse, seria mais bem-sucedida. Aprendeu a tocar instrumentos, como bateria e guitarra, chegando a participar de bandas de rock.
Um dia, foi descoberta por Seymour Stein, diretor da Sire Records, selo da Warner, gravadora de Madonna até 2010. Em palestra no Porto Musical do Recife, em 2009, o executivo, que havia sido responsável pela contratação do Talking Heads e dos Ramones, contou que, na primeira vez que conheceu a aspirante, percebeu que ela seria uma estrela. Aos 25 anos, ela era a mistura de talento, determinação, ambição, beleza, vigor, humor, inteligência (seu QI é 140) e carisma. Havia ainda a autoconfiança, uma característica tão forte nela, que é quase palpável.
Foi esse elemento fundamental que lhe deu força para ser a dona de sua carreira e de sempre se lançar ao risco, mesmo quando parecia ter encontrado uma receita definitiva de sucesso. Ousou em cada álbum e turnê e não apelou para receitas fáceis, como acústicos, álbuns de duetos e de covers. Camaleônica, tendo David Bowie como referência, conseguiu se reinventar e ir em busca dos melhores produtores musicais para os seus discos. Em 1984, a produção de Like a virgin foi feita pelo mago da disco music, Nile Rodgers, compositor do Chic. Um ano antes, ele havia produzido Let's dance, o álbum de maior impacto popular de Bowie. Poucos produtores lhe dizem não, como a dupla do Daft Punk.
O triunfo de Madonna é a vitória de uma linha cronológica musical que envolve tantas outras mulheres, Odetta Holmes, Doris Day, Leslie Gore, Aretha Franklin, Diana Ross, Ronnie Spector, Cher, Tina Turner, Janis Joplin, Stevie Nicks, Liza Minnelli, Barbra Streisand, Patti Smith, Debbie Harry, Joni Mitchell, Chrissie Hynde, Kate Bush, Grace Jones, Donna Summer... Ao contrário dessas, ela contou com o acaso de despontar na era dos videoclipes, capitaneada pela MTV. Com isso, passou a ser um farol de irreverência para garotas e garotos. Assim como os pais dos anos 1950, que compraram as TVs nas quais os filhos viram Elvis, os dos anos 1980, 1990 e 2000 também não sabiam que uma revolução estava acontecendo dentro de sua própria sala de estar.
Elvis morreu aos 42 anos, recolhido em sua Graceland. Não excursionou pelo mundo. Passou seus últimos dez anos se apresentando num único lugar, Vegas, como um extraordinário animal de zoológico. Encontrou uma fórmula de sucesso e fincou os pés nela. Madonna rompeu os limites territoriais, viajando ao redor do planeta, se apresentando para milhões de pessoas. Teve a vantagem, também, de eclodir numa década que exaltava o corpo saudável, o exercício físico, a boa alimentação. Esculpiu seus músculos, quebrando regras de como deve ser a silhueta feminina. Ao pintar de loiros os cabelos castanhos, numa tentativa de ser uma Marilyn Monroe contemporânea, se tornou uma espécie de vingança de Marilyn Monroe, que pagou um preço muito alto por ter sido a mulher sexy e sexualizada que foi. Madonna, ao contrário, se sexualiza, está no comando.
“Eu acho que a coisa mais controversa que eu já fiz foi ficar aqui. Michael se foi. Tupac se foi. Prince se foi. Whitney se foi. Amy Winehouse se foi. David Bowie se foi. Mas eu continuo aqui. Eu sou uma das sortudas e todo dia eu agradeço por isso. O que eu gostaria de dizer para todas as mulheres que estão aqui hoje é: Mulheres têm sido oprimidas por tanto tempo que elas acreditam no que os homens falam sobre elas. Elas acreditam que elas precisam apoiar um homem. E há alguns homens bons e dignos de serem apoiados, mas não por serem homens, mas porque eles valem a pena. Como mulheres, nós temos que começar a apreciar nosso próprio mérito. Procurem mulheres fortes para que sejam amigas, para que sejam aliadas, para aprender com elas, para as que inspirem, apoiem e instruam”, falou no supracitado discurso.
Neste mítico 16 de agosto, dia da morte do Rei do Rock e agora da Rainha do Soul Aretha Franklin, Madonna faz 60 anos como o maior exemplo de longevidade bem-sucedida e de serviços prestados em prol das boas causas na música pop, a exemplo da luta contra a Aids, a fome na África e o preconceito contra a mulher e homossexuais. Nesses 35 anos de carreira, não há um ano sequer em que ela não tenha realizado algo, seja disco, show, trilha sonora, filme, livro, protesto, filho... Agora também não há uma semana sem uma postagem sua nas redes sociais (ela mesma posta), seja com seus seis filhos (dois biológicos e quatro adotados) sem maquiagem, exibindo o impacto da idade no seu rosto e corpo, desafiando o ageísmo, o etarismo, o preconceito em relação à idade. Após três décadas de tantas mudanças, o fenômeno Madonna persiste. God save the Queen.