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Mais do que uma escala em sânscrito

Os 30 anos do grupo musical SaGrama, que encanta as plateias do Brasil, com a força de um pregão e a contenção de uma prece

TEXTO Marina Suassuna

25 de Junho de 2025

Foto Helder Ferrer/Divulgação

“Não conheço nenhum grupo de música instrumental que se sustentou por tanto tempo. São raros os grupos instrumentais que chegam a três décadas no Brasil”, informa Sérgio Campelo. Ele é professor de flauta transversa do Conservatório Pernambucano de Música (CPM), diretor artístico e principal arranjador do grupo SaGrama, que está completando 30 anos de atividades ininterruptas, com todo vigor, em agosto deste ano de 2025.

Com os professores e instrumentistas Antônio Barreto e Cláudio Moura, Sérgio Campelo formou a base do grupo que encanta as plateias com suas apresentações ao vivo.

O SaGrama se mantém ativo, lapidando um trabalho bastante autoral em estúdio, que se consolidou numa discografia composta por 10 álbuns. Mais de 100 convidados já tocaram com o grupo, que, além dos fundadores Sérgio Campelo (flautas, arranjos) Cláudio Moura (viola nordestina, violão, arranjos e co-direção) e Antônio Barreto (marimba, vibrafone e percussão) , tem, na sua formação atual, os músicos Crisóstomo Santos (clarinete e clarone), Ingrid Guerra (flautas), Aristide Rosa (violão), João Pimenta (contrabaixo acústico), Tarcísio Resende (percussão), Dannielly Yohanna (percussão) e Isaac Souza (percussão).

“Me impressiona como o grupo é heterogêneo, tanto de currículo como de idade e formação. Os três músicos principais têm formação e experiências fora do Brasil, na Suíça, França e Portugal. Ao mesmo tempo, há dois integrantes da formação atual que vieram de projetos sociais. É um grupo muito inclusivo”, conta Manuela Vieira, atual produtora do SaGrama.

Parte dessa longevidade se deve ao comprometimento dos fundadores com uma rotina de ensaios que mantém ativa a raiz e a dinâmica do grupo. “O SaGrama tem uma unidade, uma identidade e um jeito de tocar por causa do trabalho enorme que a gente faz todas as terças e quintas, religiosamente, no Conservatório, com sala aberta, os alunos vindo assistir, fazendo perguntas”, conta Sérgio.

Criado em 1995, a partir de uma disciplina do Conservatório Pernambucano de Música, o SaGrama preserva seu núcleo de três professores. “A princípio, o SaGrama era um trabalho de música de câmara erudita, principalmente a música erudita brasileira, tocando clássicos como Villa-Lobos, Radamés Gnatalli, Camargo Guarnieri. Depois começamos a entrar no popular erudito, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga. Quando a percussão entrou, já ficou algo parecido com o SaGrama atual”, explica Sérgio.

Naquela época, Antonio Barreto tinha acabado de chegar da Suíça com um arsenal de instrumentos percussivos melódicos que, até então, não eram comuns no Brasil. “Hoje temos marimba, vibrafone e xilofone porque Antônio trouxe de fora, ele investiu. Todos que tocam percussão aqui hoje, passaram por ele”, diz Sérgio. “Foi muito importante porque juntou com a percussão da casa e da região”, afirma Antônio.

Responsável por resgatar a história do SaGrama e capitanear as comemorações dos 30 anos do grupo, Manuela Vieira, do Móbile Studio Recife, confirma que “mesmo com o passar do tempo, existe uma fidelidade do grupo em permanecer do jeito que era desde o começo”. Ela recorda um episódio inusitado: quando o SaGrama participou da nona edição do Festival Abril pro Rock, em 2001, no Centro de Convenções do Recife.

Na ocasião, o grupo destoava do restante das atrações, o que chamou atenção da plateia roqueira, que os recebeu de maneira bastante amistosa.

“Os músicos estavam com receio de não serem bem-recebidos porque tocaram antes de Lobão. Quando subiram no palco, as pessoas que estavam assistindo ficaram encantadas com aquela sonoridade. Mesmo sendo um festival de rock, algumas pessoas da plateia já conheciam o som do SaGrama”, conta Manuela.

 “Na ocasião, a produção do festival pediu que a gente acrescentasse umas alfaias bem fortes, mas eu me neguei, disse que estávamos ali pra fazer o som do SaGrama”, lembra Sérgio.

As comemorações de aniversário começaram em novembro de 2024, no palco do Teatro do Parque, com apresentação do espetáculo Na Trilha dos 30, que teve participação especial de Spok, Isadora Melo, Rafael Marques e Martins. Até o final de 2025, ele prossegue em ritmo de celebração, com previsão de novos lançamentos, incluindo gravações, videoclipes  e um livro.

“A gente pensava: será que vamos conseguir chegar aos 30? Queríamos e queremos uma história perene para o SaGrama. Inclusive ser tema de estudos, ter uma espécie de memorial. Sempre pensamos nisso. Se a gente se juntasse só para fazer música e ficar esperando fechar contratos para show, o grupo talvez já tivesse acabado”, avalia Sérgio Campelo.

Foi necessário o SaGrama encontrar o compositor e percussionista Dimas Sedícias (1930-2001), para incorporar o repertório sonoro que projetou a orquestra. Grande incentivador do grupo, Dimas havia morado 12 anos na França e teve contato com a produção musical de vários países europeus, sem nunca deixar de lado as tradições musicais nordestinas. Além de ter gravado os seis primeiros discos do SaGrama, Dimas tocava com os músicos na Orquestra Sinfônica do Recife e também em orquestra de frevo. “Ele disse que nós tínhamos uma sonoridade diferente, exótica, que não havia conhecido nada parecido pelo mundo e que devíamos explorar mais esse lado. Ele começou a nos trazer músicas prontas, composições escritas especialmente para aquela nossa formação. Uma das primeiras composições que ele trouxe para a banda foi o Boi Babá, um boi de Carnaval”, recorda Sérgio.

DISCOGRAFIA & PREMIAÇÕES
Com uma rotatividade de músicos, o SaGrama começou a explorar, ainda na década de 1990, as particularidades de cada um dos três compositores. “Cláudio puxava pro erudito, fazendo músicas bem diferentes, com linguagens e compassos mais contemporâneos da música erudita universal. Dimas era completamente popular, ele que nos apresentava maracatu rural. Eu sempre fui misto, por ser da Orquestra Sinfônica, conhecia e adorava aquele repertório erudito, mas, ao mesmo tempo, estava nos morros, no Carnaval, no São João, atrás da cultura popular. Então, nós tínhamos esses três núcleos de criação e sonoridade”, explica Sérgio.

Foi assim que o SaGrama virou o grupo representativo do Conservatório. “Toda vez que alguém entrava em contato com a instituição pedindo música, vinha atrás do SaGrama, já que éramos um grupo mais estruturado. Falamos com a diretora da época, Eliana Caldas Silveira, e criamos, dentro da instituição, um setor que se chamava Grupo Representativo.”

Apesar da formação erudita, os integrantes se identificavam e tinham contato com as matrizes da cultura popular, “Eu ia para os frevos-de-bloco, maracatus, caboclinhos. Adoro tudo isso, então chegamos à conclusão de fazer uma música mais popular, sair do rótulo de música de câmara”, diz Sérgio Campelo. O SaGrama teve a sorte, segundo ele, “de contar com anjos da guarda na hora certa”, reconhecendo a importância daqueles que contribuíram com o sucesso do grupo ao longo de sua trajetória, entre eles o produtor Luiz Guimarães, responsável pelas primeiras gravações e registros fonográficos, além da cantora Elba Ramalho, com quem gravaram o oitavo CD e primeiro DVD da carreira, Cordas, Gonzaga e Afins, em 2015. “Um convite especial de Elba, que nos deu outra/muita força”, relembra. Com ela, o SaGrama venceu a categoria regional de Melhor Álbum no Prêmio da Música Brasileira 2016 e foi indicado ao Grammy Latino 2017 na categoria Melhor Álbum de Música de Raízes Brasileiras.

“Geralmente, a música do SaGrama contém muitas nuances: tem introdução, desenvolvimento, um ápice, um relaxamento. Se tem um forró, nunca é forró de cabo a rabo. O mesmo ocorre quando se trata do frevo. Nos discos, também buscamos esse equilíbrio. Se em determinadas músicas tem muitas flautas, nas próximas vamos diminuir, colocar mais clarinete, mais viola, mais marimba”, explana Sérgio. Lançado em 1998 por intermédio da Lei de Incentivo à Cultura, da Prefeitura do Recife, o primeiro disco da orquestra vendeu 16 mil cópias, um feito raro no Brasil. No mesmo ano, o álbum foi finalista do Prêmio Sharp, na categoria Música Instrumental.

“Na época, chamou-me atenção o estilo, a harmonia e a performance do grupo. Assim, ofereci meus préstimos para fazer um CD para eles, visto que ainda não tinham”, contextualiza Luiz Guimarães, lembrando de quando tudo começou. “Produzi seis álbuns para o SaGrama, que despontou com mérito na discografia brasileira, sendo também aplaudido no exterior”, conta o produtor. Para ele, “a qualidade e esmero do SaGrama ensejou a produção do tema musical do filme O auto da Compadecida, com sucesso extraordinário.”

TRILHAS SONORAS
Das salas do Conservatório para as salas de cinema, a música do SaGrama tem uma trajetória singular, cativando um público de fãs e admiradores, familiarizados com a riqueza de detalhes e a essência dos arranjos e composições usadas para contar histórias importantes na TV e no cinema.

O que seria dos atores Selton Mello e Matheus Nachtergaele sem a trilha sonora que os acompanhou e ajudou a projetar, no imaginário brasileiro, personagens como Chicó e João Grilo, de O auto da Compadecida? Músicas como Rói-Couro, Caboclos de Orubá e Régia, que estavam presentes no primeiro disco do Sagrama, foram elementos-chave na releitura audiovisual da obra teatral de Ariano Suassuna, assinada por Guel Arraes. O diretor fez o convite ao grupo pernambucano depois que o roteirista João Falcão identificou, no trabalho do SaGrama, a combinação perfeita de música cômica com instrumental, que tanto buscava para narrar os personagens. “Ele (João Falcão) dizia que música nordestina boa tem milhões, mas que precisavam de uma que tivesse movimento”, conta Sérgio.

Uma das faixas criadas especialmente para o filme foi Presepada, que ganhou variações temáticas e está presente também n’O auto da Compadecida 2, lançado em dezembro de 2024 (tema de reportagem de capa da edição #278 da Continente).

Quando o SaGrama foi convidado para a trilha, o grupo estava com dois álbuns gravados. Além do primeiro, que já tinha rendido um alto número de vendas, havia o segundo, intitulado Engenho, mais refinado e que vinha confirmando o estilo do grupo: fazer arranjos eruditos para ritmos genuinamente nordestinos como baião, frevo, maracatu, quadrilha, toada, entre outros.

Não demorou para que a trilha sonora de O auto também virasse um disco, o terceiro da discografia do SaGrama, cujo repertório passou a integrar as apresentações dali por diante. Divisora de águas na carreira do grupo, a trilha sonora armorial abriu caminhos para o SaGrama circular pelo Brasil.

Nesse período, a referência armorial ficou mais evidente, se tornando uma marca do SaGrama, mas com uma releitura da estética de Ariano Suassuna, que casou perfeitamente com a sonoridade do grupo.

 Depois de O auto, o SaGrama passou a ser convidado para fazer outras trilhas. Uma delas foi a da peça Fernando e Isaura, também de Ariano Suassuna. “Ele brincava que eu era especialista na obra dele, já que também participei do Romançal, o quarteto musical que acompanhava suas aulas-espetáculo”, relembra Sérgio sobre a relação com o escritor paraibano.

“Fazíamos música dando aula e, de repente, estávamos fazendo música para o cinema”, conta Sérgio Campelo, sobre a mudança de perspectiva que passaram durante a carreira. “Quando os atores de O auto da Compadecida vieram pro Recife lançar o filme, tocamos dentro do cinema, ao vivo, na entrada da sala do Shopping Recife”.

Dirigido por João Falcão, o musical infantojuvenil A ver estrelas também contou com a presença do SaGrama, que ficava em cena interagindo com os atores. No cinema, o diretor Camilo Cavalcante teve o privilégio de contar com a assinatura do grupo pernambucano na trilha dos filmes A história da eternidade; O velho, o mar e o lago e Rapsódia para um homem comum.

FEMININO & ANCESTRAL
Uma das presenças femininas mais importantes no SaGrama foi a de Frederica Bourgeois, flautista que hoje mora na França e permaneceu no grupo por 27 anos. Ela foi responsável, inclusive, pelo nome da formação, inspirado nas notas musicais indianas. SaGrama significa uma escala de Dó em sânscrito, idioma hindu. Segundo Cláudio Moura, a ideia era adotar um nome que gerasse curiosidade e fosse diferente, fugindo dos estereótipos.

Sérgio Campelo explica que “toda vez que substituem algum instrumentista, é por alguém jovem talentoso, recém-formado”, a exemplo de Ingrid Guerra, flautista na formação atual. “Procuramos alguém que tenha o perfil do grupo e que tenha adquirido experiência com a própria música do SaGrama.” Ex-aluna do Conservatório, Ingrid assistia aos ensaios do SaGrama e hoje está exatamente no lugar de Sérgio Campelo na Orquestra Sinfônica do Recife. “Por teste, ela chegou lá. Nossos substitutos são grandes intérpretes, músicos que estudaram, obtiveram formação.” Antonio Barreto explica que a flautista “virou uma profissional que estava ligada com a natureza do grupo, assim como os dois percussionistas que entraram por último, alunos de Tarcísio dentro de um programa social de um grupo de maracatu rural”.

Entre os projetos que o diretor ainda sonha realizar está o SaGrama feminino. Além de contemplar as instrumentistas que tocam e já passaram pelo grupo, a ideia é fazer um espetáculo com toda a estrutura de mulheres, incluindo backstage, produção, técnicas de som e de roadie.

“A música que nasce do SaGrama tem a força de um pregão e a contenção de uma prece”, escreveu o cantor Gonzaga Leal, com quem o grupo lançou seu disco mais recente, Na trilha de uma missão (2022), baseado na Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938 do escritor e musicólogo Mário de Andrade, um importante registro da história da música popular tradicional do Norte e Nordeste do Brasil.

O trabalho foi o primeiro lançado após a pandemia de Covid-19. Para Gonzaga, “a música e o trabalho do SaGrama confluem com sabedoria ancestral, a tangibilidade do cotidiano e a transferência de existir. Um jogo sutil entre profana verdade e sagrada confissão brotam da sua música, adensando o mistério. Eis a razão que o seu percurso artístico musical, seja original”.

Marina Suassuna, jornalista com especialização em Estudos Cinematográficos pela Universidade Católica de Pernambuco

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